O grito no túnel
Camila abriu os olhos, mas não conseguia enxergar. Sentia sua cabeça doendo, e um pouco de tontura. Tentou focar sua visão em meio à parca luz. Quando finalmente conseguiu, deu-se conta de que não conhecia aquele lugar. Seu coração disparou. Tentou se levantar e quase caiu da cadeira: ela estava com as mãos amarradas nas costas. “Meu Deus, o que está acontecendo?”.
Sua respiração ficou ofegante. Como ela havia parado ali? Ela não se lembrava. “Pensa, Camila, pensa.” Ela começou a repassar em sua mente o que tinha feito naquele dia. Acordou as 6, como de costume. Tomou banhou. Foi até a cozinha de roupão e preparou um café da manhã rápido. Colocou sua roupa de ginástica, e saiu em direção à academia. No caminho de sua casa até a academia, havia um túnel por onde passava uma linha de trem em cima. Aquele túnel era escuro e comprido, ela o achava assustador. Era uma manhã fria, e naquele dia ela vestia um casaco grande branco que ela havia ganhado de seu pai alguns anos atrás. Ao passar pelo túnel, ela ouviu um grito. Era o grito de uma mulher. Depois disso, não se lembrava de mais nada.
Camila olhou para si, e percebeu que não estava com o casaco. Ela estava vestindo apenas a legging preta e a regata dry fit que costuma usar para correr. “Aquela voz... eu já ouvi a voz daquela mulher”. Ela sabia que conhecia a dona daquele grito, mas não conseguia identificar quem era. “Será que eu entrei no túnel?” Não era possível. Ela tinha pavor dele. Sempre que passava em frente, apertava o passo antes que o pior acontecesse. Em sua cabeça, imaginava um homem de capuz a agarrando e a levando para lá, para estuprá-la, matá-la e deixar seus restos mortais para ser encontrado por algum transeunte qualquer. Pode parecer um pensamento um tanto exagerado, mas para uma escritora de romances policiais, era algo bastante corriqueiro. Principalmente tratando-se de uma mulher.
Ela então olhou para o chão do seu lado esquerdo. O casaco estava ali. Ele a fez lembrar da viagem em família que fez para o Chile dois anos antes. Era a primeira vez que iria esquiar, ela e suas irmãs estavam bastante empolgadas por comprarem aquela viagem para seus pais. Seria um presente de aniversário de casamento. O relacionamento deles estava passando por uma crise, e elas achavam que aquela viagem poderia trazer o amor de volta. Doce ilusão. Foram brigas e mais brigas, do começo ao fim.
Sua visão começou a se acostumar à escuridão, e agora ela conseguia reconhecer melhor o que estava a sua volta. Apesar de não saber onde estava, o ambiente era estranhamente familiar, e isso tornava tudo mais angustiante. Aquela sensação de estar presa a uma cadeira sem quase poder enxergar, era a mesma sensação de uma paralisia do sono. Ela não podia se mexer, não sabia o que estava acontecendo, não podia gritar. Ela até poderia gritar, mas e se seu sequestrador ouvisse? Era melhor não arriscar.
Camila olhou ao redor a procura de algo com que ela pudesse soltar suas mãos. Um canivete, uma faca... Nada. Olhou em direção a porta. Era possível avistar uma luz por debaixo dela, vinda do cômodo ao lado. Não havia nenhum sinal de movimentação. O silêncio era total. Seus batimentos cardíacos, ao contrário, pareciam ensurdecedores.
Ela não tinha como se soltar. “Eu conheço esse lugar, não é possível. Por que eu estou com essa estranha sensação de que já estive aqui?”. Sua respiração estava ofegante. Sentia o suor escorrendo de sua testa, caindo no seu braço direito. “Eu preciso me acalmar. Preciso me acalmar para poder pensar direito, e encontrar um jeito de sair daqui”. Camila fechou os olhos e respirou fundo uma vez. Duas vezes. Seu coração palpitava ainda com força, mas numa frequência um pouco menor. “Ok. Vamos lá”. Começou então a analisar o que tinha a sua volta.
Logo em frente ao casaco, havia uma cômoda. Era de madeira, estilo retrô. Possuía seis gavetas, com puxador de ferro. Era igual a que tinha no seu quarto durante sua infância. Camila morava numa cidade do interior de Minas Gerais, com seus pais e suas duas irmãs. Elas dividiam o quarto, e cada uma tinha uma cômoda como aquela. Na terceira gaveta do lado direito, embaixo das suas blusas de frio, bem lá no fundo, era onde ela escondia o seu diário. Ele era um pequeno resumo do mundo todo que era sua cabeça. Todas as histórias que ela imaginava, de aventuras e crimes, ela escrevia ali. Desde pequena ela já tinha a veia artística para a escrita, e não era de se espantar que ela virasse escritora de romances policiais. Ela amava histórias de mistério, e inventava as suas próprias. Mas além disso, seu diário era repleto de história verídicas.
Sua infância não foi das mais fáceis. Seus pais brigavam muito, e não se intimidavam de continuar a briga em frente às filhas. Ela e suas irmãs ficavam abaladas, especialmente ela que era a mais nova, mas com o tempo aquilo tudo começou a parecer normal, como se fosse parte da rotina. Em uma certa ocasião, seu pai estava alcoolizado, e começou a se comportar de maneira agressiva. Seus pais tiveram uma discussão acalorada, e ele deu um tapa no rosto dela. Ela correu para o quarto das meninas, e ele foi atrás, segurando-a pelo braço. Na tentativa de se defender, a mãe agarrou-se à cômoda, e algumas das gavetas caíram no chão. As rachaduras continuam lá até hoje para não deixar ninguém esquecer daquele dia.
Por conta dessas experiências na sua infância, Camila tinha uma enorme dificuldade em manter relacionamentos amorosos saudáveis. Pulava de um relacionamento abusivo para outro, sem conseguir se conectar de verdade com ninguém. Em meio a suas reflexões, de repente ela ouve passos. “Tem alguém no cômodo ao lado”. Ela podia ver a sombra dos pés por debaixo da porta. Sua respiração parou por um instante. “Meu Deus, me ajuda. Socorro.” Suas mãos estavam suadas, o coração batendo forte em seu peito. Parecia que o tempo tinha parado. Os pés continuavam ali imóveis. “O que ele está esperando?... Por que não entra...?”. Depois de mais cinco longos segundos, a sombra andou para longe até não poder mais ser vista.
Novamente o silêncio. “Eu preciso dar um jeito de me desamarrar desta cadeira antes que ele entre aqui. Talvez tenha algo em alguma das gavetas que eu possa usar para me soltar”. Ela começa então um enorme esforço para se aproximar da cômoda. Dando pequenos empurrões com a ponta dos pés no chão, ela deu pulos com a cadeira, naquela direção. “Está dando certo”. O quarto não era muito grande e o móvel não estava tão longe. A perna começou a queimar pelo esforço. “Só mais um pouco”. Quando estava prestes a chegar, a cadeira tombou para o lado, batendo na cômoda, deixando Camila pendurada na diagonal. O barulho foi alto, o sequestrador decerto teria ouvido. “Droga. Agora já era. Ele vai entrar aqui”. Com um leve empurrão, ela conseguiu tombar a cadeira para o outro lado e ficar na vertical novamente. Era difícil respirar ou pensar. Camila esperou. Passaram-se alguns minutos, nenhum sinal dele. “Talvez ele tenha saído”.
Assim que sua respiração normalizou, ela voltou a sua missão. Usou seus pés para abrir a gaveta de baixo. Eles estavam amarrados com a mesma fita usada em suas mãos, mas não estavam presos à cadeira. Teve uma certa dificuldade, mas depois de algumas tentativas conseguiu abrir. Estava vazia. Tentou a da esquerda. Esta parecia mais pesada que a primeira. Depois de três puxões, conseguiu enxergar o que havia dentro. Eram livros de Stephen King, um de seus autores favoritos. Pelo visto, tinham algo em comum. O que mais será que os uniam? O que o teria trazido para perto dela? “Próxima gaveta”. Partiu então para a de cima. Foi preciso um pouco mais de habilidade para aquela, devido à altura em que se encontrava, mas conseguiu abrir sem grandes dificuldades, estava pegando o jeito. “Bingo!”. Uma tesoura. Seus olhos brilharam, e um sorriso tímido apareceu junto com o fio de esperança. “Ok. Como faço para pegar agora?”. Virou-se de costas e levantou-se para pegar com as mãos, mas a cadeira batia na cômoda, deixando suas mãos longe da gaveta. Virou de lado. O mesmo aconteceu. Resolveu então tentar pegar com a boca. Inclinou-se de frente com cuidado para não se desequilibrar. Seu rosto aproximou-se devagar, até seus lábios encostarem na parte de ferro. Devagar, mordeu o cabo da tesoura, e voltou a sentar-se na cadeira, deixando com que ela caísse em seu colo. “Consegui!”. Ela sentiu um misto de excitação e medo ao mesmo tempo. Tinha uma ferramenta valiosa em sua posse que poderia ser o primeiro passo para sua liberdade, e uma arma para sua proteção. Só havia um problema: Com as mãos amarradas nas costas, a tesoura não serviria de nada.
Estava novamente na estaca zero. Desabou a chorar. Já não era mais possível conter o mar de lágrimas que estavam presas no seu peito implorando para sair. “Esse é meu fim, eu não vou conseguir escapar daqui. Não tem absolutamente nada que eu possa fazer”. Chorava e soluçava. A respiração ofegante. Ficou assim por uns dez minutos. Depois, acalmou-se. Começou a pensar em sua família, em seus amigos. Pensou no seu gato que tinha ficado sozinho em casa. Lembrou-se de uma discussão que teve com sua irmã mais velha na semana anterior por conta de uma bolsa que ela não havia devolvido. Arrependeu-se de não ter passado o último Natal na casa de seus pais, porque se sentiu indisposta. Analisou a sua vida, todos os convites de amigos que havia recusado por pura preguiça, e todos os romances que jogou fora por medo de se machucar. Pensou na proposta que perdeu de transformar um de seus livros num roteiro de filme para o cinema, por achar que o final não era bom o suficiente, e presumir que não aguentaria as críticas. Pensar na morte era assustador. Pensar na morte com uma vida cheia de arrependimentos era dez vezes pior.
Camila, de repente, levou um susto. “Não é possível”. Ela estava olhando hipnotizada para a cômoda. “As rachaduras. São as mesmas rachaduras”. Talvez pela adrenalina, ou pela escuridão, ela não havia percebido isso antes. Aquela era exatamente a mesma cômoda que havia em seu quarto quando era criança. “Mas... como?...”. Ela começou, então, a olhar ao seu redor mais atentamente, com outra perspectiva. Outro susto. Havia alguns bichos de pelúcia espalhados em um dos cantos, e no meio deles era possível avistar o macaquinho que seu tio tinha ganhado numa dessas máquinas de parques de diversão. Naquele mesmo dia, ele sofreu um acidente de carro e não resistiu. Ela nunca mais entrou num parque na vida. Aquela era a única lembrança que tinha dele. Seus olhos ficaram marejados. Olhou para cima. “Meu Deus”. O lustre era exatamente o mesmo que tinha na casa de seu último namorado, um dos relacionamentos mais tóxicos que teve. Quantas noites ela não passara encarando aquele lustre no teto, pensando em como terminar a relação.
Tudo o que tinha naquele quarto já fez parte de sua vida em algum momento. Todos representavam algum sentimento não resolvido de alguma parte da sua vida. Aquele quarto resumia tudo o que a impedia de ter uma vida de verdade, tudo o que a mantinha parada no tempo, sem se arriscar, com medo de o pior acontecer.
Camila desmaiou. Ficou apagada por alguns poucos minutos. Ao abrir os olhos, ainda estava lá, na mesma cadeira. Porém, mais a frente, havia uma luz vinda de longe. Ela estava no túnel perto da sua casa. Uma pessoa se aproximou lentamente. Não era possível identificar quem era, mas o jeito com que ela se movia... “Eu conheço essa pessoa”. A pessoa deu mais alguns passos. Agora era possível enxergar. Ela não podia acreditar no que estava vendo. Era ela mesma. Ela era sua própria sequestradora.