1. A morte para os vivos

Acordou cedo e viu o sol nascer, isso não era incomum acontecer, tinha se passado mais uma noite de pesadelos, barulhos e insônia, seus olhos ainda estavam pesados, parece que nem tinha dormido. Na geladeira ainda tinha um pedaço de pizza e nem sabia de quando era, água e alho acompanhava aquela visão, além do gelo.

O telefone toca e são 6h da manhã, nada de bom pode ser, pensou duas vezes antes de atender, sua vida já estava uma tragédia sem fim, mais uma seria quase uma comédia ruim e barata.

-Alô!

-Alô...(Ruídos, chiados)... Tereza morreu... chegue cedo! tú, tú, tú.

Seus olhos se abriram e assustado ficou ali, parado por alguns segundos refletindo sobre aquela voz tentando reconhecer o timbre ou pelo menos imaginar quem é Tereza. Deve ter sido trote, um trote covarde, mas ainda assim um trote. Preferiu ficar com esta versão do que buscar sarna. Ainda tinha algumas horas antes de ir ao trabalho, era dia de demissões e os corredores estavam cheios de despedidas e as pessoas tensas. Todo mês é isso eles já deviam está acostumados, mas é difícil se acostumar com o fim de ciclos. Refletia com si mesmo. Ao chegar no RH as pessoas estavam de preto ou com algum adorno desta cor na roupa. Allano bate o ponto e Edgar pergunta:

- Onde está seu laço preto? Ele era um analista como Allano, um colega de trabalho se é que poderia chamá lo assim.

-Deixa, tome este! - completa.

-A filha da chefe morreu e a gente vai no velório 12h para prestar homenagens.

-Quem morreu? Pergunta em tom de surpresa.

-Pedi para o estagiário te ligar cedo parece que ele não deu o recado. Fala em tom de reprovação.

-Tenho escolha de não ir? Já tive minha cota de velários por uma vida.

-Muito engraçado, você sabe que não tem escolha. Já te mando o cartão para você deixar uma mensagem de conforto para ela.

Allano odiava velórios e enterros, ainda mais de pessoas desconhecidas, não sabia o que falar ou como agir nestas situações, ficava pensando o que iria escrever naquele cartão: -Deus te ilumine! Paz! A vida é assim mesmo, morrer faz parte! Ninguém nasceu para ser semente! Deixa de choro e enterra logo, preciso terminar meus relatórios!

- Como escrever alguma coisa sobre a morte de uma criança, para uma mãe provavelmente em prantos e ainda mais se isso pode afetar minha imagem ou promoção. Assim a cabeça de Allano ficava alternando entre uma frase e outra. Empatia não era seu forte. Não queria parecer mecânico ou artificial, mas também não queria parecer desumano. Então apenas escreveu.

"Aos mortos o descanso, aos vivos as boas lembranças que deixaram e a certeza do amor compartilhado."

Preferiu não assinar, até por que ninguém iria ler aquilo mesmo.

Ao chegar no local, havia flores para todos os lados, coroas de flores chegavam de todos os lugares da cidade, havia uma criança tocando um violino de maneira bem desafinada, parecia ser alguém da família. O clima denso, pairava no ar e preenchia todos os cantos, as lamentações eram quase desumanas, uma velha senhora com um véu negro ficava ao lado do caixão o tempo todo olhando e fazendo carinho na testa da criança, uma mulher com roupas mais simples passava com uma bandeja distribuindo comprimidos como quem distribui doces no ônibus. O que Allano achava estranho era ter dois caixões, logo percebeu que um era para a criança e outro para brinquedos, roupas e presentes. A menina estava sendo enterrada como um faraó, talvez tenha vivido como um. A chefe chorava, se desmanchava e gritava.

-Você já deixou o presente da menina no caixão dos presentes? - Falou Edgar, que até então agia como um organizador de eventos.

-Não sabia que era para comprar.

-Nem isso o estagiário conseguiu avisar.

-Tenho um chaveiro em forma de cavalo marinho.

-Serve! Melhor que nada. 

Tira as chaves que estavam presa e foi deixar a oferenda. Neste momento estava muito desconfortável, tinha descoberto hoje que sua chefe tinha uma filha e agora tinha que homenagear uma desconhecida, pelos gritos acreditava que sua chefe também havia descoberto hoje que tinha uma filha de 8 anos. O caminho até o caixão parecia mais longe do que era e tudo estava em câmera lenta, sua mente dava espaço para pensar sobre tudo.

-A menina não vai acordar para cheirar as flores, brincar com o urso de pelúcia, ou abraçar seus amigos e parentes, tudo isso é um ritual inútil para a criança, estão usando o corpo de uma menina morta para aliviar seus arrependimentos, com presentes para se sentirem melhor consigo mesmo. Pobre criança, talvez só tenha conhecido o amor depois da morte.

Luiz Eduardo Lopes
Enviado por Luiz Eduardo Lopes em 06/05/2020
Código do texto: T6938824
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