A COISA

Eu não gostava de ir para a casa da minha avó. Ela no morava no meio do mato, em um lugar que só se chegava por uma estradinha de terra. Era para lá que eu ia durante minhas férias, quando meus pais queriam se livrar de mim. Algumas vezes eu encontrava meus primos na chácara. Outras vezes não tinha ninguém para me distrair. Vovó era uma mulher forte e ativa. Ela fazia tudo dentro de casa. E também não tinha tempo para mim.

Eu devia ter mais ou menos quinze anos quando aportei em pleno mês de janeiro na casa dela. Para minha sorte, minha prima Betina estava lá e nós nos dávamos muito bem. Destemida, Betina não tinha medo de nada. Ela era um pouco mais velha do que eu e muito atrevida. Betina gostava de nadar no rio que cortava a propriedade a qualquer hora do dia ou da noite. Costumava circular pelos caminhos escuros em plena noite só pelo gosto de aventura. Eu não a acompanhava. Minha avó nunca desconfiou das loucuras da neta mais velha e, se algum dia soube de alguma coisa, também não se importou. Mas eu ficava tensa, deitada na cama, esperando, de olhos arregalados, minha prima favorita voltar para a segurança do nosso quarto quentinho. Eu tinha alguma desconfiança que alguns dos seus sumiços era para Betina se encontrar com algum namoradinho da redondeza. Porém, naquele fim de mundo eu não tinha a menor ideia de quem poderia ser.

Naquela noite Betina jantou normalmente ao meu lado, ambas sentadas no sofá, tagarelando, animadas. Peguei no sono em algum momento e quanto despertei, às duas horas da manhã, a TV estava desligada e eu sozinha. Estonteada de sono fui para o quarto que dividia com Betina. Para minha surpresa, ela não estava dormindo. Não estava em parte alguma.

A princípio, levei um susto. Depois me acalmei. Betina devia ter ido dar suas voltas noturnas. Dei de ombros, me preparei para dormir e o sono foi embora. Gostaria muito que minha prima voltasse logo para que eu pudesse ficar mais descansada.

Cochilei e acordei justo no momento em que ela entrava no quarto. Sentei imediatamente na cama e acendi o abajur. Fiquei assustada. Minha prima estava com as roupas em desalinho e descabelada. Não parecia estar retornando de uma aventura legal.

— O que houve, Betina?

Ela não me encarou. Tirou a roupa, vestiu a camisola e só então virou o rosto para mim.

— Uma coisa me pegou.

Betina estava sombria e meu coração ficou aflito.

— Que coisa, Betina?

— Sei lá – minha prima tremia. — No meio do mato tinha uma coisa. Ou alguém.

Me assustei ainda mais. Fiz menção de sair da cama e ir até ela, contudo Betina se cobriu com o lençol até a cabeça e me ignorou. Fechou os olhos e fingiu dormir.

*

Pelo restante do dia também fui ignorada por Betina. Ela construiu uma espécie de muro a sua volta e ficou quase em silêncio total o dia inteiro. Minha avó achou esquisito e perguntou o que ela tinha. Betina foi breve:

— Dor de barriga.

Tentei arrancar alguma coisa dela, mas foi inútil. Betina ficou alheia a mim todo o tempo. Reparei alguns arranhões nos braços dela e que foram disfarçados com um casaquinho leve.

A noite chegou e percebi que Betina foi se tornando mais ansiosa. Fomos deitar cedo e jurei para mim que não iria dormir para controlar os movimentos dela.

Caí no sono em menos de cinco minutos.

Acordei, de repente, às duas horas da manhã. Minha prima não estava na cama como eu já suspeitava. Joguei as cobertas para o lado e desci correndo as escadas que levavam ao andar térreo da casa. Mesmo com medo abri a porta da frente.

Lá fora estava frio e caminhei até a varanda. Minhas pernas tremiam tanto que me apoiei no alpendre. Tudo deserto e escuro. Betina estava em algum ponto do mato que cercava a propriedade. De longe eu escutava a correnteza do rio.

Não me agradava ficar muito tempo ali fora, mas eu temia por Betina. Por que ela fora atrás do perigo novamente? O que Betina tinha na cabeça?

Ruídos de passos um pouco mais à frente me provocaram um arrepio na espinha. As pernas me pesaram e eu custei um pouco a me mover do lugar. Os passos pareceram se aproximar e eu dei meia volta e entrei correndo na casa. Encostei-me à porta tentando puxar o ar. E se a “coisa” que pegara Betina tentasse algo contra mim? Sem pensar duas vezes tranquei a porta e, com as pernas bambas, me arrastei até a janela.

Escondida entre as cortinas, fiquei agachada espreitando o lado de fora. O luar iluminava um pouco mais agora. Tive a impressão que os arbustos se mexiam como se alguém estivesse por ali. O pavor foi tamanho que abandonei o posto e, na correria, derrubei o vaso preferido da minha avó. No quarto, lá em cima, me aproximei de novo da janela, tremendo inteira. Porém, desta vez, parecia tudo calmo.

Menos eu. Não iria conseguir pregar o olho até Betina voltar. Alguma coisa rondava a casa e eu não tinha a menor ideia do que seria. Não sei qual hora Betina retornou. Mas quando acordei (tive um sono recheado de coisas ruins) ela dormia com a expressão atormentada. Muito pálida.

Aquele dia foi esquisito. Estava nublado, cinzento e frio, em pleno janeiro. Betina passou o dia de chambre, apática. Vovó deu várias xícaras de chá para ela que, supostamente, sentia dor de estômago. Toda vez que minha vó ia até a frente da casa eu morria de medo que a “coisa” saísse do meio do mato e a atacasse.

Betina pareceu despertar por volta das oito horas da noite. Eu estava sentada ao lado dela quando minha prima exclamou:

— Eu preciso ir!

Sua voz saiu fraca e eu a encarei, pasma.

— Ir para onde, Betina? Você está doente.

Vovó estava no quarto assistindo TV e provável que não descesse mais.

— Ele... ele está me esperando.

— Meu Deus! Ele quem?

Betina parecia febril, o que eu confirmei quando encostei a palma da mão na sua testa. Ela não respondeu e caiu em um leve cochilo.

— Vamos deitar, Betina. Eu ajudo você.

Ela não ofereceu resistência e em poucos minutos Betina estava na sua cama com dois cobertores por cima. Não falou mais nada e deduzi que caiu no sono logo.

Restou eu. Sozinha, perguntei o que deveria fazer. A curiosidade era grande, maior que meu medo. Quem estava lá fora? Quem era o habitante noturno que rondava a propriedade da minha avó?

A coisa.

Desci, devagar, as escadas. Não haveria mal se eu fosse até a varanda. Ali estaria protegida. Se fosse o caso, era só correr de volta para dentro de casa.

O ventinho frio era um convite para que eu criasse juízo e retornasse para a segurança do meu quarto. Mas eu fiquei parada no meio da varanda esperando algo acontecer. Por que só minha prima podia cometer loucuras? Eu também queria emoção na minha vida. Um friozinho na barriga me deixou mais encorajada ainda.

— Ela não virá hoje – eu disse em voz alta.

Silêncio.

— Ela está doente.

Nada mudou. Desci os degraus da varanda e caminhei alguns passos. Seja lá o que fosse, a coisa não queria nada comigo.

Talvez eu não fosse especial como Betina o era.

— Ei, você está aí? – levantei a voz um pouco mais ainda temendo que minha vó escutasse. — Ela não virá ver você hoje.

Um ventinho mais frio fez com que eu estremecesse. Não se ouvia um único som naquele lugar. Decidi, então, voltar para dentro de casa. A razão me dizia que eu não era para estar ali.

Contudo, antes que eu me virasse senti algo se aproximando por trás de mim. Escutei uma respiração pesada e passos mais fortes. Não tive tempo sequer de ver o que era. Alguma coisa me envolveu passando os braços ao redor da minha barriga. Não tive voz para gritar. O hálito quente no meu ouvido fez com que eu me arrepiasse de prazer (Não! É errado!). Senti-me tonta de desejo, um arrebatamento nunca experimentado. Era tão bom que fechei os olhos, extasiada.

Desmaiei.

*

Acordei ao amanhecer de um dia sombrio deitada no piso gelado da varanda. Levantei, fraca, mal podendo sustentar as pernas. Minha avó não podia me ver naquela situação. Do jeito que pude, subi os degraus em direção ao meu quarto. Precisava da minha cama. Não sabia o que tinha acontecido, estava exausta. Me atirei na cama e dormi feito uma pedra. Quando abri os olhos outra vez era perto do meio dia. Betina estava sentada em sua cama e me encarava intensamente.

— Ele pegou você.

Minha cabeça pesava.

— Hein?

— Você não devia ter permitido – sussurrou ela com os olhos sinistros.

— Permitir o quê? – sentei com alguma dificuldade.

Betina veio até mim, devagar. Puxou para baixo a gola da camiseta que vestia. Dois furos bem redondos eram visíveis no seu pescoço.

— Betina, o que é isto?

Ela sorriu para mim. Seus caninos estavam maiores e pontiagudos. Eu a encarei, incrédula. Imagens de filmes de terror invadiram minha mente.

— Somos duas agora – ela murmurou se ajeitando ao meu lado.

Engoli em seco. Que merda era aquela? Senti uma fome incontrolável.

— Desejei tanto seu sangue... – Betina sorriu. — Mas eu não podia fazer isto com você.

— Quem é ele, Betina?

Ela estava tão bonita naquela manhã... Não tinha mais aquele aspecto doentio.

— Estou apaixonada, prima. Ah, eu o amo tanto.

Ela me alcançou um pequeno espelho. Procurei minha imagem no reflexo, mas não a encontrei.

Betina prosseguiu:

— Você não devia ter se envolvido, prima. Mas sua curiosidade foi além dos limites. Seguiremos juntas por toda a eternidade. Com ele. É isto que você quer? Responda logo.

Se eu negasse o que aconteceria comigo? Ganharia uma estaca pontiaguda bem no meio do coração?

— Betina, estou com fome – gemi. Minha fome era algo difícil de descrever. Não era normal. Eu poderia facilmente avançar sobre o pescoço de qualquer mortal que ousasse aparecer na minha frente.

— Calma – pediu ela. — Podemos ir até a casa do seu João. Lembra que a esposa dele ganhou bebê mês passado?

Seu João era um senhor muito simpático que prestava serviços caseiros para minha avó. Não, eu não queria ir até lá. Precisava de sangue. Urgente. Para ontem.

— O gato – sussurrei. — O gato dela.

Pimpão, o gato angorá da minha avó. Ela o adorava. Eu também.

— Ótima ideia. Sabe, também estou com fome – revelou Betina. — Acho que vou pegar o coelho dela também.

Naquele momento a porta do quarto abriu. Vovó nos encarou, sorridente, de avental. Na certa preparava o nosso almoço. Eu senti o aroma subir as escadas e entrar no meu nariz.

— Bom dia, meninas! Fiquei preocupada! Dormiram tanto hoje!

Eu olhei para Betina. Betina me devolveu o olhar.

Desculpe, vovó.

Patrícia da Fonseca
Enviado por Patrícia da Fonseca em 01/06/2020
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