Dívida

O homem sentiu o coração se acelerar ao ver o velho sair de casa. Seguindo o sujeito há duas semanas, não era surpresa ver que ele agia mais uma vez dentro da rotina saindo para suas caminhadas matinais, mas naquela manhã, ao observá-lo, o homem sentiu uma determinação fria em sua mente. É hoje - pensou ele atrás do volante - eu já esperei demais.

Vendo o velho caminhar tranquilamente pela calçada, o homem foi mais uma vez invadido pelo sentimento de repulsa que quase lhe dava náuseas. Você viveu bem demais e por tempo demais – pensou – se Deus existisse ele já te teria mandado pro inferno há muito tempo. O homem não acreditava em Deus, mas sua família sim, mesmo quando fora ela que passara a viver no inferno por culpa do velho. Sim, eles ainda acreditavam, mesmo quando seu pai voltou com sequelas inimagináveis de uma operação que devia ter sido simples; quando ele perdeu o emprego e logo depois a dignidade em virtude de seu recém adquirido problema. Isso era o pior - mesmo quando toda a sua família estava indo pro abismo por culpa de um erro médico e esse mesmo

médico escapava impune, eles por alguma razão ainda acreditavam que alguém ainda olhava por eles e as coisas iriam melhorar.

Bem, não melhoraram. O processo aberto contra o médico só serviu pra desgastar o pouco de saúde que restava ao seu pai e o pouco de integridade que a família tinha. No fim, tudo foi resolvido com uma indenização baixíssima, que mal servira para pagar os custos do novo tratamento para compensar o erro anterior. No fim, tudo que restou foi

um grupo de semiestranhos constrangidos ou tristes demais pra falar alguma coisa um pro outro. Suas vidas foram destruídas e o culpado era o velho que agora passeava tranquilamente pela calçada.

O homem não teve muita dificuldade de conseguir o endereço do sujeito. Bastou segui-lo quando saia do pronto-socorro, vigiar sua casa por alguns dias e pronto; sabia tudo que era necessário. Mais alguns passos e o velho viraria para uma rua sem câmeras de vigilância externa e o homem teria sua vingança – sua e de toda sua família. Logo após o sujeito cruzar a esquina, o homem acelerou o carro, subindo com o veículo na calçada e pegando o velho em cheio. Diferente do que tinha imaginado, não sentiu uma explosão súbita de adrenalina e toda a tensão de antes parecia ter se esvaído como água. Enquanto acelerava o carro fugindo rumo a outra direção, tudo o que o homem pensava era “não morra – viva ainda bastante tempo e sofra enquanto respirar.”