A barca de Caronte

Na televisão, um programa sobre os hotéis mais caros do mundo. A diária muito maior do que o salário de todas as operárias da seção de embalagem. Injusto, Melissa protestou em silêncio, achando estranho o modo como a família assistia àquilo, sem expressar revolta, ao menos um mínimo de insatisfação. Como podiam achar divertido e natural a luxúria à qual nenhum deles jamais teria acesso? Era estranho mesmo, pensou indo para o quarto, enjoada, irritada com as imagens dos hotéis, a fala enrolada de alguns proprietários, o merecimento hereditário dos hóspedes. Estranho pois, até coisa de uma semana, também ela se sentava na frente da televisão. Também se extasiava com o luxo dos outros, grata pela vida comedida que vivia.

Já na cama, voltou a pensar em Iva. Olhou no relógio, na cabeceira. Poucas horas. Será que a colega teria coragem?

O marido entrou assobiando no quarto. Melissa fingiu dormir. Ele estava contente, acreditando que a promoção no emprego possibilitaria trocar o carro.

-Me ajuda morrer, Mê.A súplica da colega do setor de embalagens, ecoando em sua cabeça.

No primeiro momento, o susto.Você está doente, Iva? Tá com problema?

Pergunta idiota, reconhecia. Quem não tem problemas? No caso de Iva, muitos. Vivia sozinha com as filhas, sem nenhuma ajuda do ex-marido. O malabarismo no pagamento para arcar com as contas. E aquele diagnóstico.

-O médico garantiu que se pagar tem tratamento, Mê. Não fica barato, mas tem cura.

A princípio tentou demover a ideia.Loucura. Precipitação. Pensa nas meninas, Iva.

-Pois é nelas que estou pensando. Minha filha tem uma vida inteira pela frente, Melissa. Tanto sonho, tanta vontade de viver. Não é justo.

O marido mexia na cama, esticava as pernas, batia os braços. Feliz, como uma criança às vésperas do natal ou aniversário. Melissa agradeceu outra vez, pelo casamento com aquele homem bom, provedor da família e que não via a hora de ter um carro melhor para agradar e orgulhar a família. Iva não teve sorte. Nunca pôde contar com o marido. Em seu semblante sempre abatido, as marcas da decepção,da falta de perspectivas, da solidão ainda que acompanhada, a pior de todas.

Melissa apertou os olhos. Não gostava de se imaginar listando com Iva os modos de morrer ,deixando o dinheiro do seguro para o tratamento de Camila.

-E ainda tem a pensão. As meninas vão ficar amparadas, Mê.

Quando a casa se aquietou e o marido alcançou um pouco de paz, se levantou. Olhou os filhos dormindo o sono dos resguardados. Os sogros , no quarto ao lado. Ficou tentada a telefonar, mandar uma mensagem para a colega de trabalho. Não. Os argumentos tinham esgotado e lá no fundo, a atitude de Iva tinha uma certa lógica. Se fosse ela, se vendo na mesma situação, não faria o mesmo?

-O pai das meninas é ladino, primeiro as coisas dele. Por isso, preciso de sua ajuda. Você não é tonta feito eu. Quero que fique de olho pra ele não desviar o dinheiro.

Prometeu contrariada, se sentindo um daqueles personagens míticos que conheceu no tempo da escola. Deuses, semideuses criados, na maioria das vezes, para explicar o incompreensível. Estava ela , tomando Iva pela mão, conduzindo para o outro lado da vida.

Ficou sentada no sofá até o dia amanhecer.E se a colega aguardasse mais um pouco? Talvez,um milagre acontecesse. Novos exames?Mudança na política dos bancos resultando num grande empréstimo?

Correu em busca do telefone celular mas, antes que o encontrasse, o trem das cinco apitou. O futuro das filhas de Iva estava garantido.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 08/11/2020
Código do texto: T7106767
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