Herança de Família
Herança de Família
Mia Prince desistiu da vida tranquila do campo para se aventurar na capital. Ela nunca teria deixado a fazenda em que seus pais viveram senão fosse pela herança deixada por sua avó, a Senhora Lacey Prince, que acabara de falecer. Mia pegou um trem depois de passar dez dias e dez noites pensando no que faria. Ela possuía sonhos e desejos, como qualquer mulher no auge de seus vinte e oito anos. Por fim, percebeu que a herança abriria para ela um leque de possibilidades, e, é claro, Mia queria aproveitar de todas elas.
A herança deixada por Lacey incluía uma grande mansão no Sul da capital, toda uma fortuna avaliada em quinhentos milhões, todas as joias e todo o guarda roupas da família, com alta costura, vestidos que haviam atravessado gerações.
Mia também herdara sessenta e cinco por cento das ações do grande Hospital Senhora Lacey Prince, que pertencera a sua avó. Aquilo a tornava a acionista com maior número de ações, o que a qualificava como dona do hospital.
No primeiro dia de Mia na capital ela não pôde deixar de ficar imensamente extasiada com a propriedade. A mansão possuía dezessete quartos, doze banheiros, cinco suítes, quatro salas de estar e de jantar, três cozinhas luxuosas com os melhores utensílios do mercado. Havia tapetes vermelhos sobre todo o chão, janelas grandes, as paredes eram douradas e toda a propriedade parecia se curvar ao período Vitoriano. Todas as pinturas nas paredes, toda a mobília, as estátuas de mármore pela casa, o elegante piano e até mesmo as cortinas.
Mia passara o dia conhecendo a nova casa e se preparando para as coisas incríveis que conheceria na capital.
O hospital ficava localizado no centro da cidade, um imponente prédio prateado que se levantava contra o céu. Os primeiros dias foram difíceis e extremamente cansativos. Mia era uma mulher inteligente, formada em Bioengenharia e Ciências Biológicas. Ela ficou encantada em saber que o hospital possuía diversas alas onde era experimentados novos métodos de tratamentos para as mais diversas e letais doenças.
Ela passava seus dias trabalhando em novas fórmulas e estudando novas matérias. Durante as noites, Mia frequentava bares, conhecia pessoas, havia muitos homens interessantes que frequentavam estes lugares. Todos muito bem resolvidos no que dizia respeito a dinheiro. Mas, ela não se sentia à vontade para levar nenhum deles para sua mansão... Os primeiros dias e noites de Mia foram regados a trabalho durante o dia e noites exaustivas de sono, mas depois de duas semanas, a sonolência, que deveria vir acompanhada pelo cansaço do trabalho, fora banida de suas noites quando as coisas começaram a acontecer.
Mia ouvia coisas durante a noite, passos arrastados nos corredores fora de sua suíte. Ouvia sussurros baixos, gemidos dolorosos e frios, além das batidas vindas dos andares inferiores. Ela nunca deixava seu quarto, mas passava a maioria das noites em claro.
Numa terça feira Mia recebeu em seu hospital uma mulher misteriosa e bela. Ela se chamava Samantha, uma executiva de uma empresa farmacêutica. Tinha longos cabelos prateados e sinuosos como a lua minguante, olhos claros e gélidos como vidro e uma pele tão clara quanto giz. A mulher conversou com Mia sobre um novo medicamento, ainda em experimentação. Ela prometia fortalecer as defesas essenciais do corpo humano, tornando a pessoa imune a mais de dez doenças. Mia ficou incerta sobre o que fazer, mas Samantha começou a falar da avó de Mia, Lacey, e que ela já havia feito negócios com sua empresa, no passado.
As palavras de Samantha pareciam se entranhar nos ouvidos de Mia como um parasita, a mulher parecia ter talento para instigar alguém. No fim, Mia resolveu marcar uma reunião para que pudessem verificar a eficácia do novo medicamento.
Depois daquilo Mia retornou para casa em uma tarde chuvosa. No conforto de seu sofá e no calor de uma taça de vinho, Mia pensou no que deveria fazer com sua vida dali pra frente. Ela tinha vinte e oito, era rica e bem sucedida agora, tinha uma propriedade imensa demais para ela. Talvez devesse considerar se casar, ter filhos, uma família... Mas a mulher era diferente das outras, a ideia de ser uma executiva durante os dias, e, dona de casa e esposa leal, durante as tardes, noites e dias de folga a incomodava.
Mia não queria aquilo para si, ela pensava em ser algo maior, ela era especial, sabia disso.
Os dias e noites seguiram, ela começou a ficar mais preocupada. Algo arranhava sua porta durante a noite, mas não havia sinal durante o dia. As estátuas de mármore começaram a mudar de lugar de uma hora pra outra, assim como as pinturas nas paredes, que também trocavam de lugar.
Certa vez, Mia decidiu levar um homem para casa. Um homem lindo, de cabelos escuros, sobrancelhas grossas, barba curta sobre o rosto esculpido, mas o mesmo precisou deixar a mansão poucos minutos depois de chegar, pois começara a se sentir mal ao estar na casa. O mesmo começou a ocorrer com os empregados, que adoeciam inesperadamente.
Samantha retornou ao hospital dias depois para apresentar o novo medicamento, o N-Plasma. Samantha apresentou amostras e históricos da eficácia do medicamento, haviam feito testes em animais, mas Samantha precisava de voluntários para os testes em humanos.
Mia retornou para a mansão depois de uma longa reunião, novamente mergulhou em seu sofá após um longo banho e se serviu de vinho para observar a propriedade pela imensa janela de vidro.
As semanas seguintes foram as mais sombrias da vida de Mia. As noites começaram a ficar difíceis, as batidas nas paredes estavam mais intensas, as vozes mais altas, mas pronunciavam uma língua diferente de todos os idiomas falados por Mia. Ela começou a sair do quarto à noite, caminhava pelos corredores, conseguia sentir que algo a observava, a seguia. Vultos sombrios e passos atrás dela.
O pior veio depois. Mia começou a adoecer. Primeiro a febre, depois vômito, exaustão... Tomou os melhores medicamentos para melhorar, mas os sintomas iam e vinham. Fez os mais complexos exames, mas nenhum deles revelava o que poderia estar havendo.
Quando Samantha retornou ao Hospital Senhora Lacey Prince, Mia já não tinha a mesma aparência de outrora. Estava abatida, com dificuldade para respirar e falar, seus cabelos estavam secos e começaram a cair, de modo que a mulher precisava usar um lenço em volta dos cabelos. Seu estado deplorável pareceu despertar certa satisfação em Samantha que prontamente sugeriu que ela fosse voluntária para o N-Plasma.
Mia recusou, sabia que poderiam haver efeitos colaterais graves e ela queria viver. Porém, mais dias se passaram, os sintomas pioraram a ponto de ela não conseguir mais sair de casa. Sete dias depois, Samantha recebeu uma ligação de Mia. Ela se apresentou à mansão levando consigo uma seringa com N-Plasmas.
Mia estava em seu leito, sentindo olhos sobre si mesma, mas sem ver nada claramente. Pensou estar delirando enquanto Samantha caminhava pelo quarto, tocava os móveis, olhava ao redor e sorria de forma misteriosa.
Mia aceitou ser voluntária, pediu para que Samantha administrasse o medicamento. Era uma sensação ardente de ácido queimando abaixo de suas veias. Samantha deixou o quarto e a propriedade enquanto Mia sofria em sua cama.
O medicamento se espalhou apressadamente por suas veias, ele parecia faminto por alguma coisa dentro do corpo de Mia e seguia devorando-o à medida que toda dor se dissipava, mas ao invés de conter a doença e eliminá-la, outra coisa aconteceu. Mia sentiu que seu corpo havia sido levado para muito longe de si mesma. Em seus delírios ela viu as luzes se apagando, ouviu os passos se tornando mais altos e mais próximos e as sombras a cercaram. A mansão se fechou ao redor dela, isolando-se do mundo. Ela ouvia o som de um violino quando se levantou horas depois e caminhou pelos corredores escuros. Sentia que não estava só e que coisas a acompanhavam.
Os olhos nas pinturas a acompanhavam, um retrato de sua avó vestindo um longo vestido prateado com camadas ao redor do quadril e diamantes encrustados no busto. Mia caminhou para o quarto, abriu o closet e procurou por um dos vestidos de sua herança. Se cobriu com a seda macia, com as joias e com a maquiagem. Depois desceu as escadas, foi para o salão de onde a música vinha. As sombras a seguiram, aos poucos tomando forma e se revelando.
Criaturas esqueléticas e pálidas, com pele enrugada, dedos longos e contorcidos como galhos secos. Alguns possuíam unhas longas, olhos mórbidos e pretos. Mia levitou dentro de seu vestido com os monstros a seguindo. Ela os via agora e não se importava com o que eram e eles não pareciam querer seu mal.
As estátuas já não eram mais estátuas, eram criaturas asquerosas que rastejavam pelo teto, com os corpos cheios de espinhos, eles se agruparam nas sombras e emitiam gemidos dolorosos.
Mia olhava para eles e quase podia sentir sua dor. Não sabia de onde vieram ou quem eram, mas sentia que aquilo estava ali desde o tempo de sua avó.
Mia dançou nas sombras com seu longo vestido, um sorriso doentio se formando em seu rosto.
Samantha visitou a mansão dias depois. As portas se abriram para ela como se a casa a aguardasse. As sombras se dobraram diante de sua presença expondo uma Mia Prince completamente diferente, consumida pelas sombras, com olhos de cor violeta, pele clara, um batom vermelho escarlate nos lábios e coberta pelas joias de sua avó. Ela desceu as escadas com seu longo vestido prateado e sorriu para Samantha.
Havia sangue pelo chão. Samantha caminhou pela mansão, sentindo os olhos de Mia sobre ela. Percebeu que Mia havia estado ocupada nos últimos dias. Havia corpos estendidos sobre as mesas, a maioria deles esquartejados, costurados, em um tipo de processo de transformação.
“Logo eles serão algo maior, logo farão parte deste lugar.” Pensou Samantha e aquilo a deixou feliz.
“Sua família sempre teve talento para isso, para transformar coisas” Disse para Mia.
Mia a observava, caminhou ao redor de uma mesa e observou um dos corpos, as criaturas emergiram ao seu redor. Mia olhou para Samantha, disse que se sentia maravilhosamente bem, mas que não entendia o que havia ocorrido. Samantha então lhe contou toda a verdade sobre sua família. A grande mansão nada mais era do que um grande projeto desenvolvido pela empresa para a qual ela trabalhava. Herança de família, era o nome. Um projeto que jamais poderia vir a conhecimento publico e que, por isso deveria permanecer em segredo. Um segredo que as mulheres de sua família haviam guardado por anos. Elas tinham a habilidade de mudar as pessoas, tinham talento para aquilo e tudo havia sido possível graças ao medicamento de Samantha. Todas aquelas criaturas que faziam parte da casa, estavam impregnadas com a mesma coisa que corria nas veias de Mia agora. Elas já haviam sido pessoas normais, muitos anos antes, mas quando se entra na propriedade dos Prince você jamais sairá, não da mesma forma que entrou.
Mia retornou ao hospital no dia seguinte, agora vestindo os vestidos que sua avó deixara, usava uma maquiagem forte para esconder as marcas da doença, elas ainda não haviam desaparecido por completo. A administração de Mia mudou, ao lado de Samantha ambas transformaram o hospital em uma fachada para seus experimentos. Era o que Samantha queria desde o início. Durante as noites, Mia levava pessoas para sua mansão, onde a casa as acolhia como parte dela. Com os experimentos de Mia, logo se tornavam as criaturas que vagavam pelos corredores e se escondiam nas sombras.
Mia transformou sua casa em um circo de horrores conforme a doença avançava em seu corpo. O N-Plasma a dera conhecimento sobre as habilidades herdadas de sua avó, mas a doença ainda estava ali. Samantha contou a ela que aquilo sondava sua família, ela sucumbiria como sua avó havia sucumbido e ela precisaria de uma sucessora, alguém para deixar sua herança, alguém que continuaria seu legado.