Dona Irene
Num bairro periférico, já faz algum tempo, residiam Humberto e Irene. E duas filhas.
Dona Irene seguia uma religião afro-brasileira. Tinha um terreiro. Durante 11 anos manteve a atividade, por vezes nas quintas-feiras – por vezes nas sextas.
Foi pessoa simpática, humilde, de bom coração. Faleceu repentinamente, de infarto.
Tempos depois Humberto estava em seu quarto, ali, perto da 1 da madrugada. As filhas dormiam no segundo andar.
Ouviu um bater de palmas, coisa rápida. Depois vozes de pessoas cantando. Como nos rituais dos tempos de Irene. Também coisa rápida.
O silêncio.
Levantou-se, mesmo com medo. Acendeu a luz, foi à cozinha. O espaço onde ocorriam as cerimônias ficava no quintal – era um barracão coberto.
Foi lá, luz acessa, viu algo, parecia um vestido.
Era.
Uma roupa preta e vermelha, a que sua mulher usava em rituais. Não quis pegá-la, estava temeroso.
Ficou ali, em pé, pensativo. Nunca tinha visto aquele vestido ali. O deixou no mesmo lugar, voltou para deitar-se.
As luzes apagadas. Estava quase dormindo – novamente escutou vozes, assim, um grupo de pessoas entoando cânticos. Batiam palmas. Ele paralisou, não podia mover os braços, pernas, a cabeça.
Estava com a alma aterrorizada. As filhas dormiam. De novo o silêncio, silêncio da madrugada, das trevas.
Humberto pegou no sono, estava exausto. No amanhecer do dia, ele foi ao barracão, queria ver se o vestido estava lá.
Não, não havia nada no lugar, tudo normal.
Não quis contar às filhas o que ocorrera na madrugada. Não.
Tempos depois Humberto vendeu a casa, foi embora com as filhas. Aquela cena, as palmas, os cânticos, o vestido vermelho e preto, só acontecera naquela madrugada. Apenas uma vez.