A Cartomante

A Cartomante

Já era manhã, ainda que a penumbra da noite insistisse em adentrar o dia. Não se via indícios de sol, mesmo instável não chovia, o ar estava parado, mas trouxe calafrios à pele de Alba ao abrir a janela de seu quarto. Sua vó, que Deus a tenha, diria que havia espíritos tentando contato e que seria esse o momento certo de usar o Ouija.

Alba tinha seus trinta anos, corpo esguio, cabelos longos e volumosos que emolduravam um rosto com traços fortes, lábios bem delineados e olhos expressivos. Facilmente qualquer homem notaria sua presença e não deixaria de encara-la por longos minutos. Talvez por ser geniosa demais se apaixonou apenas uma vez e as marcas da separação ainda a acompanhavam. Desde pequena mostrava habilidades, sempre muito intuitiva, foi quando seus avós a ensinaram ler as cartas de Tarot e sua afinidade com elas tornou-se admirável. Abandonou a faculdade ainda no início e se distanciou dos seus para seguir o tal “negócio da família” como ela chamava.

Não vestia roupas chamativas nem sequer turbantes, gostava de usar longos vestidos de cores intensas com corte reto e finas alças para dar destaque a seus ombros e aos colares que usava. Naquela manhã escolhera o vermelho intenso e ao peito um pingente dourado com ametista, de aparência bruta, cravada ao centro. As cores ao gosto dela não combinavam, mas algo dizia que seria preciso uma intuição mais aguçada, ametista seria adequado.

Morava no segundo andar de um sobrado em uma área afastada da cidade, jogada de sorte ou não conseguira instalar seu “local de atendimento” no térreo. Seus anos de experiência e sua aparência atraiam muitos clientes, fossem curiosos ou mesmo crédulos das palavras que ouviam. Naquele dia havia poucos agendados, seria calmo com sorte. Mas a escuridão lá fora ainda a incomodava.

Ao descer o lance de escadas para abrir o consultório sentia correntes de ar tão fortes e frias que pareciam lâminas. Lá embaixo não havia luz alguma e no ar pairava apenas a fragrância singela do incenso de almíscar usado na tarde anterior. Alba hesitou, uma voz em sua mente pedia que ela voltasse a seu quarto e lá ficasse, porém, se manteve. Não havia o que temer de verdade e se algo errado realmente fosse acontecer ela saberia.

O espaço era bastante amplo, várias bancadas e pequenas mesas de madeira sempre adornadas com toalhas aveludadas em tons escuros, sobre estas incensários, objetos místicos e cristais para atrair boas energias. Sua aparência destoava do local, era uma sala tipicamente cigana. Ao centro, uma mesa redonda, de madeira nobre com uma fina camada de verniz e sobre esta uma bola de cristal e seus baralhos.

A fachada e a porta da frente do consultório tinham janelas bem amplas voltadas a calçada, sua sala e toda a extensa escuridão lá fora parecia um único local. Ao acender os abajures e se aproximar da mesa, Alba sentiu uma intensa dor de cabeça ao tocar a bola de Cristal.

***

um homem se aproxima a porta, vestindo roupas tão escuras quanto tudo a volta. Casaco pesado e chapéu. Não faz frio a ponto de usar tal vestimenta, mas o que a incomodava naquele instante era não ver seus olhos. Duas batidas leves seguidas de uma porta aberta.

-Bom dia. Posso entrar?

-Bom dia. Ainda não estou atendendo... faltam exatos 15 min para começar, e já tenho um casal de clientes marcados para o primeiro horário, mas... em que posso ajudar?

Ela de fato jurava que a porta ainda estava trancada. Como ele conseguiu abri-la sem sequer forçar? A sombra da aba do chapéu continuava a esconder seu olhar. Definitivamente isso a perturbava.

-Tenho uma dúvida pertinente, poderia jogar as cartas para mim? É questão de vida ou morte.

-Levaria mais de 15 minutos para uma leitura completa. Pode voltar mais tarde?

Foi quando ele retirou o chapéu. Aquele olhar não possuía brilho, não possuía vida.

-EU PRECISO QUE SEJA AGORA!

O arrepio na pele de Alba retornara com força. Tão depressa quanto inesperado o homem agarrou suas mãos. Não havia calor no contato. Mas ela jurava que agora havia fogo naquele olhar.

-Se acalme, por favor. Sente-se enquanto preparo meu solo sagrado e os Arcanos maiores. Aprecio o Tarot mas não jogo com frequência... gosto da cartomancia e das variáveis do baralho comum...

Ela pensou que conversar um pouco talvez o acalmasse. O medo tomava conta de sua alma minuto a minuto e algo dizia que talvez as respostas que obtivesse dessa leitura não fariam bem. Mesmo assim terminaria logo.

Sentados agora, frente a frente, Alba embaralha as cartas e as coloca na mesa.

-Faça três cortes por favor enquanto mentaliza sua pergunta.

Assim ele o fez. Alba colocou lado a lado as cartas do primeiro monte, logo abaixo do segundo e pôr fim do terceiro.

-Escolha em cada uma das linhas uma carta e me entregue. Nelas teremos seu passado, presente e futuro e por fim escolha uma aleatória, que será sua carta descarte.

O homem as escolheu com certo pesar. Na mente de Alba ressoava a expressão vida ou morte que ele dissera a pouco. O que de fato ele queria? Ela olhou pela janela... o dia ainda não surgira e a única luz continuava sendo dos abajures.

Primeira carta: Morte

-Eis que o seu passado é marcado pela morte. Sempre que a morte surge no início significa muitas mudanças e uma significativa renovação. Muitos temem essa carta, eu de fato a aprecio muito.

Como fazia de costume em suas leituras, sempre aguardava a revelação das três para que de fato concluísse. A morte naquela circunstancia trouxe certo alívio.

Segunda carta: A roda da Fortuna

-A roda da Fortuna. Sua sorte continua a mudar. Se de fato o passado não fora bom, essa carta traz apenas um reforço da sua mudança...

-Vire a última.

Sem outra reação, Alba virou. O enforcado.

-O que ela quer dizer Senhorita Alba?

-O enforcado é um prelúdio de sacrifício...

O homem levantou e passou a andar ao redor da mesa enquanto falava:

-Não perguntaste sequer meu nome, mas de veras acertou sobre as leituras. Além de bela é, sem dúvidas, talentosa.

-Quem é você e o que quer?

- Uma missão de sangue me trouxe aqui e acabaste de virar o seu prelúdio de morte após sua revelação. Eu sou a escuri-dão, não vê?

-O que quer de mim? - sentindo-se coagida e inerte, Alba segura com força seu cristal ao peito.

-Me falta o sangue do sacrifício revelado para que a noite jamais vire dia. Você se revelou para mim através do enforca-do.

Alba permanecia parada. Nenhum de seus músculos respeitava seus comandos. Ela o sentia parado atrás e via com seus olhos marejados uma adaga se aproximar de seu pescoço...

-ALBA! ALBA!

Que voz era aquela cada vez mais alta.

-ALBA! ABRA QUERIDA... POR FAVOR! ESTÁ ESCURO AQUI E JÁ PERDEMOS ALGUM TEMPO DE NOSSA SESSÃO! AUGUSTO ESTA AGITADO AQUI! - seguidas de várias batidas intensas na porta.

E ali estava Alba, com as mãos na bola de cristal. Sentia cheiro de sangue no ar agora. O que seria aquilo, uma visão? Custou-lhe recobrar todos os sentidos e perceber que aquilo não era real.

Aproxima-se da porta e a destranca. Irene e Augusto entram eufóricos na sala.

Lá fora, do outro lado da rua, está um homem... casaco pesado e chapéu. Diferente de antes seus olhos agora se cruzaram por um breve momento e ele seguiu. Seus passos levavam a escuridão consigo e Alba já via os raios de sol ao horizonte.

Ao retornar próxima a mesa percebeu que uma das cartas estava afastada das demais, como um descarte. E para sua surpresa ao virar, era: o Diabo.

Córdia
Enviado por Córdia em 25/07/2020
Código do texto: T7016619
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