Pecado capital
Enoque acabara de chegar em casa depois de um arregado rodízio na churrascaria do bairro, junto com os amigos. Nunca comera tanto. Picanha, guarnição, massas, mais picanha, sobremesa...na barriga não cabia mais nada, mas mesmo assim pediu uma barca de sushi. Comera com os olhos. Não achou que fosse dormir imediatamente. Pôs um filme na TV. Bateu o sono. Lembrou-se de quando sua mãe lhe dizia para não dormir de barriga cheia por causa dos pesadelos. Nunca acreditou nessas bobagens. Sabia bem que os pesadelos nada mais eram do que sonhos ruins que despertavam sensações de medo, angústia, tristeza, enfim, as mais diversas sensações. Nunca ficara impressionado com isso. Ajeitou a cabeça ao travesseiro e em poucos minutos já adormecera. Como era esperado, começou a passar mal e a sentir um estranho calafrio. Virou para um lado e para o outro por muitas vezes durante a noite até que, enfim, encontrou uma posição confortável. Sentiu então seu corpo muito leve. Uma sensação extremamente nova e confortante. Estava gostando daquilo até que, de repente, teve a sensação de que seu corpo estava levitando. Achou que seria algo passageiro, mas perdurou bem mais do imaginara. Temeu bastante. Pensou em abrir os olhos, mas não conseguia. Faltava coragem. Seus nervos estavam extenuados. Sua respiração ofegante. O suor escorria pelo pescoço e descia nas suas costas como cascata. Estendeu os braços buscando agarrar-se à cama, talvez fosse a solução, mas eles já não a alcançavam. Quis gritar mas também não conseguia. Sua voz simplesmente não saía. Uma sensação terrível de pânico, de desespero e de incapacidade. Sentiu uma leve sensação de alívio quando tocou o teto e parou. Concluiu que dali não passaria e que a qualquer momento tudo voltaria ao normal. Sentiu novamente a sua alma ganhar peso e descer suavemente. Descia muito devagar, quase imperceptivelmente e, quando já se aproximava do corpo que estava estendido sobre a cama, foi arrebatada violentamente por um anjo negro. Um grande ser alado com quase dois metros de altura que se movimentava como um raio. O anjo o levou consigo para outro plano. Já não podia resistir e neste momento temeu muito a morte. Simultaneamente, surgiu do nada, um anjo de luz , tão grande quanto o seu algoz e interpôs-se entre eles. Iniciou-se então uma batalha em outra dimensão. Feroz e violenta. Sem derramamento de sangue. Sem uso de armas. Mas, com toda a certeza, a mais assustadora que já vira. Nunca imaginara presenciar fato tão fantástico. O anjo de luz era muito valente, mas o anjo negro prevalecia. Enoque ficou entre eles como se fosse um prêmio em disputa. Subitamente, seus olhos se escureceram. Sentiu-se muito mal. Tinha ciência de que os pesadelos traziam uma carga emocional muito grande e de que era muito comum ficar daquele jeito. Esperava acordar com o coração disparado, com uma sensação de angústia, assustado, mas não foi assim. Muito pelo contrário. Sua respiração aos poucos foi se esvaindo. Seu coração se mostrava muito cansado. Da dimensão onde estava observava seu corpo estendido sobre a cama, pálido e imóvel. Da cama onde estava, observava um anjo negro voar para outra dimensão com uma alma sobre as costas.