Além da Vida
Era noite quando eu caminhava vagamente pelas campinas banhadas na luz prateada da lua que se despontara no horizonte daqueles vales e morros à minha frente. Minha visão cabisbaixa era tomada somente pela grama alta e os pequenos brilhos piscantes de vaga-lumes que iam e vinham naquela noite úmida onde as gotas de orvalho se formavam e pingavam lentamente das folhas ásperas.
Havia acabado de me apresentar na praça da cidade há algumas horas e estava voltando para minha humilde casa nos arredores da zona rural, com as passadas entre os campos, o violão balançava-se em minhas costas enquanto minha calça era completamente encharcada até a canela com a umidade daquele mato. Fora uma apresentação difícil hoje, não que seja fácil nos outros dias, e não havia ganhado nada pela apresentação além de um mero tapinha nas costas. Ainda terei que batalhar todas as manhãs sonhando pelo dia em que conseguirei sair do campo e me tornar um grande cantor, compositor e me apresentar para grandes multidões em palcos gigantes lotados de pessoas.
Ainda que nenhum de meus antepassados, ainda que ninguém da minha família tenha o dom ou nunca tenham tentado seguir essa carreira, estou disposto a largar todas as coisas para conquistar meu sonho e sair dessa decadente vida moribunda na qual tenho vivido desde que nasci e assim seguia pensando enquanto andava pelos campos e morros na escuridão da noite. Usava uma camisa vermelha xadrez, calças jeans escuras, sapatos, agora cobertos pela grama alta, e carregava nas costas meu precioso e belo violão revestido em sua capa preta, meus cabelos já um pouco grandes eram castanhos escuros e balançavam-se a cada passo que eu dava. A lua no horizonte iluminava a grama, as árvores de troncos e galhos retorcidos, as flores e os diversos arbustos com um tom característico de prata levemente azulado, iluminando toda aquela vasta flora úmida fazendo com que a luz da lua se intensificasse mais ainda.
Enquanto perdia-me em meus pensamentos e subia um morro levemente inclinado à minha frente, levantei meus olhos cabisbaixos aos céus e num susto, avistei no horizonte, parada sobre o morro contra luz da lua, a silhueta de uma figura estranha completamente imóvel. De certo, não saberia dizer se trajava vestes pretas ou se eram o fruto do efeito de as mesmas estarem contra a luz da lua, mas notei nitidamente sua cintura fina e seus traços claramente femininos e, sem cerimônias, continuei subindo o morro em sua direção a caminho de casa.
Ao me aproximar, ela pareceu não se importar e agia como se não estivesse ali, quando estava a dez passos de distância ela continuava imóvel de costas para mim, observando a lua grandiosa e celeste no horizonte a sua frente, quando estava a cincos passos ela continuou parada sem se incomodar com minha presença e quando já estava a três passos de distância, um desejo profundo de curiosidade possuiu-me e não tive outra opção senão chamar-lhe a atenção.
- S-Sinhôra? – Eu disse ansioso e sentindo-me culpado por me intrometer em sua vida pessoal – Já tá tarde, o que uma muié igual à sinhôra faz aqui no mei do nada?
- Oh! Estou apenas admirando estas maravilhas, olha como são lindas e ao mesmo tempo tão distantes, intocáveis – Ela disse sem se virar, ainda admirando a lua e as estrelas no céu. A dama da noite usava vestes parecidas com um vestido de noiva embora fosse completamente negro, desde as rendas e tecidos até as lantejoulas e detalhes completamente pretos, e em seu rosto, usava um véu cobrindo-o por inteiro – Presas a si mesmas, condenadas a viver na solidão do espaço enquanto apreciamos seu passado.
Fiquei completamente impressionado com tal cena, jamais a havia visto durante minhas caminhadas da cidade de volta para casa. Suas mãos eram pálidas, de uma brancura mórbida.
- E você, o que faz por estas vastas planícies? – Ela disse com uma voz suave e doce.
- Eu cabei de voltar da minha apresentação na cidade – Respondi com orgulho e grandeza.
- Ora, notei o violão em suas costas e também o belo homem que o carrega.
- Eu? Belo? – Disse com as bochechas rosadas de vergonha – Acho que esse pano na sua cara num faz bem pra sua visão não, moça.
- E eu acredito que o véu não importa nestas circunstâncias já que... – Ela continuou dizendo enquanto levava as suas mãos ao véu retirando-o e revelando sua face. Seu rosto era branco e fino, tão pálido quanto suas mãos e resplandecendo todo o brilho da lua que recaía sobre si. Seu rosto não possuía olhos e nenhuma outra cor senão o tom mórbido do crânio vazio sobre o véu, e, nos ossos de seu crânio haviam entalhados com uma exatidão esplêndida diversos desenhos de flores como numa caveira mexicana – Já que eu não vejo seu rosto, belo homem, mas posso ver aquilo que reside dentro de você. A beleza, a pureza, o caráter dentro de si.
- Uai! – Indaguei assustado, observando toda aquela figura cadavérica na minha frente e dando um passo para trás, continuei a observar o buraco em sua cavidade orbital, completamente vazia e escura.
- Eu o assustei não foi? Foi meu rosto, não é?
- Não, n-num é isso que ocê tá pensando – Eu disse com a voz instável enquanto ela se virava em minha direção.
- Não minta para mim meu rapaz, posso sentir o medo em seu coração, o suor frio, as pernas trêmulas, a adrenalina nas veias... Posso sentir.
- D-Desculpe incomoda minha sinhôra. Mas já tá tarde, tenho que imbora – Eu disse afastando-me dela, tentando dar a volta e seguir meu caminho querendo simplesmente que tudo aquilo acabasse.
- Espere... – Disse ela segurando-me pelo pulso com suas mãos frias e sem vida. Ao me virar, notei que seu rosto adotara uma expressão de terror indescritível, pude sentir seu olhar penetrando todo meu ser, invadindo minha mente e reformulando meus ideais como numa carta aberta, senti um vazio dentro de mim e um calafrio por todo meu corpo quando uma luz negra começou a brilhar dos seus olhos e dos entalhes em seu crânio por alguns minutos até que ela soltou meu pulso - Ora... Sua pureza é tão grande que jamais deveria ter duvidado de você, eu posso vê-la. Você não é como os outros homens – Ela disse.
- É claro que não. Pois eles não sabem contemplar a grandiosidade de seu ser, os contornos de seu corpo são a verdadeira obra-prima, dignas da sétima maravilha do mundo, posso sentir na minha pele todo o amor que sinto por você neste momento, tão puro quanto o branco do semblante de seu rosto, tão verdadeiro quanto nós e tão genuíno...
- Quanto a luz das estrelas mais belas – Ela respondeu completando minha frase e se aproximando de mim.
Naquele momento, ventos fortes sopravam das planícies ao nosso redor fazendo com que toda aquela vegetação curvasse diante de nós e minhas pupilas, que eram de uma cor tão castanho quanto meus cabelos, passaram lentamente a adotar e ter uma cor rosa avermelhado.
Jamais me esquecerei daquela noite onde encontrei o amor da minha vida de forma inusitada e, de repente, todos os meus desejos mais íntimos foram suprimidos por uma chama ardente de paixão em meu peito. Durante aquela noite iluminada pela lua, ficamos sob a luz das belas estrelas no céu noturno completamente apaixonados um pelo outro enquanto nos beijávamos e aproveitávamos cada segundo.
Nosso amor era intenso e verdadeiro, nada mais nos importava, nem mesmo se estávamos sobre o sereno daquela noite úmida no meio das planícies, vales e morros à nossa volta e ali ficamos até que a lua cheia ocupara seu ápice, iluminando do ponto mais alto do céu o amor verdadeiro e genuíno que eu sentia pela dama da meia-noite.
- Venha para minha casa meu amor – Ela disse com sua voz serena e calma.
- Claro...
- M-Mas, minha casa não é deste mundo. Você já deve ter percebido...
- Bom, para mim não importa desde que eu tenha você, desde que eu esteja ao seu lado – Respondi enquanto segurava sua mão com a minha e meus olhos rosados brilhavam à luz do luar.
Ela olhou fundo em meus olhos com um sorriso de satisfação, pude sentir o vazio de seu crânio penetrante em meu olhar, e segurando minha mão, ela abriu uma fenda no chão que fora aumentando e se ampliando na nossa frente, em menos de dois minutos, havia uma grande passagem que dava em uma escada com os degraus e as paredes feitas de blocos de pedras que desciam em espiral até as profundezas da terra. Novamente um forte vento soprou das planícies fazendo as árvores, arbustos, plantas e o vestido de minha amada balançar enquanto a mesma segurava minha mão e começara a descer os primeiros degraus daquela escadaria até que a fenda fechou-se atrás de nós e continuávamos descendo aqueles degraus iluminados por tochas nas paredes de ambos os lados. Descendo, até onde poderíamos finalmente vivermos juntos na eternidade do nosso amor, nas profundezas da terra ao lado de minha amada e eterna companheira, a Morte.