A solidão é um inferno

"Eu quero ficar bom e ir pra casa. Eu tenho uma coisa para fazer. O que mesmo?"

Rubem Fonseca

As coisas estavam ruins - e iam piorar - eu pensei enquanto fumava um cigarro fedorento e barato. Dentro da minha sala eu envesgava com meio olho no revólver, meio no telefone e o outro no casal pornô que não gozava nunca. De vez em quando cuspia numa caixa de sapatos cheia de areia. Pensava, mais que tudo, na cerveja que dormia na geladeira da cozinha. Mas um plantonista não pode beber, pelo menos não antes da meia noite.

A brisa do ventilador vinha grossa de fumaça e o escudo era minha cara. O calor que rondava a cidade como um ciclone indeciso caía com toda a força no subúrbio onde eu trabalhava. Fazia suas vítimas entre os velhinhos cardíacos e os motoristas beberrões.

De tanto cabecear de um lado para o outro eu me sentia uma árvore seca e açoitada por forças invisíveis, era o que eu achava. Foi quando senti a pressão atmosférica em forma de calor insuportável e a pressaão arterial feito um formigamento por todo o corpo. O suor começou a empapar minhas roupas e fazer poças nas minhas mãos. Minha testa gotejava dentro dos olhos como vinagre no tomate. Comecei a tremer. Pensei por um instante em ligar para casa ou para o pronto socorro, mas decidi não incomodar ninguém com o meu incômodo. Iam me pedir para descansar e eu responderia: aonde?.

Levantei-me apalpando as paredes e, contornando a mesa, ganhei o corredor que me levou ao pátio dos fundos. Liguei a torneira do tanque e pus a cabeça embaixo. Melhorei sensivelmente. Repuxei os cabelos para trás e enxuguei as mãos na calça. Aves noturnas piavam na matinha depois da estrada. Cães latiam desconsolados. Caminhando em círculos e respirando pausada e conscientemente me acalmei um pouco. Recostei-me ao muro quente e observei o pálido brilho da lua no pátio cimentado.

Estava distraído quando ouvi a campainha da recepção acionada sem parar. Aquele som estridente dela me fez lembrar que estava de serviço. Passei o antebraço no rosto e me dirigi para a portaria. Atravessava o corredor comprido que dá para a frente enquanto a campainha reverberava como uma sirene. Fiquei puto e xinguei alto: já vai, porra!

Quando abri a porta da saleta da recepção me envergonhei do que tinha dito. Havia três carinhas assustadas olhando para mim. Um menino ruivo e sardento, um menino negro de boné e, entre eles, como um Cristo na cruz estava uma pombinha assustada.

Segue o diálogo que tive com eles depois do qual nada mais foi dito nem lhes foi perguntado, como escrevem os escrivães:

-Posso saber o que está acontecendo aqui?

-Eu caminhava de cá e ele de lá, disse um dos meninos.

-Eu também caminhava daqui pra lá, disse o outro.

-Caminhavam sozinhos a esta hora da noite?

-Eu procurava minha mãe, disse o menino ruivo.

-E eu procurava o meu pai, disse o menino negro.

-Aí nóis viu a pombinha nu chão, disse o ruivo.

-Eu vi primeiro, disse o negro.

-Calma, calma vocês aí. Onde estão seus pais?

-Minha mãe saiu com o pai dele para tomar cerveja, disse o ruivo.

-Meu pai saiu cedo de casa, disse o negro.

-Eu estava com medo, disse o ruivo.

-Eu tava sozinho, disse o negro.

-E por que não ficaram juntos, como irmãos?

-Minha mãe disse que não gosta dele, falou o ruivo.

-Meu pai falou que só gosta da mãe dele, disse o negro.

-Então, sobra tudo pra mim, é isso?

-Não, disse um dos meninos.

-Meu pai e a mãe dele também falô que não gosta du sinhor, disse o outro.

-O que querem que eu faça, que chame o Conselho Tutelar?

-Isso não, falou o ruivo.

-Não, não, não, disse o negro.

-Só quero, disse o ruivo, que o senhô manda ele devolvê minha pomba.

-Manda ele devolvê pra mim primero, disse o negro.

-Tá bom, tá bom. Vamos lá. Já ouviram falar em Salomão?

-É o dono da boca? perguntou o ruivo.

-É o delegadu? indagou o negro.

-Esquece, esquece, seus pestes. Vou pegar uma faca.

-Não senhô, não senhô, berrou um deles.

-Perdão sinhô, perdão sinhô, gritou o outro.

-Esperem meninos, não corram, olha a.......................a pom....................binha!!!!

No chão morno e vermelho a pobre ave agonizante se debatia inutilmente. Poderia ter comunicado o fato ao conselho tutelar, ao delegado ou ao juiz de plantão. Não fiz nada disso. Apenas recolhi a pomba agonizante e a levei para os fundos. Coloquei-a sobre o tanque e fui esvaziar a caixa de sapatos. Aproveitei para desligar o computador e o telefone. Guardei o revólver na gaveta. Enrolei a pomba nuns trapos, coloquei na caixa e a pus na minha sala. Abri a geladeira e cumprimentei a cerveja. Ela e eu estávamos quase no ponto.

make
Enviado por make em 13/09/2020
Reeditado em 13/09/2020
Código do texto: T7062333
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