Sétimo dia

Esta é uma história que aconteceu comigo. Não te peço que acredite em mim, mas vou te contar tudo o que sei e que consigo lembrar.

É uma história sobre meu tio.

Ele era uma pessoa muito alegre. Divertido, era conhecido por todo o nosso bairro, e tinha amizade com sua maior parte. Não havia caminhada que fazíamos onde ele não cumprimentasse, entre risos e gracejos, pelo menos uma dúzia de senhores e senhoras em toda e qualquer rua pela qual passávamos.

Sempre admirei este carisma, e seu bom humor e facilidade de comunicação me cativavam.

Meu tio, também, era uma pessoa muito religiosa. Não era muito apegado a essa ou aquela religião, embora fosse, majoritariamente, praticante de uma religiosidade paralela ao catolicismo. Podemos dizer que era um “catolicismo popular”, convivendo com sacramentos e crendices da terra.

Por essas e outras, ele era uma pessoa de personalidade ímpar.

Se você reparar em como te falo sobre meu tio, verá que me refiro a ele no pretérito. Isso porque ele não vive mais entre nós.

Entre nós. Porque vive em um outro plano que não sei explicar qual ou como, mas que passei a acreditar de forma bem empírica. Vou te contar, e é aqui que esta história começa.

Certo dia, ainda me lembro, ensolarado e bonito, recebi um dos telefonemas mais tristes de minha vida. Meu querido, todo engraçado e popular tio havia sofrido um acidente na obra em que trabalhava. Quase desfaleci com o susto, e logo corri para o hospital para onde havia sido encaminhado.

Ao chegar lá, que desgraça!

Não estava mais entre nós. Havia falecido pouco depois de encostar um vergalhão de aço na rede elétrica.

Não sei como aquilo foi possível. Meu tio era um ótimo e cuidadoso pedreiro, e custou-me acreditar que houvera cometido tal fatal erro.

Enfim, há coisas que são difíceis de acreditar ou explicar, mas acontecem.

O funeral aconteceu no dia seguinte, e foi uma das maiores manifestações de carinho que já vi em minha vida. Todos os velhos e a maioria dos jovens de nossa vizinhança foram, aos prantos e lamentos, despedirem-se de meu tio. O cemitério irrompeu em aplausos quando seu caixão foi para baixo do solo e, ali, todos sentiam que uma parte boa de nós havia sido sepultada também.

Entristecido, voltei para casa, e o vazio que me tomava era muito grande. Não chorei, porém a tristeza era enorme.

Alguns dias se passaram, e aí as coisas começaram a ficar estranhas.

Em algum momento no passado, ouvi alguém dizer que se a missa de sétimo dia de um falecido fosse esquecida, sua alma voltaria ao nosso mundo para cobrá-la dos vivos.

Como eu não era religioso, não encomendei essa tal missa. E, para meu espanto, ninguém também a encomendara.

E, meu tio, veio nos cobrar.

No oitavo dia de seu passamento, estava eu sentado na calçada de casa tomando o sol do fim da tarde com alguns vizinhos, quando vimos uma bituca de cigarro caindo do céu numa poça perto de nós. Olhamos para o alto, e não vimos ninguém nas varandas ao redor. De onde viera aquela bituca? E, pior: ela não apagou imediatamente ao entrar em contato com a poça. Queimou lentamente por mais alguns minutos até apagar-se como se houvesse sido tragada até o fim.

Ficamos pasmos e, em silêncio, pensei no meu tio. Ele adorava fumar, e há quem diga que, segundos antes de seu acidente fatal, havia manifestado o desejo de fumar um cigarro.

Aquela noite, voltei para casa e, enquanto preparava um lanche para comer, vi, perplexo, uma garrafa deslizar lentamente de debaixo do gabinete da pia até a porta, e voltar sozinha. Não entendendo nada sobre tal fenômeno, me custou aceitar, mas retumbou em minha mente que aquela garrafa era justamente uma que tomei com meu tio quando de sua última visita à minha casa. Era da sua marca de cerveja favorita.

Dormi ressabiado, e acordei mais ressabiado ainda quando, no meio da madrugada, o rádio-relógio da cozinha ligou sozinho. Tomei um susto, pois meu sono estava especialmente leve naquela noite. Fiquei quieto sob as cobertas por alguns minutos, ouvindo a programação da rádio favorita de meu tio. Era uma rádio religiosa. Falavam sobre vida após a morte.

Não preciso nem lhe dizer como minha espinha estava gelada de medo. Porém, revestindo-me de alguma coragem, levantei, de olhos fechados, e fui tateando o caminho até a cozinha. Desliguei o rádio e voltei como uma bala para debaixo das cobertas.

Não consegui mais dormir naquela noite. O silêncio que se seguiu ao desligamento do rádio-relógio era mais assustador do que ouvir a programação noturna da rádio favorita do meu tio.

Logo cedo, pus-me de pé, e resolvi ir à casa de minha tia, viúva do meu tio.

Chegando lá, conversamos sobre a falta que ele nos fazia, e os olhos marejados da velhinha me comoviam. Resolvi, então, contar a ela o que me acontecera no dia e na noite passados, e ela ouviu-me assombrada. Assim que terminei de contar, ouvimos os ganidos do cachorro do meu tio no quintal. Minha tia, levantando-se para olhar pela janela o que fazia o cão se manifestar daquela forma tão familiar a ela, levou a mão à boca quando viu o animal dançando sozinho, de pé, como se fosse conduzido por invisíveis mãos humanas. Assim que acorri ao seu lado, pude testemunhar a dança solitária do canino, e não pude deixar de lembrar, na hora, que meu tio adorava brincar daquela forma com seu cachorro. Ao final da dança, o cachorro, voltando à sua posição original, teve o rabo puxado, novamente por uma mão humana invisível. Justamente como meu tio fazia também.

Minha tia, minhas primas e eu ficamos perplexos com aquilo que testemunhamos, e ficamos mais perplexos ainda quando vimos, da mesma forma que me aconteceu na noite passada, uma garrafa rolando sozinha pelo chão da cozinha.

Acompanhei a família de minha tia numa apressada reza do terço, e ao descermos a escada para que eu pudesse ir embora, vimos, de relance, atrás de nós, um vulto muito parecido com meu tio subindo apressadamente as escadas para dentro da casa. Voltamos correndo atrás daquele vulto e, na casa vazia e silenciosa, sentíamos como se meu tio estivesse ali.

Um forte odor de cigarro vinha do banheiro, e ao irmos para lá, tudo parecia normal, menos uma coisa: a porta estava aberta no sentido contrário. Ao invés de estar aberta para dentro, estava totalmente escancarada para fora do batente, numa posição impossível.

Fiquei impressionado com tudo o que testemunhava, e combinei com minha tia e primas de visitarmos o túmulo de meu tio no dia seguinte.

Logo cedo, estávamos no cemitério, e a profusão de flores no túmulo de meu tio ainda era vistosa, embora estivessem, já, amarelecidas. Fizemos algumas orações, e ao final de mais um terço rezado, espontaneamente um maço de cigarros que eu trazia no bolso da camisa acendeu. Assustado com o calor daquela repentina combustão, arremessei prontamente o maço incendiado para frente, caindo sobre a tampa do túmulo. Bati rapidamente no bolso da camisa até apagar a chama, ficando com o peito chamuscado. Ao olhar para o maço, ele liberava fumaça a intervalos regulares, como se fosse tragado e assoprado por um fumante.

Enquanto contemplávamos, atônitos, mais aquele fenômeno inexplicável, tomamos um susto quando, minha tia, num grito, apontou para o alto. Olhando para cima, contra o céu azul, nada vi, mas minha tia jurava que via meu tio, sorrindo e fumando, olhando para ela. Minha tia desmaiou em seguida.

Corri até a administração do cemitério para pedir socorro, e ao passar defronte a sala onde meu tio fora velado, vi, de relance, um homem parecido com ele, solitário, parado no mesmo lugar onde o caixão estivera. Estacando imediatamente minha corrida, dei dois passos para trás e olhei para dentro da sala.

Que susto tomei!

Era claramente o meu tio, encarando-me fixamente, com um cigarro aceso no meio das mãos como se fosse uma vela. Mexeu a boca como se dissesse algo, mas não emitiu som audível. Porém, pude ler claramente seus lábios dizendo “MISSA”.

Na hora me lembrei do que lhe disse antes, caro leitor e leitora, sobre a missa de sétimo dia. Entendi o recado e, após correr até a administração e conseguir uma cadeira de rodas para transportar minha tia até o carro, combinei com uma de minhas primas de irmos à igreja do bairro pedir ao padre que rezasse a missa daquela noite em intenção do meu tio.

Após a missa, nunca mais vimos, sentimos ou ouvimos qualquer manifestação sobrenatural do meu tio. Penso que ele finalmente descansou em paz.

Hoje frequento mais a igreja, e sempre busco rezar alguma coisa em casa. E nunca deixo de rezar pela alma de meu tio.

Amanda Feitosa e Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Amanda Feitosa em 07/09/2020
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