Um homem chamado Padre
“Depois da morte voltas pra absolver o justo e o pecador,
eu antes da morte já condenei o pecador, o justo e eu mesmo.
Senhor do mundo, me tira de mim pra que eu possa olhar os outros e eu mesmo.”
Murilo Mendes
No tempo em que eu acreditava em bem e mal eu desacreditava das pessoas. Eu pensava sobre muita gente o que eu penso sobre brinquedos de criança: pensava que eles não tinham vontade própria, que eram regidos por algum cientista louco fazendo experiências em um laboratório.
Pouco depois desse tempo eu conheci o padre M. Ele era famoso por seus sermões. Dizia nas missas ou em público que o bem e o mal é apenas uma doença no corpo e na cabeça da gente. Alguns anos depois foi expulso da igreja. Hoje eu compreendo o motivo, mas naqueles anos eu não compreendia. Como não compreendi o que aconteceu naquela manhã de sábado, seca e fria, há trinta anos.
Se não me trai a memória o que houve é o que passo a relatar.
Aos domingos eu era coroinha da igreja do bairro em que morava. Durante a semana, depois da escola, estava encarregado de levar as doações, remédios, roupas que os fiéis anônimos deixavam na coletoria da igreja para que fossem doados, em sua maioria, para o asilo da comunidade. Fui numa dessas idas ao asilo que me deparei com uma cena perturbadora.
Assim que abri o portão me vi no meio de um grande tumulto. Serventes e funcionários do lugar corriam em todas as direções enquanto duas enfermeiras robustas se revezavam segurando a maçaneta da porta de um dos quartinhos que ficava no final do longo corredor à direita de quem entra no local. Elas me olhavam com olhos apertados, as caras vermelhas e suadas de fazer força. Do outro lado da porta chegavam as batidas, os chutes e os gritos que pareciam escapar de uma garganta muita velha e ao mesmo tempo muito forte. Quando tentei avançar um passo fui parado por uma senhora de vestido preto que me ordenou aos berros:
-Você aí, chame o padre M!
Deixei as sacolas a um canto e não me lembro mais quanto tempo levei de ida e volta, do subúrbio onde ficava o asilo até o centro da cidade. O que não esqueço jamais foi o que o padre me disse depois de eu ter explicado o que vi. Ainda vestindo a batina e calçando as botas ele falou:
-Todo demônio tem sua história, mas não está na Bíblia.
Ele saiu apressado da casa paroquial e entrou na garagem. Um minuto depois, a picape velha partiu roncando e deixando um canudo de fumaça azulada para trás. Eu pulei no selim da bicicleta e pedalei de volta ao subúrbio. Quando cheguei ao asilo o local estava tranquilo. O silêncio era tanto que o barulho da minha bicicleta ao cair no chão fez virar meia dúzia de rostos em minha direção e da boca daquela senhora de preto arrancou um psschiitt seco e sonoro.
Estavam todos enfileirados por ordem de curiosidade do lado de fora do quarto. As enfermeiras robustas eram as últimas da fila. Olharam-me com gratidão assim que me aproximei . Uma delas, a que parecia mais jovem, me puxou pelo braço e segredou-me ao ouvido:
-O padre M chegou, bateu à porta e entrou. Agora estão rindo lá os dois.
Para entrar no clima da multidão tratei de pôr uma cara de espanto também. Encostei-me o máximo que pude às costas da enfermeira e arregalei os olhos. Fiquei sentindo o cheirinho de suor e clorofórmio e roçando minhas roupas empoeiradas no seu jaleco branco. Por mim ficaria mais algum tempo, no entanto a porta do quarto se abriu e o padre M e um idoso saíram de braços dados como grandes amigos. Nada disseram, apenas caminharam diante dos curiosos e pararam ao lado das enfermeiras.
O padre M o deixou aos cuidados das duas moças, não antes de acalmá-las, e me puxando pela gola saiu incontinenti do lugar. Ainda voltei para pegar a bicicleta e colocá-la sobre a carroceria da picape. Partimos em direção á igreja. Ele dirigia calmamente, eu me roía de curiosidade. Não aguentando mais perguntei:
-O que o senhor fez para acalmar o velhinho?
Mirando-me com grandes olhos escuros ele reduziu a marcha e estacionou o veículo. A seguir, olhando para fora, começou a falar de forma lenta e natural. Disse que o idoso só precisava esvaziar o medo que tinha no corpo e que uma das formas de esvaziar o medo é transferi-lo para outras pessoas. Dessa vez padre M me encarou, pôs a mão magra e suada no meu ombro e arrematou a conversa:
-O medo é surdo, mas fala muito. Eu apenas ouço.
Deu-me um tapinha na cabeça e ligando a picape saiu vagarosamente. Nada disse até chegarmos à paróquia. Retirou a minha bicicleta da carroceria e me disse que, após regar o jardim da casa paroquial, eu estava dispensado da missa de domingo próximo. Quando eu quis saber o motivo ele se saiu com essa frase enigmática:
-Vá onde o medo mora e o desaloje. Jesus não sente medo.
Só quando pedalava despreocupado para casa foi que entendi o que ele quis dizer. E compreendi mais ainda quando vi a ambulância parada no portão do asilo.
Uma adorável enfermeira explicava gentilmente a um idoso que ele deveria se deitar na maca no compartimento traseiro do veículo. A outra enfermeira apenas olhava e, impaciente e nervosa, balançava a cabeça. A adorável sorriu para mim, eu sorri de volta, o velhinho sorriu para ela e, por fim, se deitou. A enfermeira ajustou as correias de proteção e protegeu a cabeça dele. Depois de entrar, fechou a porta com cuidado. O carro saiu.
Eu fiquei parado, olhando. Creio ter ficado em paz por um momento. Depois a vida seguiu como sempre segue: primavera, verão, outono e inverno. Voltei várias vezes ao asilo nos fins de semana. Conversei muito com aquele homem. Na verdade ele conversava comigo, eu apenas ouvia. Nunca mais soube que tivesse tido outro ataque de loucura. Viveu mais cinco anos e depois silenciou os medos.
Padre M ficou na igreja pouco tempo. Fiquei sabendo que depois de discordarem de seu catecismo o enviavam a outras paróquias. Por fim, por vontade própria ele partiu para a selva. Foi o que me disseram. As más línguas falam que ele se apaixonou por uma mulher e por isso abandonou a batina. Bom, as pessoas falam o que querem e o que temem. Eu prefiro acreditar que ele foi ao encontro do medo do mundo.