Fantasmas

É fácil cair em uma rotina quando se tem um horário de chegada e saída de um lugar em que se tem que passar umas dez horas por dia. Você se acostuma com o caminho, decora as placas e até consegue prever como estará o trânsito em determinado dia. Na realidade, você nem liga mais para o que está a sua volta, simplesmente tenta aproveitar esse tempo inútil. Alguns leem um livro, outros escutam música, colocam o papo em dia ou simplesmente ficam absorvidos pelos seus pensamentos. Embora no começo reparasse em tudo, você agora não repara em mais nada no caminho.

As pessoas que são vistas todos os dias no seu trajeto para o trabalho não passam de desconhecidas. Todos os rostos já estão decorados e possivelmente já até sabe alguns detalhes da vida deles só por ouvir algumas conversas sem querer. Talvez até perceba o sumiço de um deles algum dia, mas não irá se importar por mais do que um minuto. Afinal, por serem desconhecidos, não são ninguém mesmo estando mais em sua vida que alguns familiares.

A rotina, porém, sempre é interrompida pelo menos por um pequeno intervalo de tempo. Nesse dia em específico, você estava caminhando em direção ao ponto de ônibus e, como sempre, a mais bela dessas pessoas desconhecidas estava a sua frente, mas com uma distância bem menor do que a usual. O dia era bonito, com um sol que encostava na sua pele e ia a aquecendo lentamente. Talvez fosse por causa dessa sensação boa que um impulso começou a surgir dentro de você e uma crescente vontade de falar com ela começou a aflorar em sua mente. Tentou pensar em possíveis assuntos que renderiam alguma conversa, mas nenhum parecia ser bom o suficiente. Foi adiando, pensando que em instantes surgiria algum assunto melhor. Adiando porque talvez ela acabasse puxando assunto com você. Adiando porque tinha medo da rejeição.

Mas as chances não são eternas e, do mesmo jeito imprevisível que elas vêm, acabam indo. Inesperadamente rápido. Sentindo um vento no rosto, você vê a chance sumindo. Esse vento é forte e te joga no chão, te deixando assustado, completamente em choque. O seu rosto fica com as expressões paralisadas e os olhos vidrados, enquanto gotas quentes escorrem pelo seu rosto. É o sangue de alguém desconhecido. Esse alguém, que nem pôde te rejeitar, está prensado entre uma parede e um carro que estava desgovernado. De forma rápida e inesperada a sua chance se foi para sempre.

Qualquer assunto que pense agora parece interessante. Não há um sequer que não seja válido para puxar uma conversa. Qualquer coisa seria boa o suficiente para fazê-la parar por um segundo, tempo o suficiente para ela sair da rota de colisão. Era só você não ter sido um covarde e agido. Antes de tudo acontecer, você sentiu o que era o certo a se fazer. A culpa te consome. A culpa te consome. A culpa te consome. E vai te consumir até mesmo quando os vermes estiverem consumindo o seu corpo. O peso da morte de um desconhecido estará eternamente em sua consciência.

O dia seguinte chega porque o tempo obrigatoriamente anda, mas o eterno continua parado. A rotina te obriga a ir para o trabalho e a ver quase todas as pessoas desconhecidas novamente. Enquanto anda, você consegue vê-las paradas no ponto de ônibus, um pouco distantes. O nervosismo começa a aumentar quando percebe que uma dessas pessoas está te observando. Ela parece te julgar como se soubesse que você deixou de salvar uma vida. Os olhos dela te condenavam e eram tão penetrantes que pareciam invadir a sua mente, te torturando.

Quanto mais perto chegava, mais pessoas pareciam te encarar. Nem o simples ato de piscar era observado, só olhares e julgamentos. A poucos metros do ponto sente as suas mãos suando e os seus dedos se movendo numa indecisão entre fechar ou não o punho. A sua respiração ficava mais curta a cada passo, dando para ver o seu peito descendo e subindo como se tivesse acabado de correr uma maratona. O seu cabelo já começava a se molhar com o suor da sua testa.

No momento em que chegou ao ponto, só queria sentar e chorar, então foi em direção ao banco no meio de todos aqueles desconhecidos. Fechou os olhos com força para tentar segurar as lágrimas e tentar esquecer a dor que sentia. Quando abriu os olhos, viu todos os desconhecidos em um círculo ao seu redor. A sua respiração parou por um momento e o seu olhar estático e assustado não escondia mais os seus sentimentos. O seu corpo parecia não se aguentar dentro de si mesmo, então você cai de joelhos no chão. Em um segundo, o corpo de todos virou uma névoa espessa que girava ao seu redor. Você começa a sentir uma grande pressão sobre o seu peito como se ele tivesse sendo esmagado por uma mão gigante e impiedosa. A névoa a sua volta começa a girar cada vez mais rápido, formando um sufocante redemoinho. O ar dos seus pulmões parece ser puxado para fora e o seu abdômen começa a se contrair para ajudar a respirar, mas parece que não há mais nada na atmosfera. Os seus olhos se reviram tentando controlar a dor e agonia enquanto o seu corpo se contorce e enrijece ao mesmo tempo. A escuridão chega lentamente enquanto a culpa te consome.