Descoberta
É como uma grande descoberta; o amor.
Como pode ser um toque tão... bom? Como é engraçado descobrir o novo. Sentir no outro uma inevitável queda por um sentir sublime, um tesouro da perpetuação, uma promessa por uma entrega... Prazer. Corpos jovens entendendo como desfrutar do que sobrou depois de tantas perdas para o Homem, deixando de ser inocentes pra serem humanos. Pra que a vida sempre exista. O prazer da vida...
Laís entregou-se muito nova a Fernando, e ele tinha apenas dezessete. Ela, com seus dezesseis apaixonados, decidiu seguir o fluxo de seu ciclo de amizades, percebera os sinais da maturidade imatura e cedeu ao encanto. Era bom ser como as outras. Queria ser chamada de mulher e até onde sabia, casaria com Fernando e seria dele para sempre. Apenas a ele se entregaria, não importava se as amigas dissessem que era pra ficar com alguns pra poder ficar depois com um só, ela estava perdidamente louca por ele quando resolveu deixar que ele fizesse o que tanto queria... Adolescentes deixam pra pensar depois.
Esperavam a mãe dela dormir, a velha Dona Gilê cochilava bastante, então saiam em silêncio para a varanda onde bem de mansinho deitavam na rede. “ Meu Deus Fernando, cuidado... minha mãe vai ouvir...” Os pais dela deixavam que a filha namorasse porque conheciam toda a família de Fernando. Mas na rede, Laís tirava sua calcinha por baixo da saia e Fernando, suando como uma panela, desabotoava lentamente o velcro da bermuda, que ainda assim fazia um som crepitante que parecia poder ser ouvido a quilômetros. Então, confiando no volume da televisão, balançavam a rede suavemente sobre um mar de descobertas, morrendo de medo de serem pegos no ato indevido. Aproveitavam que o pai dela só chegava às sextas.
Os meses se passaram, e ambos pareciam mais adultos, mais responsáveis. Fernando tinha dito que não era seguro não se prevenirem, não queria ser pai, não ainda, frisou, e Laís determinou que a história de “coito interrompido” estava encerrada. “ Eu também não tô pronta pra ser mãe, a gente tem que ter uma casa primeiro”, “Pois é, e eu tenho que tá vivo pra gente casar, se teu pai souber...”. Laís depois de se entregar passou a ensaiar como ser mulher, mas não como em contos de fadas, ser mulher como as que figuravam em seus romances proibidos para o Ensino Médio. Passou a observar os contornos do seu corpo no espelho, a brancura de sua pele, a firmeza de seu corpo de uma quase mulher. Começava a perceber que era desejada por outros. Mas era Fernando o seu único e eterno amor. O primeiro e único amor. Nenhum outro a tocaria. Jamais.
É evidente que Fernando, no ápice de sua trajetória, se sentia o mais lindo e poderoso entre os amigos. Não era mais virgem, sua namorada era uma das mais gatas do colégio. Status. Gostava demais de Laís mas como ele provavelmente como a maioria dos homens só viria a amadurecer por volta dos vinte, pensava em viver a vida e o amor, mas casamento e família ainda não eram páreos para cerveja e futebol. Só depois. Bem depois.
Um ano de namoro trouxe pra o jovem casal uma pequena parcela de experiência, pelo menos tinham consciência do compromisso que tinham, eram fiéis e sempre faziam promessas e juras de eterna paixão. O sexo e o amor se fundiam. É como a descoberta torna a vida muito mais feliz pra quem ainda não sente o peso dos verdadeiros compromissos. Eles eram novos mas seus desejos não se diferenciavam muito dos de um casal “casado”. Talvez fosse influência da mídia ou quem sabe as experiências imaginárias regidas por hormônios fervilhantes de antes fossem o combustível pra os dois que mantinham uma média diária e semanal acima dos leões africanos. Aproveitavam enquanto a curva estava ascendente. Já não esperavam Dona Gilê dormir. As camisinhas não faltavam.
Quebraram certa tarde a Lei do Coito Interrompido criada por Laís e no alvoroço que se sucede próximo ao fim, Fernando propôs algo diferente. Falou com o tom de quem repetiu a cena do filme várias vezes até aprender como se portar como o ator, como ser persuasor, ele disse “É só fingir que é um pirulito amor... Deixa de vergonha! Vem!”, e Laís, que era tímida, mas faria qualquer coisa pelo amado, sentiu algo como um pressionar em seu peito, como se de repente aquilo tudo se tornasse repulsivo. Fernando percebeu e pediu desculpas, ainda não conheciam bem as preliminares, pensou que Laís havia ficado chateada com a proposta. Começavam pelos fins, apressados, mas vinham experimentando sugestões de amigos.
Mas a repulsa que Laís sentira não foi por vergonha ou timidez erótica. As palavras ditas pelo seu grande amor acionaram como um controle remoto imagens desconhecidas que imediatamente a fizeram lembrar de algo de muito longe em sua memória. Não soube precisar mas sabia que já havia ouvido aquilo. Quando? Não sabia se era alguma coisa dela, mas a lembrança foi muito real.
Não chegaram a finalizar as “atividades” porque ouviram o portão sendo aberto e trataram de se vestir às pressas e sentar em frente à televisão, imaculados e comportados, como os pais sonham que os filhos sejam. Dona Gilê os olhava e sempre perguntava se estavam estudando. Diziam que sim. Laís não conseguiu tirar o que havia lembrado da cabeça, tinha muitas lembranças antigas, até do tempo do Maternal, com apenas três anos. Parecia que havia tido um deja vu de uma época infantil, como se soubesse que era muito criança quando ouviu aquilo. Procurou não pensar mais. “Fingir que é um pirulito...”
No segundo ano de namoro as coisas haviam avançado muito e os dois já começavam a dar sinais de uma intenção mais concreta. A fase da inconsequência começava a se atenuar. Os pais de ambos conversavam com o jovem casal, davam conselhos, fingiam não saber das coisas que andavam fazendo. Lembravam sempre da importância dos estudos antes de qualquer coisa, já que agora eram adultos perante a Lei, precisavam assumir a responsabilidade por seus atos e tudo o mais que os pais temem que aconteça. Filhos. Os filhos dos filhos. Sempre eram ouvidos sermões sobre as dificuldades da vida real; impostos, salários baixos, estresse, inflação, corrupção, religião, morte, enfim. Eles sempre balançavam a cabeça e assim que se viam sós, faziam o que a descoberta de dois anos antes os ensinara; eles se amavam...
Laís precisou contar a verdade para a mãe, mas pediu que não contasse ao pai. Seu Nogueira trabalhava de segunda à sexta no interior, era chefe de almoxarifado de uma grande empresa, voltava sexta-feira à noite e passava o fim de semana em casa. Era um homem silencioso, homem de princípios antigos, deixava que a esposa cuidasse da educação da filha e de qualquer problema que a mesma causasse. Ele respondia apenas pelo setor financeiro da casa. Sonhou com um filho mas Deus sabia o que fazia. “ Minha filha... minha filhinha... você tem que se cuidar, pense no futuro, homem não pega bucho não”, Laís fez a mãe prometer que não o contaria após ouvir uma longuíssima explicação chorosa sobre de onde surgem os bebês e como o corpo da mulher reage ao tê-los, como ele às vezes nunca volta a ser o que era, exemplificando com fotos antigas dela mesma antes de ter Laís. Dona Gilê era bastante ativa antes do casamento mas o enlace trouxe obrigações que extraviaram seus hobbies e suas predileções, restando apenas os seriados e os cochilos de tédio.
Sentados à mesa para o jantar, a família Nogueira acrescida do genro Fernando conversava sobre tudo, e sempre o assunto voltava para o âmbito de casamento e filhos. A conversa não era desagradável porém tinha um toque de profecia que deixava Fernando balançando compulsivamente a perna por baixo da mesa, Laís percebia e lhe beliscava a coxa para que parasse. Conversa vai, conversa vem, Dona Gilê lembrou de algo que soube logo cedo e contou à família o que pra ela era uma ótima notícia: sua prima, Silvana, que estava morando em outro Estado a mais de 10 anos, estava voltando para passar uns dias com eles. Contou pra Laís que Silvana era sua madrinha. Correu rapidamente até seu quarto e quando voltou trazia um álbum esquecido que parecia ter saído de um museu. Abriu-o e mostrou a Laís e Fernando quem era Silvana. Nas fotos podia-se ver Laís muito novinha, a mãe disse que tinha 5 anos na época, nos braços de Silvana com sorrisos largos como se estivesse acontecendo algo incrivelmente engraçado e feliz, um pirulito na mão, vestia um vestidinho rosinha, cabelo com duas trancinhas laterais, mas o rosto parecia não ter mudado nada. Na última foto do álbum, Laís estava nos braços de um homem que ela julgou não conhecer, era um homem com um grande bigode, a cara vermelha, tinha um sorriso suspeito no rosto, segurava Laís com um só braço, na outra mão podia-se ver um cigarro entre os dedos. Dona Gilê disse que ele era Rubens, marido de Silvana, seu padrinho.
Laís sabia que havia sido batizada porém não tinha lembranças dos padrinhos, não ligava muito pra essas coisas. Porém ao ver aquelas fotos um pressentimento esquisito pairou até espocar sobre a imagem da última foto, ela nos braços daquele homem desconhecido. Era a única foto em que Laís não sorria. Aquele homem parecia alguém, sabia que as memórias às vezes se perdem, estava estudando pra o vestibular de Psicologia, amava entender a mente, por isso se sentia confusa sobre o que pensar a respeito. Os padrinhos chegariam em alguns dias.
Era manhã quando eles chegaram, Laís ainda estava no colégio. Dona Gilê sentia-se bastante entusiasmada porque Silvana era sua prima favorita, haviam sido criadas como irmãs. “ Vana! Quanto tempo! Como foi a viagem? Me conta tudo!” Rubens também foi abraçado e os três conversaram sobre tudo o que pode ser possível até que cansassem e resolvessem almoçar. Silvana não via a hora de ver Laís, se perguntava como estaria sua pequena depois de 13 anos desde a última vez em que a vira. Rubens como sempre, preferira deixar as mulheres à vontade, sentou-se na rede da varanda e acendeu seu cigarro. Seus olhos não desgrudavam do portão. A qualquer momento ele se abriria e ela entraria. Laís. Sua querida afilhada.
Depois de incontáveis beijos na esquina de casa, Fernando permitiu que Laís fosse pra casa. Ela esperou que ele dobrasse na rua em que morava e só então caminhou, ou melhor, flutuou com um sorriso nos lábios, uma garota apaixonada pelo rapaz que provavelmente seria o seu homem. Seriam os primeiros e únicos para ambos, haviam chegado a essa conclusão. Eles queriam. Caminhou com pressa, estava com fome, as aulas finais haviam sido um saco, Física e Matemática pra quem gosta de assuntos do “Ser” são como uma tortura. Abriu o portão de casa e entrou apertadíssima querendo ir ao banheiro quando se deparou com um homem na sua rede. Era Rubens.
Os livros que carregava escorregaram e ela desajeitadamente sorriu quando ele se levantou e disse “Cadê a benção do padrinho?”, com o sorriso que ela viu na foto. Aproximou-se e o coração de Laís disparou inesperadamente. O abraço do homem cheirava a fumo, suor, seu bigode áspero roçou na bochecha macia de Laís e ela pensou que iria gritar quando ele a apertou contra seu peito grudento. Porém agiu com educação e ouviu os elogios disparados ininterruptamente antes que Silvana surgisse e a agarrasse deslocando-a do chão.
- Você tá linda menina! Que espetáculo de afilhada eu tenho Meu Deus! - carinhosamente Silvana beijava e alisava os cabelos longos de Laís que se sentia um pouco envergonhada aos dezoito, mas ao olhar nos olhos da mãe e ver um brilho a tanto não visto, relaxou e se pôs a contar sobre ela. Resumiu os últimos 13 anos e Silvana sequer piscava ouvindo-a. Laís nem havia tirado a farda do colégio e já passava das 13:00, sua fome foi tanta que acabou passando. Mesmo sem conhecer aquela mulher sentiu que o que ela sentia era verdadeiro, era bom saber que ela era sua madrinha, mas aquele homem que permanecera na rede, do lado de fora como se aguardasse, ele lhe causava uma espécie de temor... De onde lembrava dele além daquela foto antiga?
Na primeira noite, uma sexta-feira, de 3 dias em que seus padrinhos ficariam hospedados, Laís foi deitar cedo, mesmo sem sono sentia que não queria estar entre eles. A conversa animada da mãe, da madrinha e do pai podia ser ouvida de seu quarto que ficava nos fundos. Não se ouvia a voz de Rubens, apenas o cheiro insuportável da fumaça de seus cigarros que pareciam ser acesos um na guimba do outro. Laís não conseguia explicar o que estava sentindo, mas não gostara daquele homem. Adormeceu desejando que os próximos dois dias passassem rápido, infelizmente seria um fim de semana, não haveria aula, sua atenção e consideração precisaria estar voltada aos seus visitantes e padrinhos.
Seu sono foi perturbador. Sonhou com várias imagens desconexas, viu a igreja em que se batizara, viu cenas do Jardim de Infância que foram revividas de maneira clara e real. Sonhou que fazia amor com Fernando na rede, mas quando foi beijá-lo ele tinha um bigode com cheiro de fumaça, se assustou e quando se levantou era Rubens quem a olhava sorrindo de maneira sombria... Acordou de madrugada sentindo o cheiro de cigarro que parecia tomar a casa toda, mas no silêncio, não ousou ir até o banheiro, temia encontrar aquela figura estranha e repugnante que se dizia seu padrinho. Não precisava de um, mas a cultura e a educação que havia recebido exigia-lhe um pequeno esforço, por sua mãe. Quando deitou novamente ouviu passos mansos e seu coração ficou apertado... uma presença pareceu se aproximar da janela fechada de seu quarto pelo lado de fora... ela podia ouvir a respiração... e no escuro da noite, os passos voltaram e se extinguiram. Laís pela primeira vez assumiu estar com medo, havia percebido como ele a havia olhado quando ela chegou. Era um olhar cobiçoso, lascivo, ele não parecia considera-la como filha.
Pela manhã os pais e padrinhos preparavam a churrasqueira. Salgavam a carne e bebiam cerveja. O dia estava ótimo. Para eles. Laís demorou meia hora estendida na cama até resolver sair do quarto. Tomou banho e vestiu uma roupa folgada, não queria aqueles olhos ameaçadores mirados contra ela, também evitaria deixar que a mãe percebesse algo de errado. Ela estava tão feliz, parecia outra vez a jovem que dezoito anos antes não tinha uma filha a quem dedicar a vida. Ligou pra Fernando, pediu que ele fosse até sua casa e ele lhe disse que só poderia ir à noite. Resolveu então que deveria enfrentar aquele incômodo armada do sentimento de segurança que sentia sempre que ouvia a voz de Fernando. Ela era nova quando o conheceu, ainda era, mas sabia que haviam crescido, de um jeito que só eles sabiam, eram amigos, namorados, os primeiros e os únicos na vida um do outro. Assim como sua mãe casara com seu primeiro amor, assim ela faria. E foi até a varanda ver como as coisas iam.
Ao lado dos seus pais e da esposa Rubens pouco a olhava, isso lhe trouxe um grande alívio. Mas sempre que via a possibilidade ele olhava e o sorriso enigmático, cínico, estampava-se no rosto vermelho e oleoso. Conversaram sobre planos futuros e Laís começava a ficar impaciente porque Fernando ainda não havia chegado, já era noite e o jantar seria servido antes que ele chegasse. “ Cadê teu namorado Lalá? Tô doidinha pra ver quem é o galã!”. Quando finalmente o jovem tocou a campainha, Laís respirou deixando escapar toda tensão que lhe consumia. Fernando foi apresentado aos padrinhos e bastante elogiado por Silvana, que disse que quando casassem teriam filhos belíssimos. Timidamente o casal sentou-se e manteve a postura enquanto os adultos tratavam de suas preocupações e anseios. Nos seis lugares dispostos à mesa, Rubens acabara por sentar próximo a Fernando, e Laís ao lado de Silvana, que não parava um minuto de lhe fazer perguntas e de lhe fazer promessas e propostas, chegou até a perguntar se ela não gostaria de ir com ela quando partisse. Já estava virando uma chatice. Laís não conseguiu disfarçar que tentava prestar atenção ao que Rubens conversava discretamente com Fernando durante o jantar, pela cara do namorado sabia que ele estava tenso, sua perna tremelicante não a deixava se enganar.
Após o jantar sentaram-se na varanda e abriram mais cervejas, a fumaça repulsiva vinda da boca de Rubens se espalhava como uma neblina. Durante os minutos tortuosos Rubens não se importou com o olhar temeroso de Laís, ele encarava Fernando que de olhos baixos tentava disfarçar que estava sem jeito. A voz de Silvana, que agora para Laís começava a se tornar insuportável, rompeu o silêncio e começou a contar uma história para Fernando de quando Laís era criança: “Sabia que a Laís quando era pequena tinha medo do vaso sanitário? Pois é, tinha medo de cair na privada e desaparecer, chorava desesperada e corria pra o seu peniquinho rosa! Quando ela tinha uns 5 anos eu e Rubens passamos por uma turbulência financeira grave e sua sogra, essa mulher incrível, foi a única que nos estendeu a mão. Moramos com os dois durante um mês até que as coisas se ajustassem e foi aí que soubemos desse medinho da Lalá. Só que o Rubens como o bom padrinho que é percebeu uma coisa e teve uma ótima ideia: Lalá adorava pirulitos, então ele comprou uma caixa deles e prometeu dá-la se ela usasse o vaso como uma mocinha que era. Foi muito engraçado! A Lalá levantou a tampa sozinha, sentou, fez xixi, puxou a descarga e depois veio correndo pedir a caixa! Rubens resolveu em alguns dias o que seus sogros já vinham tentando a mais de um ano!”, e os pais de Laís riram a lembrar do fato. Mas Laís não riu. Fernando sorria olhando pra o chão.
As lembranças dessa época surgiram como se brotassem do nada, ela lembrou nitidamente desse fato que ela sequer havia imaginado, seus pais nunca haviam contado tal história. Era o poder da memória. Ela lembrou que havia pego a caixa de pirulitos das mãos de um homem, e depois dado um beijo em seu rosto. Não queria acreditar que o homem de suas lembranças era aquele homem asqueroso que a fitava com total malícia no olhar. Então um redemoinho de lembranças que antes estavam dispersas foi se concentrando e de repente Laís sentiu vontade de chorar. Houve uma imagem entre as recordações que ela se recusou a aceitar... não... era coisa da sua cabeça, não podia ser verdade. Nessa lembrança um homem de bigode limpa o seu rosto com um lenço, há algo em seu rostinho, algo que o homem se preocupa em limpar, o faz com pressa... Ele a limpa e faz o sinal de silêncio com o dedo em frente aos lábios. E sorri. Sorri como um demônio que aguarda sair de uma garrafa que o enclausura...
Laís pediu licença e foi ao banheiro. Vomitou. Não queria chorar mas uma tristeza esmagadora parecia espremer suas costelas. Sua memória era ótima, vivia contando fatos de sua infância que eram confirmados pela mãe que se admirava. Aquilo havia acontecido? Será que... não, não queria acreditar. Era algo aterrador pra se acreditar naquele momento. Despertou de seus pensamentos confusa quando Fernando bateu à porta perguntado se estava tudo bem e avisando que precisaria ir embora, já estava tarde. Ao acompanha-lo até a esquina Laís tinha os olhos avermelhados e Fernando nada lhe perguntou, limitou-se a dizer que seu padrinho gostava muito dela. A beijou e disse que talvez passasse o Domingo com os pais, iria fazer alguns consertos na casa, mas que na segunda-feira eles se encontrariam. Foi embora e quando estava entrando na rua em que morava a alguns quarteirões, chutou uma garrafa plástica que estava no chão num gesto de raiva e sumiu. Laís segurou as lágrimas e voltou pra casa onde se trancou no quarto sem se despedir de ninguém. Só então deixou que as lágrimas escorressem encharcando seu travesseiro. Chorava por algo que não sabia, que apenas sentia. Dessa vez, não sonhou.
Despertou às 11:30, vestiu–se, e com a cara de quem havia dormido pouco após uma festa de réveillon, caminhou pela casa esquecendo-se por completo da presença indesejada de seus padrinhos. Só depois de alguns minutos notou o silêncio na casa. Chamou pela mãe, foi até o quarto dela, nada. Caminhou até a cozinha depois foi até a área de serviço e também lá não havia ninguém. Por último, com um receio crescente, pensou em olhar na varanda, seu coração dizia que os quatro haviam saído pra fazer compras ou qualquer outra coisa. Se não a haviam acordado era porque queriam ficar entre eles, o que Laís aprovou com louvores. Já estava abrindo a porta de seu quarto quando de repente um cheiro assaltou suas narinas. Cigarro. Sua mão tremeu na maçaneta da porta porém ao mesmo tempo uma coragem avassaladora movida por um desejo de saber a verdade fez com que ela não entrasse. Parou por alguns instantes e então abriu a porta que dava pra varanda de sua casa. Lá estava Rubens deitado na rede, olhando-a, exalando a fumaça que tornava sua visão algo surreal e sinistro, ele parecia um fantasma na névoa.
- Bom dia minha afilhada! Dormiu bem? Sim? Que bom. Seus pais saíram logo cedo com a Silvana mas já tão voltando, acabaram de ligar dizendo que o trânsito não tá muito bom. Foram comprar cerveja e carne pra nossa despedida, que é uma pena - tragou o cigarro e sorriu diabolicamente pra Laís que mantinha a expressão tão indefinida quanto a de uma escultura.
- Eu vou ficar no meu quarto, preciso estudar pra uma prova de Matemática amanhã, se precisar é só chamar - Laís sentiu a boca seca, falar com aquele homem era como enfrentar um medo que jamais havia imaginado, era um medo de que ele fosse o que ela não queria que ele fosse...
- Não, não vá, vamos conversar um pouco. Você cresceu muito Lalá, seu namorado é um cara de sorte, eu disse isso pra ele ontem. Hehehe... Acho que ele gostou de mim... Mas você só gostou de mim quando criança, agora pareço te assustar mas posso te garantir que sou extremamente inofensivo - sorrindo puxou a carteira de cigarros e percebeu que haviam acabado.
- Se importa de pegar meus cigarros na minha mala Laís? É que minha lombar tá me matando por isso não fui hoje com eles, preciso descansar um pouco. É ciático. Pode me fazer essa enorme gentileza? Só sinto por não ter pirulitos pra te oferecer hoje - falou e riu como se houvesse contado uma boa piada mas Laís continuou muda, a coragem estava em seu ponto alto. Mesmo assim pegou os cigarros.
- Ah, muito obrigado minha querida, você é um amor - era perceptível o cinismo com que ele falava, mas Laís sentia que as recordações de sua infância estavam querendo saltar pela sua boca, queria perguntar mas não conseguia, suas pernas vacilaram mas ela se manteve firme.
- Eu não gosto de você. Não me importa se minha mãe ama sua mulher, não ligo pra nada disso, só espero do fundo do meu coração que eu nunca mais te veja. Odiei ter conhecido você, você é... é... - os olhos de Laís estavam a ponto de esborrar e tudo que ela mais queria era sair dali mas algo a impedia. Era a curiosidade.
- Você se lembra não é? É por isso que não gosta de mim. Diga, você se lembra? Se não se lembra eu posso te ajudar se quiser - acendeu um cigarro e deixou seu olhar se demorar nas pernas torneadas de Laís.
- Do que você está falando seu velho canalha? Seu escroto! Diga! Vamos! - Laís agora chorava, o corpo tremendo, enquanto da rede, Rubens sorria.
- Você tá estudando pra ser Psicóloga né? Ótimo, é uma boa profissão. Mas eles não sabem nada de si mesmos. Só teorias e teorias, nunca nada certo. Vamos ver então como anda sua memória coisa linda... - nesse momento ele fez um pequeno esforço para frente e retirou do bolso de trás de sua bermuda um pirulito em formato de coração. Levantou um pouco a camisa e expôs sua barriga repugnante e peluda, abriu um pouco o zíper e introduziu o pequeno cabo do pirulito na fresta. Se inclinou pra trás na rede.
- É só fingir que é um pirulito... Sem contar nada pra a mamãe tá? - os olhos de Rubens brilharam e ele sorriu com satisfação. Gargalhou.
Laís pôs as mãos cobrindo o rosto. Tudo fez sentido... sentiu-se descoberta, sem roupas... Aquilo era um pesadelo inimaginável. As imagens que se sucederam como um trailer de horror e sadismo fizeram com que os elos soltos de sua memória se encontrassem e ela soube o que realmente havia acontecido; havia sofrido um abuso. Em sua inocência foi usada por um monstro pra saciar algum tipo de doença, ou de maldição, mas sabia que o que o homem limpara em seu rosto naquela cena perdida em sua memória havia saído de dentro dele... e ela era só uma criança... cinco anos... Deus, como isso pôde ter acontecido? Por quê? Não, não havia porquê. Havia somente a dor da verdade crua. Era como descobrir um cadáver embaixo da cama. Um cadáver no passado...
- Você foi minha Laís... antes que pudesse ser de qualquer outro, antes que aquele fedelho enfiasse em você eu já havia sentido como era o teu prazer... Ah como foi bom aquele dia... mesmo sem enfiar... Não adianta fingir mais porque já aconteceu, sempre que eu pensar em você saberei que já lhe possuí... Será nosso segredo. Mas agora deixo você com esse pirralho, eu gostava mais de você quando era pequena, quando não sabia diferenciar um pirulito de um... - e riu alto, tão alto que o som pareceu furar os tímpanos de Laís que chorava como uma desesperada.
Um carro parou próximo à sua casa e Laís ouviu as vozes de seus pais. Correu em prantos para o quarto e se trancou. Sua mãe entrou perguntando por ela mas Rubens disse que ela havia devia ter acordado cedo e saído, talvez tivesse ido na casa de Fernando, não a tinha visto. Sabia que Laís não teria coragem de encarar a mãe. Dona Gilê tentou a maçaneta mas viu que estava trancada e lamentou porque Laís não se despediria de seus padrinhos que já estavam de partida. Seu pai já estava pronto pra leva-los à rodoviária. Haviam saído para comprar passagens.
Com lágrimas abundantes e silenciosas Laís desligou o celular e cobriu o rosto com o travesseiro. O que seria dela agora que havia descoberto tamanho horror? O que diria pra Fernando? Diria? Não, não poderia dizer a ninguém, não conseguiria. Era melhor morrer do que revelar tal abominação. Chorou como se alguém tivesse morrido. O puro morrera... agora era só a mancha...
Do lado de fora da casa Silvana lamentava não poder se despedir de sua amada afilhada, enquanto Dona Gilê ligava para a casa de Fernando e ninguém atendia. O celular de Fernando e o dela também estavam desligados e Dona Gilê sentiu uma pontada de preocupação em seu coração.
- Ah, tá tudo bem, ela não sabia que iríamos pela manhã. Depois ligamos e nos despedimos, deixe nossa princesa reinar! - Rubens falou e Dona Gilê sorriu afetuosamente enquanto Seu Nogueira dava a volta no carro pra que todos entrassem.
Quando o carro seguiu viagem Laís abriu a porta e caminhou com passos lentos e pesados em direção ao banheiro, os olhos pareciam ter dois hematomas gigantes de tanto que chorara. Se olhou no espelho e as lágrimas escorreram como nunca antes imaginou poder ser possível. O homem limpa seu rosto... não... ela não consegue parar de reviver.
Caminhou até a varanda com uma tesoura de costura nas mãos e cortou a rede de balanço em vários pedaços. Percebeu algo entre os retalhos e quando o desenroscou era um pirulito. Um maldito pirulito. E era um coração... Juntou os pedaços da rede e retornou ao banheiro. Olhou por alguns instantes o vaso sanitário e percebeu que não seria possível esquecer aquilo, não, mesmo que vivesse cem anos aquilo a faria sangrar por dentro porque a vergonha a impediria de abrir a boca, calaria sua voz... Fernando, seu grande amor, não poderia saber. E ela queria esquecer... Puxou a porta da caixa-espelho onde estavam os produtos de higiene e pôs uma lâmina na navalha que o pai usava pra se barbear. Ajoelhou-se em frente ao vaso e lembrou que um dia teve medo dele, tinha medo de desaparecer. Mas agora não, desejava isso... desaparecer... Com as duas mãos dentro do vaso deixou que o sangue escorresse e levasse com ele a dor daquela descoberta, levasse com ele o medo de saber que algo terrível jamais seria esquecido, estaria sempre vivo num passado intocável. Inegável...
Porque Laís não suportaria guardar aquilo, mas sua memória... guardaria tudo...