Morte em Escarlate

- Sabe amor… - Dizia a voz feminina e suave - Eu jamais imaginaria nós dois assim… Sob as estrelas deste céu noturno e desolado. Você é tão romântico! - Dizia Flávia sorridente enquanto deitava-se no quintal dos fundos de sua casa com seu marido, Pedro.

As primeiras gotas de orvalho se formavam nas curvas e traços das folhas das árvores, naquela fria e úmida noite de solstício de inverno. As estrelas já tomavam formas e brilhavam no alto do céu enquanto a lua, que já havia despontado no horizonte, trazia consigo todo o esplendor de sua luz iluminando o belo quintal gramado onde Flávia e seu marido passavam sua noite romântica no aconchego e calor dos braços um do outro.

- Obrigado por essa noite maravilhosa Pedro! - Falou Flávia novamente enquanto passava o braço do seu marido por detrás de sua cabeça e o observava, olhando os contornos de seu rosto pálido, sua tez clara e seus cabelos louros e sedosos, sua boca levemente rosada e seus olhos azuis entreabertos - Sabe… - Disse novamente, virando-se para o céu, pensativa - Sempre que olho para os teus olhos tão azuis, recordo-me de quando éramos apenas jovens adolescentes ingênuos em busca de liberdade, de autonomia… À procura de nossa própria felicidade. Ah, esses lindos olhos azuis! Remete-me às lembranças de quando nos conhecemos, se lembra? Nós estudávamos juntos e éramos da mesma sala. Eu, toda tímida e inteligente, e você, todo desajustado, baderneiro e briguento. Não demorou muito até que nossos círculos de amizade se uniram e, como naquele ditado que diz: “Os opostos se atraem”, nós acabamos nos aproximando, foi amor à primeira vista e logo, como qualquer adolescente, começamos a sair em encontros e festas juntos, quase sempre às escondidas, pois meus pais não iam muito com a sua cara. Lembro como se fosse ontem de quando fomos com nossos amigos à sorveteria, a Ana acabou fazendo uma piada e você riu tanto que até saiu milk-shake pelo seu nariz sujando toda a mesa e aí todos nós rimos pelo resto do dia, foi hilário - Relembrava Flávia contando as histórias passadas entre risadas em completo devaneio enquanto seu marido continuava ao seu lado, deitado, olhando, também, para as pequenas e brilhantes estrelas ouvindo sua esposa em silêncio - e, lembro também com bastantes detalhes, do nosso primeiro beijo. Nós havíamos ido ao baile de fim de ano da escola, você estava lindo com aquela calça jeans azul-marinho e aquela camisa branca com uma jaqueta de couro e eu, estava incrível com aquele vestido vermelho com uma barra de renda. No final do baile você me puxou pela cintura para perto, com seus braços musculosos e fortes, e então sua boca foi se aproximando cada vez mais da minha, uma sensação de borboletas no estômago e um calafrio na espinha percorreram por todo meu corpo marcando na memória aquele momento inesquecível em que nos beijávamos pela primeira vez sob os holofotes do baile da escola e ao som dos gritos nostálgicos e de surpresa dos nossos colegas e amigos ao presenciar tal cena - Disse com um belo sorriso estampado no rosto e voltando-se para seu marido, virou com suas mãos delicadas o belo rosto de Pedro, que observava as estrelas, para si e deu-lhe um beijo doce e carinhoso.

Estava calmo e silencioso, onde não se ouvia nem mesmo o barulho dos carros que iam e vinham nas ruas ou nem mesmo o cantar dos grilos, e a lua, somente, presenciava a noite de carícias e lembranças daquele jovem casal.

- Mas nem sempre foi assim não é mesmo? - Continuou a mulher - Quando faltava pouco menos de dois anos para terminarmos o colégio, você abandonou os estudos para dar mais atenção e maior cuidado em seu negócio. Não é assim que você o chama? Negócios? Você largou a escola para entrar no tráfico de drogas. Eu sempre o amei e apoiei você em todas as suas escolhas e agora não seria diferente. O tempo passou e a gente continuou mantendo sempre contato, nunca deixamos de nos ver embora tivéssemos que nos encontrar às escondidas da polícia e contra a vontade dos meus pais. Você é tão bom para mim, é tão bom em tudo que faz que acabou se tornando até o maior traficante do estado! Ah, como eu o amo! - Ela disse com um sorriso no rosto e os olhos brilhando, transmitindo todo o amor e admiração em seu coração - E claro… Claro que você teria se tornado o maior e melhor traficante do país se não fossem aqueles malditos porcos, como você os chama, que o prenderam três ou quatro anos depois de deixar a escola. Ainda assim, mesmo no fundo do poço você nunca me abandonou não é mesmo meu amor? Mesmo na prisão, sentenciado há cinco anos por tráfico de drogas ilícitas, ainda assim, você lembrava-se de mim e mandava cartas de amor periodicamente. Você era tão romântico, fico feliz por tê-lo encontrado em minha vida! Enquanto você foi tirado de mim, eu fazia tudo por você do lado de fora daquelas malditas paredes à qual você estava preso. Eu havia terminado a escola, estava começando meu curso de farmacêutica e até havia começado a juntar dinheiro para nossa casinha. Foram dias difíceis para nós dois, você sempre preso escrevendo cartas fofas e carinhosas para mim escritas “Eu te amo” em letras coloridas, enquanto eu trabalhava todos os dias do mês em ambos os dois empregos para pagar meu curso e guardava todo o restante do dinheiro para termos nossa casa e morarmos juntos quando você saísse de lá, assim como nos meus sonhos de jovem garota adolescente apaixonada. E veja! Aqui estamos! Após longos cincos anos de espera, meu amor por você só havia aumentado, durante todos os dias, todos os minutos dos cincos longos anos eu só pensava em você. Eu poderia desistir e pegar todo meu dinheiro, me mudar para bem longe e lá ficar com qualquer outro, mas eles não me interessariam. Eu só queria, eu só desejava você. E então, te liberaram da prisão, estávamos finalmente livres. Casamo-nos e nos mudamos com o dinheiro das drogas que você havia escondido antes da prisão e então não precisaria do meu dinheiro guardado. Como é inteligente! Como é grande o meu amor por você! Saímos sem ao menos dar adeus aos meus pais e todos aqueles vermes malditos que iam contra meu amor por você. Aqueles miseráveis e impertinentes que querem sempre acabar com a alegria alheia, com suas opiniões e comentários desnecessários. Saiba, meu amor, que para todo o sempre o amarei, não ligue para todas essas pessoas que pensam e dizem o contrário pois seus corações são vazios e não lhe pertencem assim como o como o meu, que sempre lhe será devoto do amor que tenho por você e, saiba também, que você significa tudo para mim, minha doce paixão, meus sonhos que se tornaram realidade, és o ar que respiro, minha louca obsessão. - Disse ela seguido de um leve e momentâneo beijo, permaneceu observando-o por alguns instantes, seu belo rosto pálido resplandecendo a luz do luar sobre eles era a única coisa que conseguia pensar, e continuou dizendo - Após nos mudarmos para a nova casa, não tínhamos que nos preocupar com mais nada, pois o dinheiro era muito e conseguíamos nos manter somente com ele. Você disse que queria que eu deixasse de lado meu emprego e meu curso para vivermos um para o outro e assim o fiz, absorvida em meu amor, cega de paixão. Nós dois seguimos a vida felizes com carícias e prazeres entre quatro paredes, eu vivia somente para você, deixá-lo feliz era meu único objetivo. Satisfazê-lo era meu dever e obrigação. Porque eu o amava, o amava com todas as minhas forças e faria todo o possível e o impossível para preservar esse amor até o fim da minha existência. Não é mesmo meu bem?

Neste momento, uma brisa passou sacudindo levemente as folhas e gotas de orvalho das árvores, agitando as pequenas gramas e ramos que estavam em volta do casal deitado no quintal e, na escuridão da noite, apenas as estrelas e o luar ganhavam destaque iluminando todo o quintal aonde nem mesmo as luzes amareladas dos postes chegavam, mas uma nova e brilhante luz ganhava seu lugar no breu sob o céu estrelado, vinda de longe e cada vez mais forte, mais intensa e chegando cada vez mais perto.

Eram luzes azuis e vermelhas piscando freneticamente no horizonte vindas em alta velocidade até a casa onde Flávia e seu marido, Pedro, estavam a sós aproveitando a noite romântica dos cônjuges. As luzes, agora já possível notar que eram dois carros de polícia, pararam frente à casa de Flávia e saíram dois policiais de um dos carros indo em direção à porta da frente, enquanto os outros dois ficaram esperando do lado de fora dos carros, na calçada. Os barulhos das batidas à porta, altas e graves, quebraram o silêncio da noite, mas não houve resposta e Flávia se manteve calada nos braços de seu marido, não notando as luzes e as batidas frente à sua casa. Novamente o som pesado e furioso de batidas, desta vez mais altas e mais fortes, continuou quebrando o silêncio da noite e novamente não houve respostas.

- Vamos dar a volta e vasculhar o quintal - Sussurrou o mais velho dos policiais parados à porta.

- Sim, senhor - Respondeu em sussurro o novato.

Ambos caminharam com lanternas e armas em mãos silenciosamente pelo lado da casa, enquanto as luzes azuis e vermelhas piscavam e reluziam em toda a frente da casa. O velho policial, já de cabelos e bigodes grossos grisalhos com uma boa reputação em seu departamento, e seu aprendiz, cuja profissão passou a exercer a menos de uma semana sendo bem alegre e entusiasta nas atividades e missões, esgueiraram por entre o muros e as paredes da casa até, finalmente, chegarem ao quintal onde encontraram Flávia e Pedro no breu da noite, nos braços um do outro.

- Oh Jesus! - Exclamou o mais jovem ao apontar sua lanterna para o casal.

- O que é isso? O que estão fazendo aqui? - Perguntou Flávia levantando-se enquanto tapava, com a mão, as luzes das lanternas que a cegavam.

- Venha, nós vamos levá-la! - Disse o policial mais velho segurando a mulher pelos braços e a levando em direção ao carro com ajuda do novato.

- O que? Me levar por quê!? Soltem-me! - Gritava Flávia enquanto se debatia tentando se livrar dos policiais e voltando a enxergar melhor após ter sido cegada com as fortes luzes das lanternas apontadas para ela - Espere por mim meu docinho, seja o que for que eles querem, eu volto logo para os seus braços meu amor!

Os policiais colocaram-na em um dos bancos traseiros da viatura e seguiram conduzindo o carro pelas longas estradas frias e desertas da cidade, encontrando vez ou outra, um bêbado fatigado tentando recuperar-lhe a memória para voltar para casa, andando meio desnorteado entre tropeços enquanto se esgueirava e se apoiava nas paredes e postes à sua volta. Chegando a um prédio da delegacia, os policiais conduziram Flávia por diversos corredores e salas brancas bem iluminadas, por fim, chegaram a uma sala com uma alta e larga janela ao lado da porta que entraram, cujas venezianas estavam fechadas e não se via nada do corredor, a sala possuía apenas uma mesa e três cadeiras. Levaram-na até a cadeira solitária, no canto mais afastado da porta, que estava do outro lado da mesa e ali a algemaram nos apoios da cadeira.

Inquieta e estressada, Flávia esperou pelos próximos quinze minutos enquanto as algemas lhe apertavam e torciam o pulso, até que entrou na sala uma figura alta e forte carregando em uma das mãos uma grossa pasta de documentos. Trajando um uniforme azul impecavelmente limpo e bem passado. Ele, Brow Addams como indicava a escrita em sua camisa, de tez morena e cabelo raspado com braços enormes e musculosos, caminhou vagarosamente até perto da mesa, onde colocou os documentos e apoiou as mãos enquanto se mantinha de pé com os olhos fixos em Flávia.

- E então… - Disse ele com uma voz grave e grossa carregando em cada tom sua superioridade - Quer me dizer alguma coisa?

- Eu dizer alguma coisa? Vocês invadiram minha casa, vocês estragaram a noite romântica e maravilhosa com o meu marido… - Respondeu a mulher em gritos enquanto debatia os braços nas algemas da cadeira - Se tem alguém que deve uma explicação aqui, são vocês.

- Escuta aqui… - Disse o policial Brow Addams após um longo suspiro - Ou você conta por bem e livre espontânea vontade ou então…

- Tá, Tá… Eu conto - Disse por fim a mulher.

- Ótimo - Concluiu o enorme policial que puxou uma das duas cadeiras de metal em sua direção e sentou-se enquanto ouvia com atenção as palavras e declarações feitas por Flávia.

- Eu amo meu marido, amo-o incondicionalmente sem sombra de dúvidas e faria o possível e o impossível para preservar esse amor. M-Mas… - Continuou Flávia, agora com a voz trêmula e um olhar cabisbaixo - Depois que Pedro, meu marido, saiu da prisão, ele foi ficando cada vez mais… mais intolerante. Seu amor aos poucos fora se transformando em um ódio e uma amargura intensa, o dinheiro ia se esgotando e em pouco tempo não conseguiríamos nos sustentar mais. E-Ele… Ele estava infeliz e bravo com o que estava acontecendo, passando a gastar o resto do nosso dinheiro em seus novos vícios que arrumara nas madrugadas escuras e vastas desta cidade. Mas eu não ligava, pois eu o amava. Ele procurou a cura para suas amarguras nas aventuras mundanas da vida noturna, ele passou a usar drogas, ficar bêbado e a satisfazer-se com prostitutas, mas nada, nada lá fora, era bom o suficiente. A infelicidade, a amargura e a decepção de nunca encontrar solução para elas foram aumentando com o passar do tempo até… - Continuou enquanto seus olhos brilhavam e reluziam cheios de lágrimas e com a voz trêmula - A-Até que… Elas tomaram conta de seu coração. Ele chegava amargurado e rancoroso das ruas, durante as altas madrugadas, descontando tudo em mim. Eu o amava e isso não mudaria, ele agrediu-me mas isso não mudaria meu amor por ele, ele deixou-me para se deitar com outras mas isso não diminuiu minha paixão por ele. Eu era dele, meu coração era dele e jamais poderia ser de outra maneira… - Flávia, então, levantou o rosto já molhado em suas bochechas por onde as lágrimas haviam escorrido e prosseguiu com a voz já um pouco mais firme e, ao mesmo tempo, suave - Eu estava errada… Suas noites de núpcias traziam ciúmes em meu peito, meu coração flagelava-se à cada pontapé, soco e diversos golpes desferidos pelo meu marido… E assim como meu marido, meu coração foi se fechando e, como num conta gotas, de gota em gota meu amor foi se esvaindo dando lugar a ódio intenso e de indescritível rancor, mas eu não poderia… Como poderia odiar alguém que um dia já amei? Não… Eu tinha que proteger meu amor, eu deveria restaurá-lo… Mantê-lo a qualquer custo. Eu não permitiria que essa chama de paixão e amor que eu sentia por ele, mesmo pequena, se apagasse e se perdesse para sempre…

- Então… - Perguntou por fim o policial - Aquele cadáver que você estava abraçada em seu quintal, era seu marido?

- Sim… Era necessário… - Respondeu Flávia.

Luis Felipe G Silva
Enviado por Luis Felipe G Silva em 09/08/2020
Código do texto: T7030672
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