Contos de Minas - A Mulher Do Retrato Preto e Branco
Quando a jardineira entrou na cidade, ele se sentiu mais animado, afinal a viajem estava terminada, a canseira de tantas horas seria logo esquecida. Ao circundar a praça e se aproximar do ponto de parada, viu pela janela do velho ônibus, do outro lado da rua, o seu cavalo selado, pronto. Não entendia como é que souberam que ele chegaria naquele dia e naquela hora.
Sua intenção não era a de chegar naquele mesmo dia na fazenda. Iria pousar no único hotelzinho dali e no dia seguinte sim daria um jeito de chegar finalmente em casa. Era tarde e a noite o pegaria no meio do percurso de dezesseis quilômetros.
O cavalo estava lá, no jeito. O dono do armazém lhe disse que não fazia meia hora ainda, que aquele menino montado em um alazão, puxando seu cavalo pelo cabresto, o havia deixado lá, avisando que o dono iria pega-lo assim que chegasse de viajem.
Sem conseguir imaginar como é que era possível aquele acontecimento, ajeitou sua bagagem na garupa, montou e seguiu para a estrada pedregosa e empoeirada, rumo à fazenda.
Só depois de uns poucos quilômetros atinou que estava muito cansado e faminto, naquele repente de ter encontrado o cavalo pronto, não se lembrou de comer ou pelo o menos de comprar alguma coisa para comer durante o percurso.
Ao chegar no pequeno córrego que cruza a estrada, na baixada depois dos eucaliptos, já havia escurecido e a lua minguante não ajudava. Seu cavalo se abaixou para beber e ele resolveu apear para também tomar um pouco de água. Não era de se amedrontar, mas se arrepiou, pois embora nada tenha visto, teve a sensação de que além dele e do cavalo, mais alguém bebia com eles ali. Percebeu que o cavalo reagiu como se quisesse refugar e depois se acalmou.
Montou e seguiu. Pensava em chegar e se banhar para descansar, imaginava como estaria confortável sua cama, justificava-se de que sua canseira o fazia ficar pensando no descanso. Esforçava-se para pensar em sua casa, em sua família. O que ele não queria era ver que estava com medo, com bastante medo, pois desde que saiu lá do córrego, sentiu que não tinha o pleno domínio sobre o cavalo, parecia que ele estava sendo puxado.
Seu cansaço o levou ao sono. Dormiu sobre a montaria. Acordou e se assustou, estava em um caminho desconhecido, mesmo com a noite escura ele reconheceria se estivesse na estrada certa. Tentou retornar, mas o cavalo não respondeu ao seu comando. Estava tão cansado que nem se importou muito com a situação. Acabou dormindo novamente.
Acordou, estava montado, o cavalo parado em frente a uma casa desconhecida. A porta estava aberta. Lá dentro uma luz de vela em cima de um armário iluminava precariamente o ambiente. Apeou e subiu alguns degraus, olhou para traz e viu que seu cavalo estava sendo desarreado, não conseguia ver quem é que estava tirando o arreamento. Falou boa noite, mas não obteve retorno. Viu quando o cavalo, sem arreamento, foi espantado saindo a galope na escuridão.
O sono, a fome, o cansaço, lutavam para vencer o medo que tendia a dominar. Nunca estivera naquela casa. Não sabia como sair dali. Teria que ir a pé, pois seu cavalo havia desaparecido. Resolveu entrar. Deu dois passos dentro da grande sala e uma porta interna se abriu lentamente, como que empurrada pelo vento, fazendo um rangido muito suave. Um arrepio que se iniciou em sua face, passou pela nuca, pelas costas de cima a baixo, chegando aos pés, o fez estremecer. Viu pela fresta daquela porta, uma mesa grande, retangular, em cima um castiçal com duas velas acesas, dois pratos, um em frente ao outro, talheres, uma garrafa de vinho, duas taças de cristal. A toalha que cobria a mesa lhe era familiar. Há muito pouco tempo teria visto uma igualzinha, mas não conseguia recordar onde.
Deu meia volta para sair, momento em que porta bateu, fechando-se à sua frente. Não teve coragem para abri-la. Voltou-se para a parte interna. Molhado de suor, lentamente foi em direção daquela porta semiaberta. Com todo o pavor que sentia, abriu a porta e se adentrou. Do lado direito da sala, observou uma poltrona e perto dela um mancebo, onde estavam pendurados um casaco e uma bolsa, que também lhe eram familiares, porém, não lembrava por que.
Começou a falar tentando espantar o medo, perguntou pelas pessoas da casa, mas nada de resposta. Nenhum movimento que pudesse encoraja-lo. Coisas bem sutis e amedrontadoras sim aconteciam. Quando retornou seu olhar para a mesa, ela já estava servida. Como quem está sendo empurrado, ele se sentou na cadeira diante do prato. Percebeu que alguém se sentou do outro lado, mas uma penumbra lhe cobria os olhos quando olhava naquela direção. Viu que a outra taça foi erguida lhe propondo um brinde, nada fez, mas ouviu o tilintar dos cristais.
O pavor levou-lhe a fome, mas não conseguia deixar de comer. Achou a comida deliciosa e imediatamente lembrou que recentemente havia provado aquela mesma delicia, mas não se lembrava em que lugar. Uma valsa muito, mas muito suave, foi lentamente dominando o ambiente. Ele começou a se sentir levitando, seus passos mudavam sem que ele desejasse, foi sendo levado, sentiu uma parceira tocar-lhe em posição de dança, não conseguia ver com quem bailava.
Não percebeu que as velas se apagaram, estava embalado em uma situação de prazer e pavor. Seu paletó, com suavidade lhe foi tirado. Mãos suaves e unhas compridas, soltaram sua cinta, roçaram com carinho seu pescoço enquanto desabotoavam a camisa. Sem toda a roupa, as mãos misteriosas percorreram os lados internos de suas pernas, iniciando nos tornozelos e findando na virilha, desceram dos ombros à cintura em arranhão mesclado de prazer e dor, findou com um quentíssimo beijo na nuca, que lhe jogou aos lençóis. O inferno se fundiu ao céu e, no momento do jorro que também faz a vida, foi-lhe fechada a alma no grilhão da escravidão.
Acordou. Todos os sentimentos eram um somente. A indiferença. Foi com ela que viu que estava em lugar tão bem zelado, como igual nunca vira. Foi com ela, que pela janela, reconheceu sua fazenda lá do outro lado do vale e descobriu que se encontrava no casarão do recanto, onde todos os escravos que iam nunca mais voltavam, onde brotava todo o desgosto de sua avó, onde seu avô pousava. Foi com ela que observou seus sapatos escovados e suas roupas como que lavadas e passadas sobre o outro travesseiro intacto. Foi com ela que reconheceu o casal no retrato preto e branco, ele seu avô, e ela, aquela com quem tinha flertado há dois dias passados. Ela mesma, a mulher do retrato, ela que usava aquele casaco e aquela bolsa. Era ela mesma a mulher do retrato, da pousada da toalha da mesa e da comida gostosa. Foi para ela que ele lamentou a falta de oportunidade e ela lhe consolou dizendo que muito em breve se encontrariam.
Foi com indiferença que tomou o café, muito bem preparado sobre a mesa, que viu o fogão de lenha aceso lá na cozinha. Foi com indiferença que encarou o ambiente de serviços perfeitos, mesmo sem ter ninguém. Foi com indiferença que viu seu cavalo prontinho lá fora, tal qual lá na porta do armazém.
Foi assim que na porta, na despedida, beijou e abraçou o nada.
“- À noite retornarei”.
O casarão lá do recanto é assombrado!
De longe são só ruínas.
Lá dentro, eternizou-se o palácio do só eu, tudo e todos são só prazer e serviço.
Suas chaves são entregues em um flerte.
Como vai você?
Prazer em te conhecer!