Storm
Trovejar não é apenas o que os céus fazem quando há uma tempestade a caminho. Pessoas também trovejam quando querem ou precisam provocar tempestades.
Toda noite era igual. No silêncio brando da madrugada, antes de pegar no sono, Brenda sempre escutava o som de uma tempestade se aproximando, o vento empurrando todo objeto leve de seu caminho, gotas violentas que caíam do céu matando a sede do solo abafado. Apenas quando abria a janela, Brenda percebia que a noite era de um céu estrelado e sem nuvens enquanto que a tempestade estava apenas em sua mente. Durante o dia, ela não ouvia os trovões e rajadas violentas de vento, mas sentia dentro de si. Brenda não era do tipo que encarava conflitos, pois se sentia insegura mesmo que estivesse certa e gritos e confusões apenas a atormentavam, deixando uma neblina densa dentro de sua cabeça.
Além dos estrondos contínuos dentro da própria mente, havia o caos à sua volta. O pior deles acontecia em sua casa. O pai enlouquecia por diversos motivos e gritava tanto com ela quanto com a mãe, chegando à agressão verbal e, por vez ou outra, física, sendo o suficiente para agitar o oceano de sentimentos dentro da garota. Aos finais de semana sempre havia alguma discussão gerada por qualquer motivo, desde uma pitada a mais de sal na comida até a manifestação controlada de Brenda ou da mãe tentando amenizar o problema. Mesmo assim a discussão era certa na hora do almoço, levando o dia se tornar amargo mais uma vez na semana com gritos e insultos. Com a tristeza da mãe e o ódio do pai, Brenda adquiriu a mais bagunçada e caótica confusão, não sabia se tudo isso era normal e ela devia ser grata por não ser pior, ou se fazia algo a respeito.
Na escola, as coisas eram genéricas. Colegas que apenas tomavam presença na vida de Brenda, desapareciam assim que o sino tocava ao meio dia. Sem confiança alguma nas pessoas virtuais escondidas por monitores de computador ou em tela de celulares, preferiu não ter amigos e escolheu a própria companhia, mesmo que turbulenta e sem muita ajuda a se oferecer.
Certa tarde de primavera, quente e abafada como um dia de verão, Brenda mente para o pai que vai encontrar uma colega no shopping para aproveitar o ar-condicionado -e aproveitar o fato de que a mãe está trabalhando fora para ficar longe da fúria do homem. Caminhando pela rua abafada e com pouca movimentação, cruza com um cachorro de meia idade, um vira-lata branco com manchas pretas. O bichinho estava sentado embaixo de uma árvore, observando Brenda se aproximar e abanando o rabinho assim que ela o chama. O coração da menina bate de forma calorosa no peito assim que ela toca o dorso do animal, o qual mostra os dentes sem rosnar no momento em que ela solta algumas palavras carinhosas para ele. Pela atitude do cão, Brenda decide nomeá-lo de Risonho e torna-se amiga dele. Depois de algum tempo acariciando Risonho, ele decide deitar na sombra e dormir, deixando Brenda com a decisão de voltar a caminhar. Sabendo que havia previsão de chuva para qualquer momento da tarde, ela decide que um bom banho de chuva pode ajudar sua tempestade interna. Há uma praça a qual Brenda frequenta desde os treze anos, que tem aparência assombrosa por causa das antigas árvores de galhos longos e de folhas abafadas por plantas parasitas fantasmagóricas formando mantos longos e assombrosos. Não havia muitas pessoas, algumas senhoras cruzavam a praça com passos lentos e algumas acompanhadas por uma ou duas crianças. Vez ou outra um mendigo cruzava por ali. O lugar estava perfeito para a espera da chuva. Brenda escolheu um dos balanços que ficava embaixo dessas árvores, no centro da praça podendo ter sua vista para o céu olhando para frente acima da grande casa inacabada, onde agora nuvens escuras estavam tomando forma rapidamente. Não demorou muito até que o primeiro trovão vibrasse o chão e comunicasse a chegada da tempestade de primavera. O vento surge logo em seguida violento, agitando as árvores assombrosas fazendo lhes parecer enormes fantasmas verdes. Uma lembrança não muito distante surge na mente anestesiada de Brenda, mostrando um dos surtos do pai que batera nela com o cinto por ter flagrado ela com um amigo o qual ele havia a proibido de ver e Brenda sabia que o motivo era racismo e preconceito. Esse fato sempre a irritava, porque ela se submeteu ao medo e nunca mais falou com o garoto. O longo cabelo castanho escuro e armado em cachos rebeldes de Brenda dançava como se estivesse mergulhado na água. Finalmente os primeiros pingos caem, tocando o rosto suado da garota. Outra memória de violencia surge, o pai gritando de forma agressiva com a mãe por ela ter demorado no mercado e ter passado o “horário de almoço de pessoas adequadas e responsáveis”. Os berros e insultos do homem estúpido abafava toda e qualquer manifestação de Brenda e da mãe, sendo que a mãe era uma mulher de opinião forte e voz firme. A praça ficou deserta em poucos segundos, dando a mais doce e pura paz e sensação de liberdade para Brenda. “Você está fugindo e sabe disso”. Ecoou uma voz feminina como um sussurro em meio a densa neblina de água. Brenda olhou para todos os lados procurando pela dona da voz, que nem ao menos foi abafada pelo som da chuva. “Tempestades não temem, elas acontecem”. Mais confusa que o normal, Brenda levanta do banco em um salto, procurando com dificuldade a mulher.
-Com licença, o que você está falando?
Só você sente, só você pode fazer algo a respeito e ninguém mais.
-O quê?
Faça. Faça. Faça. Faça. Faça.
Brenda começou a recuar aos poucos, abraçando o próprio corpo temendo estar vivendo algo parecido com uma cena de filme de terror. Ao se virar para ir embora, avistou um par de olhos cinza claro com iris branca em forma de fenda. Brenda paralisou, focou sua visão nos olhos carregados de fúria e reparou em outra forma que parecia ser longos cabelos flutuantes em forma de chuva, porém as gotas, além de mais salientes e marcantes que as da chuva, caíam para cima. Havia orelhas em forma de raios, mais largas e quase semelhantes às de um elfo. A boca era uma nuvem escura sem forma definida. O rosto ficava pequeno por conta dos olhos que eram um tanto desproporcionais. Brenda ficou boquiaberta com a criatura, ao mesmo tempo em que era bizarra era linda.
-O quê... O que está acontecendo? - Perguntou Brenda, com a voz tremula.
“Quanto mais reprimir isso tudo dentro de você, mais poluída sua alma ficará e o que sairá não será tempestade, será um apocalipse. COLOQUE PARA FORA, CRIANÇA!”, ela não movia os lábios de nuvem para falar, a sua voz parecia surgir na mente de Brenda. A mulher, de alguma forma, solidificou a água da chuva da volta de sua cabeça flutuante e a tornou seu corpo, avançando para cima de Brenda com um grito que parecia um trovão. O corpo de Brenda vibrou com o impacto rápido da criatura, ela sentiu pequenos choques em seu corpo e logo uma sensação de leveza. Apoiando-se nos joelhos e sentindo fracas fisgadas pelo corpo, Brenda tomou fôlego e começou a caminhar para casa. A chuva não dera trégua. Os trovões estavam mais constantes que antes. Ela sentia o sangue circular por todo o corpo, fazendo-a sentir mais viva e determinada.
Chegando em casa, sentiu que algo estava errado com a aparência do lar. Parecia mais escuro do que deveria estar. Entrou pela porta da frente e foi em direção ao quarto, onde havia um grande espelho em frente à entrada do cômodo, na parede dos fundos. Brenda reparou que sua postura estava mais ereta, como de alguém seguro de si, e até sua expressão estava diferente, o medo e a confusão não estavam estampados em seus olhos e sim, plenitude. A voz da mulher ainda ecoava em sua mente, mas, no fundo, sabia que ela não se encontrava junto dela.
A porta da frente bateu com força na parede, indicando a, sem dúvida, entrada do pai enraivecido. Brenda conhecia o humor do homem mesmo antes de ver seu rosto ou de ouvir sua voz, sabia pelo modo como ele entrava em casa pronto para descontar na família. Ela respirou fundo e deu mais uma olhada no espelho, imaginando os olhos da criatura como seus.
-Onde você estava? Te liguei mil e trezentas vezes e nada de atender! -Disse o pai, a voz alterando mostrando ameaça caso Brenda não se encolhesse.
-Vindo pra casa. Não uso o celular enquanto estou andando na rua. -Respondeu a garota, sem baixar a voz pelo medo.
-Então pra quê levar esse lixo já que é impossível falar contigo?! -Gritou ele, arregalando os olhos.
-Só porque você ligou não significa que eu deva fazer de tudo para atender. Já expliquei o que aconteceu, agora pode baixar o tom! -Brenda mantinha sua voz calma e clara, não refletia medo em seu rosto.
-Como é que é? -ele avançou para dentro do quarto até chegar a uma distância pequena entre ele e a garota - Fala direito comigo, merda!
-É assim então? Ouviu o que não gostou e vai vir para cima porque foi desacatado?
-Acha que tá falando com quem? -Esbravejou ele, agarrando o cabelo da garota, que se desvencilhou após o puxão, encostando as costas no espelho.
-Fica longe de mim! As coisas vão mudar por aqui e esse tipo de coisa vai acabar e vai ser hoje! -Ela gritou e sua voz pareceu um trovão acompanhado por relâmpagos em seus olhos. Brenda estava pronta para atacar, mas interrompida pelo empurrão dado pelo homem furioso que bufava e apertava os punhos.
-Vagabunda! Devia ter feito você trabalhar pra não ter tempo de ficar fazendo merda! -Ele a olhava de cima, parecia estar pensando o que fazer a seguir.
-Fica longe de mim! - disse Brenda, o coração acelerado e o corpo vibrando.
-Quando a tua mãe chegar ela vai ficar sabendo e ela que não tente te defender, ou vai apanhar também! -disse ele, pegando Brenda pelo cabelo e levantando.
-CALA A BOCA!!!- a garota trovejou, uma luz forte irradiou de seus olhos e boca e um som alto e estrondoso saiu, fazendo a casa inteira vibrar. O pai foi parar no chão próximo a porta do quarto, estava com o rosto e mão queimados e a camiseta azul marinho e bermuda jeans estavam torradas.
“Nunca mais deixe chegar a este ponto, ou as consequências serão piores”. A voz da mulher ecoou de algum lugar e um raio atravessou o telhado, atingindo o local onde o pai estava desmaiado.
Uma hora depois, a mãe chegou em frente a casa e se apavorou ao ver uma ambulância em frente a casa. Ela correu e só conseguiu ver o marido inconsciente na maca dentro do veículo. Brenda foi de encontro com a mãe e começou a explicar.
-Foi a tempestade, mãe. A previsão avisou que teria grandes estragos.
Depois do acontecido, o pai saiu do hospital e se recusou a voltar para casa mesmo que para pegar suas coisas. Brenda convenceu a mãe que foi uma ótima decisão e voltou toda sua atenção para a tempestade interna da mãe que ainda sofria com os resquícios dos terremotos do ex marido.