2. A morte do vivo
São 4 horas da manhã todos estão dormindo. Lígia toca o pé no chão frio, senta-se na beira da cama e sem pensar duas vezes, se levanta. A água do café ferve enquanto, toma um banho gelado, a água fria cai nos olhos e faz queimar a retina, a leve dor a faz despertar mente, o café quente na xícara marrom de vidro a mantem em alerta como uma coruja. Os passos são firmes e silenciosos, poderia andar pela casa inteira de olhos fechados sem esbarrar em nada. Prepara rapidamente seu almoço e deixa um pouco para seus filhos.
4:50 fecha o portão de fora, ainda está tudo escuro, carrega a sacola com a muda de roupa em uma mão. O primeiro ônibus passa as 5:01, nem mais, nem menos e os passos apressados chamam a atenção dos donos da rua, eles ainda nem dormiram, de olhos vermelhos e cochichos constantes.
-Bom dia, Jesus te ama. Diz Lígia ao grupo com tranquilidade na voz e confiança no coração. Respondem com um leve movimento da cabeça. Então, a sensação que iria ser assaltada passa. Na parada as pessoas se amontoam e quando vão subir no ônibus reina a lei do mais rápido e mais esperto, todos querem ir sentados e na janela, assim dá para ir tirando um cochilo até o terminal. No terminal outro ônibus, outra espera, mais cotovelos na costela e empurrões.
Ao chegar na casa de Judite toma todos os cuidados, o pé firme a guia em silencio pela casa, troca de roupas e vai preparar o café da manhã. Logo os patrões acordam e tudo tem que estar perfeito e impecável. A geladeira cheia lhe dá muitas opções do que fazer. Suco, café, bolo de ontem, sai para comprar pão, volta, organiza a mesa a tempo de todos ainda estarem dormindo.
Judite ao lado do marido toma um gole de café e reclama que a vida está difícil e que agora irá ao trabalho de carona no carro do marido.
-Você devia ter vendido o seu carro e comprado dois mais simples para gente.
-Com que cara vou chegar no fórum com carro de pobre? Só na sua cabeça mesmo. As coisas não tão fáceis para ninguém.
Após o café limpa e lava tudo, vai nas janelas e lava todas, reuni a roupas sujas e coloca na máquina. Hora de fazer o almoço, arroz, carne, batatas, legumes, frutas, suco, sobremesa, mesa postas, pratos organizados e talheres brilhando, o carro entra na garagem. Já é meio dia.
Todos comem. Lígia vai para cozinha comer o que levou de casa, Judite não gosta de dividir a comida, a crise está grande segundo mesma. O engraçado que mesmo antes dos tempos difíceis e quando tudo parecia bem, já era ruim o suficiente para dividir um prato.
São 17, hora de ir para casa. Pratos limpos, casa organizada, janta pronta. O retorno é mais cansativo que a partida, as pessoas estão suadas e fedendo, o suor cai da testa, como uma gota de chuva no para-brisa do carro. Mesmo em pé os olhos fecham e a cada freada o balanço brusco joga a cabeça para trás como um chicote.
Em casa está tudo limpo, sua filha fez bem o que li mandará. Tinha que tomar banho rápido e trocar de roupas, ainda dava tempo de ouvir a pregação, o culto já tinha começado , mais ainda tinha tempo para ouvir um pouco do que deus tinha para falar. Lígia estava mais cansada que o normal, o dia de hoje havia sido pior que nos outros dias. O pastor pede para que as pessoas se ajoelhem em seus lugares e orarem pelo mundo e pelos carentes de deus. Os membros mais antigos levantavam a voz e oravam para todos ouvirem. O Irmão Anderson pedi para Lígia orar por todos, ela não responde, mesmo sendo chamada duas, três vezes. Uma irmã chega perto e a escuta roncar de joelhos, com as mãos em forma de oração.
Lígia vai para casa morrendo de vergonha da situação até porque não era a primeira vez, e sempre ficava entre a cruz e espada ou como preferia dizer entre a língua das fofoqueiras e o descanso. Chega em casa a tempo de ver seus filhos indo dormir e pede para o mais velho fechar as portas e trancar tudo.
Não conseguia dormir e isso a deixava angustiada, o tempo passa com o tique-taque do relógio, sua cabeça não conseguia desligar para dormir, tudo parecia que estava em seus ombros e cada posição na cama parecia incomodar mais que a última. As sombras pareciam gritar um som que só ela ouvia e o vento fazia as cortinas dançarem formando monstros na parede. Sentia um calor na nuca e a testa suava, molhava o rosto a nuca e 3 minutos depois estava com calor mais uma vez. O silencio reinava e era possível ouvir as batidas do coração nitidamente, dava para escutar o sangue passando pelas arteiras do ouvido.
- Estou com sono e não consigo dormir.
Repedia silenciosamente para se mesma. Pensava como seria mais um dia de trabalho, limpando e lavando, pensava no transporte que teria que pegar pela manhã, pensava na volta para casa, pensava nos donos da rua, pensava nas contas do fim do mês, no almoço e na janta que teria que preparar. E o sono se vai, para um lado, para outro e o tique-taque marca o tempo que não volta, no sono que não foi, dos sonhos que não foram sonhados, do descanso merecido que lhe foi negado pela mente barulhenta e mal criada que tinha.
Pegou no sono, mas foi acordada pelo telefone quando o relógio marcava 3:30. O som ecoou pela casa como um grito dentro do ouvido. A casa acordou, mas só Ligia se levantou para atender.
-Quem é?
-Ligia, minha filia morreu preciso de você aqui mais cedo hoje, venha logo para cá.
-Dependo dos ônibus não sei se consigo chegar mais cedo.
-Onde você mora passa ônibus de madrugada que eu sei, pegue um e venha.
Os olhos ainda estão pesados, mal conseguia os abrir e só um suspiro saia de sua boca. Que escolha tinha naquele momento? A água estava mais fria que o normal, não conseguia deixar os olhos abertos, a água no fogão estava fervendo. Sonolenta, Ligia pegou a chaleira do café e por um segundo os olhos fecharam e a dor da água quente queimando seus pés a fez gritar com toda força que tinha fazendo a jogar a chaleira para longe e a fazendo cair, batendo a cabeça na pia da cozinha. Ligia fechou os olhos e um leve sorriso se abriu em seu rosto, estava pronta para descansar.