A GRANDE ESCAPADA DA BOLÍVIA

1. GRANDE ESCAPADA DA BOLÍVIA

Autor: Moyses Laredo

Por Epitaciolândia, município a 230 km de Rio Branco no Estado do Acre, se tem acesso fácil à Bolívia por estrada. É uma rodovia relativamente bem conservada, o trajeto inicia-se em Rio Branco pela Ac-40 até o km 27, após o município de Senador Guiomard, encontra com a BR-317, que vem de Boca do Acre, cujo início se dá na estrada do Translago, à beira do lago Novo, um lago de águas represadas do Rio Purus, em forma de ferradura, esse acidente geográfico é conhecido na hidrologia, como meandro abandonado, já bem no Estado do Amazonas.

Um fim de semana animado com Festas de Nossa Senhora de Candelária em Cobija/Bol, prometia. Saímos num pequeno grupo de três amigos em busca de prazer, diferente de outros amigos evangélicos, que ainda andavam em busca da salvação. O Departamento de Pando é a cidade boliviana da província de Nicolás Suárez, que faz fronteira mais próxima com Epitaciolândia. Atravessamos as duas aduanas sem nenhuma dificuldade, ali não são exigidos passaportes, ou qualquer outro documento, o trânsito de veículos, tanto do lado brasileiro, quanto do lado boliviano, é intenso, não raro se vê carros com placas de formato estranho transitando nas ruas de Epitaciolândia. Os comerciantes bolivianos se abastecem do comércio atacadista de Epitaciolândia, caminhonetes com placas bolivianas passam pelas fronteiras abarrotadas com gêneros alimentícios, não são incomodados, faz bem para o comércio local brasileiro. A única fiscalização da aduana boliviana, é com os motociclistas que atravessam para o seu lado, eles são obrigados a retirar os capacetes, a lei boliviana foi estabelecida em função dos assaltos que motoqueiros brasileiros corriqueiramente praticavam por lá e não eram reconhecidos, assim, se algum motoqueiro entrar de capacete em Cobija, ele é logo parado pela polícia local, tomam-lhe o capacete, depois, para retornar ao Brasil eles os pegam no posto da fronteira, antes da aduana, com uma pequena “colaboración” (ler-se, propina) pagas na hora em Real mesmo. O segredo é, ao entrar, parar no posto antes da Aduana boliviana, deixar lá o capacete, pagar uma pequena taxa. Nesse posto, também há um pequeno comércio com grande estoque de capacetes de aluguel para os motoqueiros bolivianos poderem transitar no Brasil onde é exigido o uso. Qualquer um que retorne da Bolívia, tem que passar pela aduana brasileira, a Receita Federal controla as compras feitas naquele País, estabelecendo uma cota máxima em Real, para produtos comprados por lá. Caso o espertinho resolva passar sem declarar, até pode, mas corre o risco de ser parado na estrada e se não estiver com as guias de entrada como manda a lei, perde tudo e recebe uma substancial multa.

Embora nesse dia, fosse festa de cunho religioso, no fundo não é era bem assim, é claro que o lado beata enche as ruas e vielas de procissões intermináveis, com todo tipo de vestimentas coloridas, típicas de suas regiões, no entanto, bares e boates, lotam de “turistas” como nós, cada um atraindo os “clientes” como pode. Um dos amigos era um grande conhecedor profundo dos escaninhos do lugar, me sugeriu uma boate nova, ainda desconhecida ao público turístico, disse que lá havia uma trupe de lindas dançarinas vindas de Cochabamba, eram mulheres altas, brancas, algumas com olhos verdes, nada comparado com o estereotipo das pessoas dos andes, destacavam-se muito por suas belezas. Segui o conselho, realmente o lugar mais parecia uma chique boate de São Paulo, pagava-se consomê na entrada, pelo luxo do lugar, mesas com finas toalhas, abajures à meia luz, palco com shows de gogo girls, garçons de esmoques, jogo de luzes indiretas. Valia a pena, de fato impressionante, nunca achei que encontraria um lugar assim por lá, parecia não estar em Cobija. Chegamos na “horita” do Show, a noite prometia ser animada, da minha mesa, bati o olho numa das dançarinas, como dizem por lá, fiquei “mirando”, por muito tempo, era a mais formosa e delicada, no meu ponto de vista, além de um corpo perfeito, fazia movimentos suáveis, em harmonia com a dinâmica da coreografia, nada além disso, achei que elas não davam bolas para clientes. Ficamos bebericando nossas Paceñas, uma cerveja leve com baixo teor alcoólico, da preferência nacional, que parecia um shop.

Inesperadamente, senti um leve roçar no ombro, virei-me e vi diante de mim aquele monumento sorrindo, até achei que não fosse comigo, fez um gesto com a palma da mão virada para cima, com os dedos juntos, me chamou para o palco dançar. A música tinha mudado, era uma “Morenada”, típica música romântica boliviana, seu ritmo lembra um pouco a cadência de dois toques das músicas regionais amazônicas, porém, mais lento. Seu show havia acabado, ela se trocara e se maquiara, durante a dança confirmou ser quem eu fitara, havia me notado também, sempre fui bom em fitar as pessoas que me interessavam, desde aquele caso em Teresópolis (do meu novo lançamento, “Experiências” – autor Moyses Laredo) quando me apaixonei por uma linda mulher desconhecida, dediquei três capítulos a essa história. Dançamos coladinhos, naquele chamego, ouvir a voz de uma linda boliviana sussurrando no teu ouvido com aquele sotaque andino, é demolidor, esqueci dos amigos, o tempo passou rápido, ninguém estava ali para romance demorado, tínhamos um objetivo, eu a compreendia quando falava lento, e vice-versa, íamos nos entendendo, chegamos ao consenso de acabar a festa, por seu convite, em “mi casa”, não ficava muito longe dali, alguns “passitos despassitos”. Sua casa ficava numa área pouco habitada, de pouca iluminação nas ruas, era condomínio de pequenas casas de bom estilo, que depois vim a saber ser um tipo de motel.

Da janela dos fundos do quarto, se avistava o lado brasileiro, foi a primeira coisa que me chamou atenção, embora pouco iluminado, de qualquer modo, era o meu Brasil, separava-nos apenas o rio Acre e um terreno de mato, coisa de uns cem metros calculei. A noite continuou, foi tudo muito diferente, ela até ensaiou no quarto, uns passos novos de sua dança, fez questão de dançar apenas com roupas íntimas e um véu, me fez lembrar outro episódio romântico vivido.

De madrugada, ainda cheio de paceña, a natureza me chamou, levantei e fui ao banheiro com cuidado para não perturbá-la, mas, ao acender a luz notei a cama vazia, ela não estava lá, lugar mais limpo, como era somente quarto, sala e banheiro, pensei logo, onde será que ela se meteu?...depois de uma breve busca, percebi que até suas roupas também haviam sumido...engoli em seco, seria um golpe?...o famoso “suadouro”, pqp! logo eu fui cair nessa, não queria aceitar ainda, tentei abrir a porta, estava trancada, ela levara a chave, corri para a janela da rua e olhei para os dois lados, nada vi, tudo escuro, aqui e acolá uma lâmpada acesa no poste, iluminava apenas um pequeno cone a sua volta, naquela hora caía neblina, a visão da rua estava enevoada, aquela região está a 235 m de altitude. Me virei para pegar minha roupa, dei falta da carteira de cédulas, carái! Agora lascou-se, sem dinheiro e documentos, ficava fácil parar numa cadeia boliviana, coisa impensável, já tinha ouvido horrores sobre essas cadeias, para quem nunca foi preso imagine o pavor, comecei a entrar em pânico, procurei me acalmar, dizendo para mim mesmo, “tenha calma você vai encontrar uma solução” relaxei, fiz as concentrações como aprendi nas aulas da Rosa Cruz. Em meio as frases de relaxamento, ouvi ao longe uns latidos de cães, de um salto corri pra janela da rua e vi movimentação de uns focos de luzes distante, iguais aquelas imagens de luta com espadas laser em “Guerra nas Estrelas”, coisa de umas cinco ou seis espadas, digo, focos de lanternas se cruzando no ar, acompanhados de comentários incompreensíveis do grupo de pessoas. A língua nativa boliviana, falada rápido não é para qualquer um entender. Então, ao passarem pelo poste com a lâmpada acesa, reconheci a dançarina que apontava aos policiais minha direção, não tive dificuldades em entender a situação, ela dera queixa, antes que eu desse dela por furto, sabe lá de que me acusou, só sei que não ia ficar para conferir a história, o medo das prisões bolivianas me assustavam, além do mais, em plena madrugada de domingo, não havia como alguém me ajudar, estava lascado mesmo. Sem opção, corri para a pequena janela dos fundos do quarto, quase um basculante, arrombei com um pontapé e saltei, depois, pulei o baixo muro de alvenaria do condomínio e pronto, parei um instante para me orientar, estava entre mim e o meu Brasil, o terreno desconhecido de mato. Com a escuridão da noite nada conseguia ver a não ser as luzes do lado brasileiro que me guiavam na direção que deveria começar a correr, não contei vitória, gritei: - “Aqui vou eu meu Brasil amado”, pernas pra que te quero, aprumei o rumo e dei a largada, para salvar a minha vida, a situação pedia, corri como nunca, passei por cima de muitas coisas, outras quebrei nos peitos, cachorros, é o que não faltava por ali por onde passei, ainda ensaiaram me perseguir, mas, com umas botinadas certeiras os fiz mudar de ideia, o susto só foi aumentando, os policiais notaram que eu tinha me evadido e empreenderam a perseguição mais acelerados, eles conheciam o lugar com a palma da mão e ainda estavam de lanternas, gritavam juntos: “para, para, si no vamos a disparar”, no desespero, comecei a correr em zig-zag, aumentando mais o percurso, aqueles cem metros, já não me pareciam tão próximo, dava no mínimo uns trezentos, que nunca chegava, quando levantava a vista para ver as luzes, não notava diferença, estava com medo dos policiais me alcançarem antes de eu chegar no Brasil, a corrida ficou mais acelerada com esse pensamento, não deixaria eles me alcançarem de jeito nenhum, no meio desse pensamento me dei conta que ainda havia o rio Acre bem no meio, como o maior de todos os obstáculos, procurei não me preocupar ainda com isso, o importante era chegar lá e atravessá-lo de qualquer maneira, ou a nado, ou de canoa, furtar canoas era uma das minhas especialidades (do livro “Meu Pé de Moleque” – autor Moyses Laredo) essa era a minha esperança. Na beirada do rio se apresentou um barranco respeitável, tive que escorregar de bunda, dei direto com as pernas no rio Acre ainda do lado boliviano, o rio é limítrofe, até ao meio é boliviano, depois, passava a ser brasileiro, diminuía a distância para mim, tudo valia pensar naquela aflição, a coisa só não foi pior porque os policiais não fizeram nenhum disparo, se dessem um único tiro eu ainda estaria correndo até hoje. Ao chegar na margem, ainda com a escuridão da noite, bufando de cansado, não avistei nenhuma canoa nem mesmo aquelas tipo catraia que usavam, de dia, para realizar as travessias. Por falar em catraias, tinha um código entre eles, as catraias bolivianas levavam passageiros da Bolívia para o Brasil, mas tinham que retornar vazias, e vice-versa, procediam os catraieiros brasileiros, desse modo não havia conflitos, soube que antes desse acordo, ocorreram mortes nas disputas, a coisa chegou ao nível diplomático, imagine. Uma vez na margem, não podia me demorar, sabia que ainda estava em solo boliviano, andei à procura de alguma coisa que facilitasse a minha passagem para o outro lado, nada encontrei, além da imensa dificuldade de andar por alí, tinha toda sorte de obstáculos, de repente, ouvir vozes e latido de cachorros próximos, imaginei logo os meganhas desgraçados na minha cola, dai, meu irmão não esperei pra ver, contei até dois, nem cheguei no três, de onde estava saltei n’água, baixei a cabeça e nadei vigorosamente até cruzar a linha imaginária de fronteira, depois, me deixei levar pela correnteza para descansar um pouco, tinha consciência que saíra da visão dos guardas, fui sendo levado por algum tempo, dei algumas braçadas para corrigir o rumo, e aproveitei-me da curva que o rio fazia que me arrastou para beira, sai bem mais embaixo, distante do ponto que visualizei inicialmente quando me atirei n’água. Ao pisar em solo brasileiro, que sensação maravilhosa, me tremia todo, estava no meu País, e ali, os cornos bolivianos não me pegariam jamais, deu vontade de gritar e dar uma banana pra eles, mas não os vi, estava exausto, molhado e sem os meus documentos, o que fazer? ...não tinha a quem recorrer, resolvi ir ao posto policial contar minha história, por mais estapafúrdia que fosse, precisava contar-lhe toda verdade. Os caras ouviram com atenção, depois explodiram numa gargalhada conjunta, se entortaram de tanto rir na minha cara, um até disse, limpando as lágrimas: - “Meu irmão, conte outra, essa está forte demais para engolir”. O comandante, que também riu junto, vendo o meu aspecto e sendo verdade ou não, avaliou que tinha que me prestar alguma ajuda, então perguntou-me: - “Afinal o que você quer?...lá a gente não pode ir!” Com insistência os fiz entender que havia sido roubado, não tinha lenço nem documento, queria apenas um lugar para passar o resto da noite até amanhecer, precisava secar minhas roupas. Tudo bem disse ele, - Pode dormir ali, apontou para uma cela vazia... carái, escapei duma e cai noutra, pensei cá comigo, sem outro jeito, estendi as roupas molhadas nas grades da cela, me ajeitei na cama de concreto, fria que nem mesa de autópsia, e ali apaguei. Acordei com batidas de caneco de esmalte, do guarda, na grade, levantei, vesti as roupas ainda um pouco úmidas, mas no corpo secaria, só os sapatos permaneciam ainda encharcados, pedi licença para telefonar (não tinham inventado o celular ainda) liguei para o meu amigo, que veio me pegar, agradeci a estada aos policiais e me mandei, sem antes notar uns sorrisos de canto de boca neles.

Saímos direto para falar com o Alcaide (prefeito de Cobija) um médico meu conhecido quando o visitei, com outro médico amigo da Sulcam, me reconheceu e nos recebeu na mesma hora na prefeitura local, depois de contado o caso, pedi-lhe apenas que conseguisse os meus documentos. Disse-me que cuidaria pessoalmente do caso e nos avisaria em seguida. Não acreditei, como não tinha o que fazer a não ser esperar, assim sendo, agradeci-lhe e retornei para Epitaciolândia, achei que aquele domingo tinha se perdido, fomos tomar café, rodamos um pouco a bom conversar sobre a minha aventura, o meu amigo se escandalizou com o que ouvira, me disse várias vezes que eu escapei por pouco, que na cadeia boliviana os “carinhos” dos presos com carne fresca eram aterrorizantes, fez aumentar mais a minha angustia, quase passou a fome, mesmo assim, continuamos à procura de um lugar aberto, por fim, encontramos uma lanchonete, muito conhecida do lugar, aliás, nem bem sentamos, um veículo com placa boliviana se aproximou, era o próprio Alcaide, desceu do carro com um largo sorriso, não fiz ideia como nos encontrou, ele tinha visto nos documentos que eu era engenheiro e por lá, são tratados com muita deferência, disse: - “Señor ingeniero aquí están sus documentos”, infelizmente não conseguimos os valores, a pessoa que lhe furtou sumiu. - Tudo bem prefeito, agradeço muito o seu empenho, ele acabou ficando para o café conosco, estreitamos mais nossa amizade.

Molar
Enviado por Molar em 06/05/2020
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