O PROFETA E O SACRIFÍCIO
          

          Quando ele disse que iria colocar cruzes entorno da casa, ninguém acreditou. Mas agora elas, incrédulas e pasmas, assistiam a cena com ele sem camisa, suado tentando levantar a cruz para finca-la no chão, como fizera com as outras três. Último esforço para que a casa enfim ficasse protegida do demônio.  Aquilo era demais, até para Dona Cícera, que durante os 26 anos de casamento com Simão de Deus, havia presenciado todos os tipos de loucuras do marido. Mas fincar cruzes em todos os lados da casa era muito para se suportar. No entanto, ela e a única filha que ainda permanecia em casa, assistiam ao espetáculo em silêncio.

            Tiveram 06 filhos. Francisca, a mais velha, foi embora com 12 anos, no auge da crise do pai. Simão de Deus, nessa época, cismou que iria ganhar na mega sena. Primeiro gastou todas as economias da família com os jogos, o que não era muito dinheiro. Saia de bar em bar, mercado em mercado anunciando que seria o novo milionário, o que só veio passar com a total falência dele e da esposa. Sem comida e envergonhada, Francisca, carinhosamente chamada de Chiquinha, foi morar com uma tia.

            O filho, Manoel, mais novo que Chiquinha um ano, fugiu de casa aos quatorze anos, quando seu pai pregava nas esquinas que Jesus Cristo tinha voltado. E era Manoel, a reencarnação do salvador. A loucura do homem era tanta que chegava a exigir as pessoas oração para o filho. O menino nada fazia, passava o dia inteiro vestido com uma bata branca, costurada por Dona Cícera, junto do altar aprendendo as leis de seu pai. Manoel não era filho daquela família, de acordo com a loucura de seu pai, era a própria encarnação do espírito santo.

            Mas já havia se passado quase 15 anos dessa loucura. E Simão de Deus acabava de fincar a última cruz, estavam protegidos de todos os demônios. Estavam não, ele estava, pois sendo ele o último profeta de Deus na terra, vivia sendo atacado por espíritos malignos, o que impedia o seu trabalho como pastor do salvador.

            De fato, as cruzes surtiram efeito. As pessoas assustadas pararam de andar na casa dele. Ninguém conseguia entender como a loucura de Simão de Deus havia chegada naquele nível. E procuraram o filho dele que morava numa cidade vizinha, aconselhando o internamento.

Não era necessário interná-lo, segundo o filho, aquela loucura não passaria de um mês. Mas as pessoas insistiam que o nível de loucura estaria ultrapassando os limites aceitáveis pelos vizinhos. Já não conseguiam dormir à noite, pois o som do latim falado, mal falado, por Simão de Deus nas madrugadas assustavam as crianças.

            Isaias então lembrou aos vizinhos assustados que aquela não era a primeira vez que o pai se dizia profeta de Deus. E recordou um episódio 05 anos antes, em que Simão de Deus, alegando ter conversado com Deus, passara a chamar tudo e todos de santo. Segundo Deus, durante a longa conversa que teve com ele, tudo na terra era criação divina, portanto, tudo era santo. Daí ele passou a acrescentar a palavra santo em tudo...

            - Santo lixeiro, você esqueceu esse santo saco de santo lixo... e as pessoas riam.
            - Por favor, santo garçom, traga-me uma santa cerveja... mais risos.

            Passados alguns dias, ninguém mais ria. As pessoas já não aguentava mais ouvir a palavra santo. E da noite para o dia Simão de Deus deixou essa mania, mudando completamente sua personalidade. Parou até de beber e fumar. Convencidos com o argumento de Isaias, os vizinhos voltaram para suas casas e esperaram Simão de Deus melhorar e retirar aquelas 04 cruzes enormes da rua.

            Passou uma semana. Outra semana já estava findando. E ninguém mais via a família do último profeta. Viviam trancados em casa, vivendo de farinha e orações. Sorte ser mês das férias escolares, caso contrário, a escola teria dado falta da adolescente de 14 anos, que ninguém mais viu. Os vizinhos, no entanto, sabiam que eles estavam vivos, pois ouviam os prolongados sermões que Simão de Deus fazia para a filha e a esposa. Previa o fim do mundo e contava em detalhes o que iria acontecer.

            A rua ficou sem movimento, as crianças tinham medo de passar em frente à casa do profeta. E a história virou conto de terror na boca das mães que queriam assustar seus filhos:

            - Vá tomar banho, menino! Ou você quer ir morar com Simão de Deus? – diziam as mães aos filhos desobedientes. E as crianças juravam que a família daquela casa, era a própria família do diabo. Criavam, inclusive, desafios para que os meninos que se diziam corajosos pudessem provar sua bravura. Mas ninguém conseguia bater à porta daquela casa. 

            Quanto já estava para completar a terceira semana, Simão de Deus saiu dos limites sagrados de seu esconderijo. Com uma sacola de pano na mão, e bastante assustado caminhava devagarinho para que não fosse visto por seus inimigos malignos. Já do outro lado da rua, gritou para esposa e a filha, recomendando que elas permanecessem nos limites da casa, onde estariam protegidas do perigo que as rondava.

            Indagado pelo vizinho sobre o que o teria feito sair de sua fortaleza, disse que iria fazer compras. Na casa já não tinha o que comer. E como tudo que se relacionava ao profeta era estranho. Ele teria que ir fazer compras no único supermercado abençoado por Deus, que ficava do outro lado da cidade, a uns 8 quilômetros. O vizinho lhe ofereceu carona, mas o carro não era digno do santo homem, Simão.

            Exatos 10 minutos se passaram da saída de Simão de Deus de seu lar protegido, Dona Cícera saiu com a filha levando uma mochila cada uma. E seguiram o rumo contrário ao do marido. Curioso, o vizinho perguntou sobre o que ela iria fazer, então ela desabou em lágrimas. A menina chorando e visivelmente machucada, braços e pernas com hematomas, correu e entrou na casa do vizinho, seguida pela mãe.

            - Ele dizia que era Deus que mandava ele fazer isso comigo, ele ficava fazendo sermões.... – a menina contou aos berros.

            Dona Cícera abraçou a filha e tentou convencê-la de que precisavam fugir antes que o marido voltasse. Mas o vizinho insistiu em saber. E em lágrimas Dona Cícera disse que não tinha culpa. Não podia fazer nada, pois ele mantinha uma faca enorme no pescoço dela enquanto gritava seus sermões, estuprando a filha.

            Imediatamente o vizinho ligou para polícia. Demorou um pouco para convencer o telefonista de que a denúncia não era um trote. O medo se materializou nos rostos de Dona Cícera e da filha, pois foram juradas de morte inúmeras vezes, caso procurassem ajuda.

            Já estava anoitecendo quando Simão de Deus voltou das compras. O último profeta de Deus na terra trazia alimentos para 06 meses. Mas ao se aproximar de casa, percebeu o carro da polícia, soltou o saco de pano e a caixa cheia de compra e correu. Fugiu como se ali estivessem os espíritos malignos que sempre temeu, ou talvez fosse a polícia a grande ameaça que ele não tinha coragem de enfrentar.

            Não adiantou correr. A polícia o prendeu. Dona Cícera e a filha foram para casa de Chiquinha. Simão de Deus foi mandado para um hospital psiquiátrico, onde ficou por um ano. Foi constatado que ele sofria de inúmeros transtornos e que não era responsável pelo que havia feito. O tratamento seria sua pena.

            Após uma ano, Simão de Deus recebeu alta, com a condição de que continuasse o tratamento. Ele voltou para mesma casa, onde não morava ninguém desde sua internação. Lá ficou morando por uns três meses, sozinho. Não manifestou nenhum comportamento estranho nesse período.

            Era véspera de Natal, Simão de Deus acabava de chegar do mercado, agora comprava em qualquer mercado, com as compras da ceia de natal. Alguém abriu a porta para ele. Incrédulo, o vizinho assistiu a Dona Cícera receber o marido com um selinho. Ela havia voltada para viver com o esposo, e ali, em pé diante da cena, o vizinho se questionou se a polícia não havia internado a pessoa errada.
Nilson Rutizat
Enviado por Nilson Rutizat em 31/07/2020
Código do texto: T7021944
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