O recruta

Dois soldados passaram conversando e dando risada. Romeu se afundou no banco da plataforma. O olhar desviado para qualquer ponto invisível. Um dia, na juventude tinha sonhado em ser um soldado também. A dispensa , causa de vergonha e frustração.

O coletivo encostou. Juntando as moedas que chacoalhavam nos bolsos, o mecânico completou o dinheiro da passagem. Espremido entre os demais passageiros, seguiu na direção do fundo do ônibus. Por sorte, conseguiu um lugar para se pendurar.

“Vida desgraçada”, pensou enquanto o coletivo deixava a plataforma ,percorrendo as ruas da cidade no dia que começava se despedir. “Quase noite”, falou para si mesmo.A imagem dos soldados , ele não entendia porquê, voltando à sua cabeça consumida pelas preocupações .

O celular vibrou. Outra mensagem da mulher,avisando dessa vez que o “gato” na energia tinha sido descoberto. Romeu enxugou o suor que escorria de sua testa.Não podia mais adiar.Aquela noite precisaria tomar uma decisão. Resolver todas as pendências que estavam fazendo dele um homem desorientado. As horas extras, os bicos a noite e nos finais de semana insuficientes diante das contas que não paravam de chegar. Como ia explicar para os filhos que estavam no escuro por causa de sua incapacidade de prover a própria família?

Depois de quase cinquenta minutos de viagem, o coletivo passou a percorrer a periferia. Ruas sem asfalto e esburacadas. O matos alto se estendendo pelas calçadas de terra. A iluminação fraca apressando o fim do dia. Pela primeira vez, reparou que quase nada tinha mudado por ali. Vivia naquela região,desde menino. Conhecia ruas e vielas, tinha jogado futebol nos campos de terra batida. Só as casas simples e inacabadas se multiplicavam numa velocidade que os olhos, turvos pelo cansaço, nem conseguiam acompanhar.

Desembarcou quando já estava escuro. Subiu a rua Principal de cabeça baixa, mal cumprimentando os conhecidos do bairro. Na mercearia, comprou velas e recusou o convite para uma cerveja. Precisava mesmo de uma bebida, mas não conseguiria beber pensando nos filhos ,esperando por balas.

Na saída do estabelecimento deu de cara com Gavião. “Quanto mais a gente reza mais assombração aparece”. O rapaz de corpo magricela era o braço direto do tráfico no bairro. Romeo odiava Gavião. Abominava a frieza do rapaz aliciando meninos para o tráfico de drogas. Destruindo famílias sem o menor pudor.

-Depois mando o dinheiro das velas, Bié.- Justificou, enfiando o maço no bolso e saindo ainda mais cabisbaixo. Não demorava cortarem a água também. Dina a mãe da filha mais velha não parava de telefonar pedindo o dinheiro da pensão há três meses atrasada. A filha sempre lembrando o pai da festa de quinze anos.

No caminho, percebeu que o entra e sai de carros em busca de todo tipo de entorpecente já era grande. Em cada esquina um homem, um menino, até mulheres trocando suas mercadorias por dinheiro.

Sentiu uma pontada na barriga. Com que cara ia chegar em casa? A mulher e os filhos no escuro. As coisas faltando . As dívidas sendo pagas alternadamente. Daquela noite não poderia passar. Era o chefe da família. Se não conseguisse prover nem seu lar o que restaria pra ele?

Entrou em casa lamentando não ter trazido balas e chicletes. Já estava na merda, que diferença faria um gasto a mais? Ao menos deixaria as crianças felizes. Antes de trancar o porta respirou fundo. Talvez, aquela fosse a última vez que entrava na residência humilhado pelas dívidas e pela condição miserável que vinha submetendo à sua família . Ao mesmo tempo, nunca mais olharia nos olhos dos vizinhos ou cruzaria com uma viatura da polícia sem receio, sem medo de ser chamado de criminoso.

A mulher insistiu para que jantasse.

-Mais tarde. Vou descansar um pouco.

Mônica se calou. Ela conhecia bem o cansaço do marido. Sabia que as coisas não estavam fáceis para ele. Tentava ajudar,fazendo umas faxinas. Economizava. Mas, as coisas se complicavam dia após dia.

No quarto, com a porta trancada o mecânico tentava ganhar coragem . Precisava de dinheiro. A pensão de Sophia com três meses de atraso. Os filhos menores passando necessidade. A moradia iluminada por velas.

-Vou sair! -comunicou para espanto da mulher.

-Vai pra onde?

Saiu batendo a porta. Na calçada olhou de um lado e outro. O movimento dos traficantes continuava. Foi subindo. A imagem dos soldados mais uma vez, invadindo seus pensamentos. Lembou da infância e juventude ali mesmo. Naquele tempo a criminalidade já existia,mas parecia infinitamente distante. Os ensinamentos do avô e de sua mãe, seus modelos de honestidade ecoando em sua cabeça.

Quanto mais subia, mais o coração se acelerava.O rosto, os braços, as mãos suando.

Chegou na casa de muro alto e janelas cerradas. Ouviu o barulho de vozes lá dentro e hesitou. Quem diria, ele, homem feito batendo na porta crime organizado? E se ao invés de ser contratado para os corre, pusessem um fuzil em sua mão e exigissem que fizesse a segurança do movimento? Estava pronto para matar em nome de sua família?

O dia da dispensa do serviço militar tinha sido uma decepção. O avô tinha servido no exército. Os tios também.Só a mãe ficou agradecida.

-Queria servir meu país, mãe.

- O país da gente é a casa que a gente mora.- A mãe respondeu sem ressentimento ou maldade, na ocasião.

Era isso. A mãe estava certa. Era com sua família seu maior compromisso. Os ideais da juventude não cabiam em sua vida de realidade dura e injusta.

Foi entrando sem bater, conforme havia sido orientado. Numa sala pequena, outros homens se acomodavam em poltronas desgastadas e sujas. O que Mônica ia dizer quando soubesse? Ela teria de entender que aquilo tudo era por ela, pelas crianças, por Sophia.

Viu uma cadeira vazia e se sentou. A barriga voltou a doer. Jurou a si mesmo que caso fosse recrutado ficaria apenas o tempo de conseguir saldar as dívidas e se equilibrar novamente. Depois sairia fora. A vida na bandidagem não era pra ele. Não foi aquilo que seu avô e sua mãe tinham ensinado. Entretanto ela não já não suportava a sensação de andar sem sair do lugar.

Só um tempo...Repetiu como se quisesse se convencer de que não estava se tornando um bandido.

Homens armados entraram na sala o que indicava que o recrutador se aproximava.Romeo torcia para não se deparar com Gavião. Tudo,menos ter de pedir emprego pro sujeito que ele mais desprezava na região. Imaginou o riso debochado do outro. As condições humilhantes que ele iria impôr. Decerto o outro percebia a antipatia e desaprovação do mecânico.

No último momento,rezou. Nas orações pediu para , assim como aconteceu na juventude, ser dispensado. Tentaria prover sua família de outras maneiras. Quem sabe, mais um bico?Conseguir dinheiro emprestado com a sogra?

Uma rajada de tiros do lado de fora anunciou o inicio da reunião.

Na frente do batalhão da Nove de Julho,Romeo reduziu a velocidade. Estava com pressa. Após a prova do terno que usaria no aniversário da filha, precisaria levar a última parcela do dinheiro do buffet que organizava a festa de Sophia. A noite estava escalado para a segurança de um carregamento de armas com destino ao interior. Mônica reclamava das viagens constantes e da vida sem horários do marido. Porém, nunca mais tinha ficado no escuro por falta de pagamento ou sido obrigada a trabalhar para ajudar nas despesas da casa. Os recrutas atravessaram para o outro lado da rua. Alguns ficaram no ponto de ônibus mais perto. Os demais seguiram adiante. Romeu ficou olhando, perguntando si mesmo o que aqueles meninos estariam fazendo dali a vinte anos. Ele agora era um soldado também.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 12/05/2020
Reeditado em 13/05/2020
Código do texto: T6944817
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