A borboleta azul

Acomodado na cadeira de descanso, o coronel observa a brincadeira das crianças. Às gargalhadas,os bisnetos perseguem uma borboleta azul que sobrevoa o jardim.Seduzido pela graciosidade daquela imagem, ele demora a perceber a aproximação de uma das filhas. Ignora o semblante preocupado de Raquel. Em seguida, olha com desdém para o envelope que ela aperta nas mãos. Seu único interesse é continuar acompanhando a travessura dos bisnetos, que neste momento têm arranhões por todo o corpo mas, não interrompem a perseguição, muito menos, suspendem o riso espontâneo.

A filha puxa uma cadeira, atirando para longe o jornal do dia, lido e relido pelo militar,apesar dos apelos para que se distancie de notícias ruins. A expressão grave no rosto de Raquel não se altera. Conformada entretanto, com a missão delegada à ela pela mãe e os irmãos,escolhe as melhores palavras para anunciar ao pai a morte próxima. Ao final da sentença, o coronel agradece. Finalmente se libertará .

Diante da possibilidade de se livrar em breve do cheiro de sangue impregnado em suas mãos, ele se entusiasma.Encerrará finalmente, a contagem dos órfãos, frutos de sua conivência ou atuação.Gritos clandestinos não mais serão a melodia frequente a embalar suas noites.

Num gesto involuntário,abana a cabeça.Não compreende os manifestos insanos que pedem morte e censura. Marchas que tomam as ruas pela causa do obscurantismo, enaltecendo a violência e a repressão em nome de uma ordem mesquinha e gananciosa.

Há quase cinco décadas,ele carrega o peso da própria arrogância. Acorda,às vezes, durante a madrugada se perguntando porque obedeceu com tanta prontidão.Vergonha e culpa perante filhos, netos.

Raquel não compreende a serenidade do pai. A família comovida com o doloroso fim de um homem que,por toda a vida, defendeu os interesses da pátria .Ele, se deleitando na contemplação de duas crianças sujas de terra e cobertas de folhas secas.Indiferente ao resultado dos exames.

-Quanto tempo?-O coronel pergunta sem pesar.A dor provocada pelo câncer, muito menor do que o padecimento transportado na alma.

Se pudesse fazer um último pedido, gostaria que as crianças frequentassem a casa mais dias e se possível. que corressem pelo jardim atrás de borboletas coloridas.

Se morresse ao término de um dia assim, saberia que tinha sido perdoado.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 22/06/2020
Reeditado em 02/07/2020
Código do texto: T6984437
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