Matando o Rei
— Sabe qual é, meu velho? — Bruno olhava João com uma cara estranha — É que você precisa desenvolver seu estilo antes de tudo, saca mano, tipo, acho que já li sobre esses assuntos, essa temática que você misturou tudo, tipo, pareceu coisas que eu já li do Lovecraft, Poe, da Rowling, sei lá, do King e até do Huxley em 10 páginas. Muita informação, percebi perícia e boa técnica, é fato, quero ver a coesão, entende? E ao todo são 250 páginas.... Deve ser um grande desafio, saca?
— Como assim? — Charlie Malcom olhava o primeiro crítico a analisar sua obra.
— Tipo, já achei de cara muito americanizado esse pseudônimo “Charlie Malcom”, qual o problema, na moral mesmo, em ser alguma coisa tipo “José Santos”? Não é seu nome não? Já pensou se Saramago pensasse assim? Seja você mano! Viva o Brasil! Afinal, quem sabe você não é o próximo Machado ou um Paulo Coelho aguardando apenas uma chance? — sorriu um pouco irônico.
— Pode crer — José o olhou frio — acredita que isso nem me ocorreu? Não foi pelo mercado editorial... não acredito nisso, foi mais pra me esconder mesmo... pelo anonimato... talvez você não entenda... — em seu íntimo, José refletia na velocidade do julgamento. “Será que os leitores são todos assim?”
E eles continuaram a discorrer um pouco sobre a primeira versão de “A Chaga dos Dias”, livro de ficção de José dos Santos Pereira, escritor entusiasta, o “Charlie Malcom”, pseudônimo por trás de onde ele escondia toda sua insatisfação diante da vida real. José vivia para escrever, amava de verdade, esse era seu talento e sua sina, seu segredo, era a primeira vez que apresentava um trabalho seu a alguém que não lhe era íntimo. Bruno era metido a leitor de literatura universal, estava se formando em Direito, disse que faria uma análise imparcial. José decidiu lhe apresentar seu livro após ter visto Bruno lendo “A Paixão Segundo G.H”, livro o qual ele tinha uma admiração particular. Eles já precisavam voltar do intervalo. Depois que hotéis de luxo passaram a oferecer até rodízio de carnes nobres em seu cardápio entre outras especialidades culinárias para competir com os restaurantes da orla, o trabalho havia aumentado consideravelmente, até indiano comia carne onde eles trabalhavam. Ou o que quisesse comer. Tinha de tudo, até lanches à La Mcdonalds. O Hotel Resort Urban Mirage era o investimento mais rentável no trade turístico de Maceió, procurado por celebridades brasileiras e do exterior por seus serviços de 1ª categoria, sua estrutura colossal e suas inovações gastronômicas, o cardápio assinado pelo Cheff Lavousier Bernand, o “Cozinheiro da Nata”, era um verdadeiro convite ao pecado da gula. No hall de entrada, homens de preto se amontoavam enquanto não faziam escolta para algum figurão, o “turismo da carne” parecia que havia aumentado em todos os sentidos... era o que pensava José. Agora, além de belas acompanhantes de luxo, haviam picanhas argentinas e maminhas ao ponto esperando por serem devoradas... “Parte do pacote de hospedagem”, ele pensava irônico. Não importava se as praias estivessem maculadas pelo esgoto vindos dos prédios faraônicos. As fotos enganavam bem.
Tanta comida e tanta fome o havia feito escrever sobre canibais diferentes. Muito clichê, com certeza, só que em seu livro, “A Chaga dos Dias”, pessoas infectadas com um vírus produzido por uma rede de empresas de alimentos que alterava a constituição de suas peles e músculos para uma estrutura similar à de um bovino, viravam alimento para seus próprios semelhantes num mundo “pós-apocalíptico-político”, já que tal vírus dava à carne humana um sabor além de todas as coisas provadas pelo paladar sedento dos sobreviventes das catástrofes globais após a Guerra Nuclear que dizimou mais da metade da população. As empresas começavam a criar pessoas em rebanhos para infectá-las com o vírus, e a África e Oriente Médio acabavam por ganhar um novo setor econômico promissor. Carne humana valia mais que ouro. As pessoas passavam a comprar “pessoas” importadas para os churrascos em família aos domingos, ou a procura-las pelas ruas... uma mudança de paradigma sentimental se operara por completo.
Realmente, era um livro um pouco confuso, mas profético, na verdade, uma crítica social ferrenha. Era uma metafórica alegoria onírica depressiva. As famílias pobres viviam o dilema de devorar seus familiares mais velhos e menos proveitosos, a fome fazia o impensável, bastava conseguir o vírus no mercado negro e... adeus vovó... Havia uma filosofia implícita em toda essa obra aguardando que o leitor a percebesse. Comer carne era algo realmente simbólico para a visão de Charlie Malcom, o passador-de-carnes, ele que só comia ovo e sardinha em casa, se comesse das “carnes nobres” e fosse flagrado por um “bichão” no trabalho... já era, demissão sem perdão. Mas ele não comia carne por opção, era parte de sua filosofia pessoal. Ele pegava altas “viagens” vendo o comportamento das pessoas diante de uma mesa farta e daquele animal empalado num espeto que pouco antes fora lambido por chamas que o deixaram com cheiro e sabor únicos, as placas verdes nas mesas sinalizavam “Carne é bem-vinda, sem demora, foda-se se o mundo sangra de fome!”, ele sabia bem o que era a fome. Não importava com quanto sofrimento se obtinha aquele prazer. A guerra entre as classes era invisível, mas constante. Eternamente constante...
José havia lido que bois sentiam o cheiro da morte quando estão em seus últimos momentos, na fila indiana até o golpe da pistola de ar ou do martelo, sabem que morrerão. E sofrem. A morte os aterroriza... e o pânico vai pra carne. Levou 4 meses para que José concluísse a primeira versão de “A Chaga dos Dias” escrevendo todos os dias das 8 às 11 da manhã, cansado, mas com uma ideia pulsante na cabeça, sempre pronto para chegar mais cedo no trabalho ou trocar de horário caso fosse solicitado, o que acontecia sempre, não havia a opção de recusa. Não tinha escolha, a idade não era boa para currículos. Na verdade, “A Chaga dos Dias” era seu quarto romance concluído em quase vinte anos de dedicação secreta à literatura. Seus livros estavam impressos em folha A4, encadernados com arame, engavetados e não lidos por quase ninguém. Todos foram recusados pelas editoras as quais foram submetidos, bem possivelmente sequer lidos. Sempre viam nas obras potencial editorial... mas ninguém via o que ele via: seus trabalhos eram perfeitos; únicos. Só precisavam ser vistos... lidos... entendidos... amados... Havia uma certeza dentro dele que ele não sabia ao certo de onde vinha, só sabia que tudo se resumia a se tornar conhecido. Ser conhecido... só que ele não chamava a atenção de nenhuma forma. Precisava ser reconhecido... mas era além de desconhecido...
Era invisível.
— Beleza mano, vá lendo, depois você me diz se gostou, ou o que achou, talvez ainda esteja só no começo, quem sabe eu não te fisgo?
— De repente... pode ser... é que sou bem chato quando se trata de literatura mesmo, gosto de coisas inusitadas... coisas impensadas... diferentes... li “O Lobo da Estepe” 3 vezes, o “Luz em Agosto” do Faulkner 2 vezes e “A Paixão Segundo G.H” eu já tô lendo pela 4º vez, sabia? Sem falar no meu livro de cabeceira, “Crime e Castigo”, que vou ler pelo resto da vida. Acho que isso me deixou pirado... além do mais, preciso ler tudo sobre Direito, Budismo, Capitalismo, Taoísmo, Terra Plana, enfim, fazer o possível pra ver se vazo daqui meu velho, esse lance de hotel enche o saco de um. Tô cansado de mascarar a verdade pra ganhar a vida. Aqui não existem dias melhores não, não com esse salário... Quero ganhar grana defendendo playboy vagabundo e político corrupto. Só dá pra vencer assim, já cheguei a essa conclusão, ou roubando um banco... senão eu amaria viver da minha Música...
E ambos se retiraram, cada um ao seu posto. Bruno para trás do balcão da recepção, cabelo lambido de lado, gravata vermelha dando ênfase, José, faca amolada na mão, avental preto impecável e uma fila de espetos ao fogo aguardando o momento de serem oferecidos. A noite seria longa, a ocupação no Hotel Miragem beirava os 120%. Rodízio de carnes nobres era o carro-chefe da casa, no almoço e no jantar. Era uma tendência gastronômica
Coisas impensadas...
Conheço aquele homem... não pode ser... é... é meu...”
Será que alguém imaginava o que ele escondia? Será que nunca haviam percebido as cicatrizes nos pulsos? Os comprimidos tomados todos os dias? Será que alguém percebia que ele já não se importava com quase nada?
Alguém já o havia visto conversando só?
José refletia nas últimas palavras de Bruno enquanto oferecia os diversos tipos de carnes nas 10 mesas que compunham a “praça” em que ele, Diego “Macaco”, Rogério “DST” e Joel “Seboso” cuidavam para que nada faltasse. Todos tinham seus apelidos, o de José era “Zé Calado”. Dois garçons e dois passadores-de-carne, e algumas dezenas de visitantes exigentes de todas as partes do mundo. Os sul-americanos eram a maioria, seguido pelos canadenses e finlandeses. O salão comportava 200 pessoas, e além dos hóspedes sempre haviam os passantes.
E as celebridades.
Já havia visto inúmeros atores e cantores de fama global, todos muito diferentes do que mostravam nas telas, fisicamente e pessoalmente. No Hotel Miragem prezava-se pelo melhor atendimento possível... excelência total, era o hotel nº 1 da capital, eles recebiam treinamentos quinzenais para serem melhores servos (escravos?) do que já eram, aprendiam frases em diversos idiomas, aprendiam como satisfazer plenamente o cliente, oferecer tudo o que ele quisesse antes que ele pedisse, tudo mesmo, se o cliente decidisse que precisaria de sangue... alguém teria que sangrar... Além de chefes implacáveis, como Valdemiro “Chupa-Ovo”, o gerente, e Clécio “Papa-Véio”, o maitrê, dois puxa-sacos concursados. Adoravam utilizar suas patentes para inferiorizar educadamente a equipe sempre que podiam. Mas o salário na carteira e o que ele permitia, o que valia... bem, melhor não comentar. Se usassem somente calças de cor bege no lugar dos uniformes de corte estilístico moderno, certamente tudo faria sentido. Se passássemos para o setor da Governança, ninguém diria que as camareiras eram seres humanos. Após a “Terceirização”, veio também a “Robotização”, maravilhas do mundo globalizado.
— “Cupim ao ananás”, madame?
— Passou na 25 José?
— “Alcatra Nobre” acebolada, senhor?
— Recolhe lá na 17 Diego, quer que encha de mosca é?
— “Filet mignon com queijo golda” para o jovem?
— Vai na 22 que o gringo tá olhando Joel!
— Meat, sir?
— Aquela argentina quer alguma coisa José? Passe lá rápido, rápido! De hoje que ela olha homem!
— Cerdo con queso blanco, sinhorita?
“Gracias... No, thanks... Valeu... Merci boku... Kitos... Não obrigada... Satisfeito...”
E mais um dia se encerrava. Igual a todos os outros. No coração de José, nenhuma expectativa. O próximo dia seria a mesma coisa. Nenhum reconhecimento. Estagnação promissora.
Esperar o último ônibus, o “Corujão”, era parte da rotina, não o perder era questão crucial.
Coisas impensadas...
“O senhor não tá me reconhecendo? Sou... sou... eu... não lembra não?”
Seis meses trabalhando em seu novo emprego e com ele já passavam de 10 suas experiências profissionais, de pedreiro, músico, vendedor, enfermeiro, à passador-de-carne, e nenhuma delas o havia feito progredir de qualquer forma, só tinha a seu favor o diploma de conclusão do Ensino Médio (o que era o mesmo que nada) aos 35 pensar em faculdade era como pensar em perder tempo e dinheiro, esse que ele nunca tinha. Essa seria sua vida. Nunca se permitiu estudar academicamente para buscar alguma mudança porque desde cedo precisou trabalhar para suprir a falta de um pai e a invalidez não amparada e revolta da mãe, aos 12 já catava recicláveis para sobreviver. E lia muito. A mãe não conseguiu se aposentar porque sequer tinha algum documento, vinda do interior só sabia lavar roupa e apanhar do marido, o que se refletia nas surras que dava no filho sem motivo, depois chorava com ele... até ter o primeiro derrame e ser abandonada.
O pai sumiu e nunca deu nenhuma notícia, jamais respondia os telefonemas da mulher abandonada, alguns disseram que estava morando com uma moça com idade para ser sua filha em outro município, alguma jovem do interior incapaz de ver a cilada, deixou-os em total desamparo, sem familiares próximos, a fome quase os devorou por vezes... e a mãe se consumiu para que ambos continuassem vivos. Um dia, 10 anos depois, num sábado agourento e cinza, José, um jovem com barba cheia e cara de intelectual, o atendeu com alguns amigos em um bar que trabalhou e o pai não o reconheceu... estava totalmente bêbado, sendo humilhado pelos outros na mesa. Falavam sobre imóveis, apostas de futebol, prostitutas, política. José o observava sentindo impulsos que não o confortavam. Tudo que ele mais desejou naquele momento foi um abraço... qualquer coisa... um olhar... mas foi ignorado e até hostilizado quando o perguntou se ele sabia quem ele era. “Não tá me reconhecendo? Sou eu... sou eu...”, ”Sai daqui seu boiolão barbudo... tomá no teu cú! Traga meu uísque porra... deixa de conversinha!”. E se foi logo depois tropeçando em cadeiras e recebendo olhares severos e insultos de alguns presentes. Depois que largou, ainda transtornado pela cena inesperada vista e vivida, José o encontrou deitado numa viela escura.
Ficou parado, seu corpo tremia enquanto o observava, a pura degradação em que o pai se encontrava fez crescer em seu peito uma revolta incontrolável... uma mistura em ebulição que corroía à medida que todas as lembranças voltavam numa profusão amarga... lembranças claras... ele compreendia todo o passado... pensou no impensável... lembrou-se do pai ensinando-o a jogar xadrez quando ele era um garoto de 8 anos... o pai o ensinara todos os truques e táticas de ataque e defesa, havia ganho prêmios durante o ensino médio, mas não aceitava perder... fazia movimentos proibidos... José havia assimilado muito bem o jogo, o pai sempre dava um jeito de acertar acidentalmente o tabuleiro e encerrar a partida quando a derrota estava certa... depois ficava distante e irritado, resmungando “Peão imprestável”... Que grande egoísta... prepotente... achava que o Mundo orbitava ao seu redor? José pensava... seu peito se enegreceu como o escuro da noite com o choque de tantas recordações decisivas... e como era madrugada e não havia ninguém por perto... ele resolveu fazer justiça... a seu critério... o estrangulou com um Mata-Leão... estava treinando jiu-jitsu na época e seu corpo aos 23 estava no auge da forma física. O pai lutou desesperadamente contra seu agressor desconhecido, o feriu nos braços com a chave que puxou do bolso em algum momento dos últimos 3 minutos de sua existência, o olhou nos olhos com olhos vazios quando a serpente parou de apertar... e naquele momento... o reconheceu... e morreu. Engolido pelo breu.
Ao chegar em casa, José chorou por horas sobre seu segredo mortal... as primeiras folhas do que seria “A Chaga dos Dias” foram escritas nessa noite. Encontraram o corpo de um homem pela manhã e ninguém sabia quem era o desconhecido que estava caído sobre uma poça de urina. As marcas de unhas e os cortes feitos pela chave nos braços de José refletiam o desespero de um homem miserável ao se ver diante da perda da única coisa que o ligava à algo superior, sua vida... A mãe estava vingada... e ele para sempre condenado com seu segredo. Ele matou o pai... “Xeque-Mate”. Matou o Rei no xadrez que era sua conturbada vida... Que trono assumira? O que herdara?
Ser um Peão Imprestável?
Desse dia em diante a Literatura foi seu refúgio, seu mundo, o lugar onde ele podia ser o que quisesse, sem a realidade a lhe dizer o que estava cansado de ouvir. Quando a Literatura não conseguia abriga-lo, então ele recorria à fuga da realidade por outros meios... Ele era um nada... um assassino... Então edificou mundos... com a ponta de uma caneta... construiu vidas emoldurando sentimentos complexos através de suas personagens, pedaços de sua mente que via o invisível... se entregou à ilusão da ficção. Mas ninguém sabia de sua verdadeira vocação, o que ele realmente fazia e sabia fazer, aquilo que ele imaginava ser sua única chance de mudança... escrever... mas pra quem? Escrever não o havia dado nada, nada além de frustrações e verdades esfregadas na cara...
Trabalhar era sobreviver... escrever era se iludir... mentir para si...
Ele tinha talento? Pra quem escrevia? Ninguém nunca o falou, ninguém, mas ele se permitia continuar a rabiscar centenas de folhas que buscavam algum sentido. A mãe uma vez disse que ele faria algo grandioso um dia, que marcaria a História... mas não tinha nada a ver com “essa coisa de escrever”, que ele não teria futuro nenhum com esse negócio de arte, que fosse estudar pra ser alguém, pra não ser um projeto de vagabundo igual ao pai. Dona Deusdete estava internada no Asilo Nossa Mãe havia 7 anos, ele não teve condições de cuidar dela após o câncer que levou suas duas mamas, o segundo derrame já havia sido um golpe brutal. Metade de seu corpo estava paralisado e seu rosto perpetuou um esgar de ironia. Foi a tal filantropia quem deu as caras no momento mais imprevisível, o asilo recebia doações anônimas.
José a amava... odiava... amava... sofria por não esquecer todas injúrias que vivera desde que se lembrava, mas sabia que ela fora uma mulher infeliz... o filho precisou ser homem pra pagar pelo pai, ela não suportaria outro abandono... não suportaria perder outra vez quem amava... foi uma excelente mãe... mas estava sofrendo demais... havia dor... muita dor... e o coquetel ministrado em segredo pelo filho amado foi a solução mais dolorosa que José havia encontrado. Lexotan, Diazepan, Rouphinol, Rivotril e uma bala de Ecstasy. O Ecstasy antes. A mãe dormiu para sempre após a medicação de “Dr. Joseph Matry Cyda”... Eutanásia? Não. Redenção... A morte foi dada como natural. Ele sonhou trazê-la pra casa só para mostra-la o contrário... ele conseguiria... venceria... mas, qual casa? “Quem já viu pobre sê escritor?” Disse uma vez uma ex-namorada. “É meu nêgo... pobre só chama atenção quando faz merda, acertar, fazê algo bom, só os afasta dos holofotes puquê os ‘iluminados’ não cedem espaço não, imagina só quantos talentos não tão por aí com arma na mão ou com um cachimbo de crack? Ser inteligente é ser perigoso!”.
Era assim em todos os aspectos de sua vida. Fracasso assistido. Limitação estratégica. Seus 80 contos escritos desde que tinha 17 anos retratavam essa visão, os três romances os quais dedicou anos para concluir eram peças de arte, ao seu ver, melhores que muitos publicados. Ele era bom no que fazia, sem falsa modéstia, era uma espécie de missão de amor e dor. Desde os 20 vinha tentando inutilmente ver impresso algum de seus frutos, livros inspirados em seus autores favoritos, em seus livros preferidos, livros que falavam da angústia, do medo, da dor, do absurdo, do desconhecido, da falta, de tantas coisas que lhe eram próximas, de toda sua infelicidade... Havia um conto que ele tinha afeição diferente, o havia escrito assim que iniciara a nova fase hoteleira torturante, se chamava “O Sorriso”, era um conto especial. Simbólico. O fazia não pensar em desistir.
Mas ninguém o olhava. Todos o ignoravam.
E ele aceitou ser Charlie Malcom. Pra que a ilusão doesse menos.
O que ele realmente era?
“A-S-S-A-S-S-I-N-O”
Sua consciência soletrava...
Na manhã que Bruno o procurou com olhos arregalados e o apertou a mão com força não habitual quando o encontrou no refeitório antes do início de um outro turno, José teve um insight.
— Meu velho... na moral... na moral mesmo, foi tu que escreveu isso aqui mesmo? — ele balançava a impressão encadernada com arame original — Tipo, foi da tua cabeça que rolou essa ideia? Sem onda mesmo, tipo, nada de tradução, nada de plágio, tipo, ideia própria, raciocínio próprio, inspiração... na moral?
José o encarou com olhos vivos. A boca se moveu num ricto de quem sabia que precisaria entender que de alguma forma ele havia captado a real mensagem, percebia a euforia de um admirador diante de um possível talento... ele o olhava como se ele fosse outro... havia uma outra ótica ali, outra perspectiva...
— Com certeza meu velho. Espero que tenha gostado, na moral mesmo. Agradeço a disposição em...
— Meu amigo — ele o interrompeu, abraçou José — Você escreve pra caralho meu velho! Puta que pariu! Eu viajei demais nessas ideias mano, narrativa fooodaaaa!! Tipo, eu não conseguia parar de ler porque eu tava acompanhando tudo numa doidera da porra! Muito intrincado saca... é difícil.. mas... mano. Muito louco, poético, filosófico, político, e muito real mano, meus parabéns! Você tem tudo pra fazer sucesso, e eu não sou de babar ovo nem puxar saco de ninguém mano, você tá ligado, eu curti mesmo. Diferente... único... tipo, eu acredito que há muito tempo eu não me impressionava lendo algo, de Literatura Clássica, universal mesmo mano. Na moral mesmo, acredite em você cara, o foda é ser conhecido, o cara tem que ralar pra caralho, eu sei, mas não desista mano. Você não deve nada a nenhum escritor que eu tenha lido. Não se trata de competição. Se trata de transmissão. Você é tão bom quanto todos eles. Quiçá melhor até... você só precisa que te olhem... Mano, chame a atenção pra você que você precisa ser conhecido mano. E vai! Pode crer!
José o observou com seriedade. Havia verdade nos olhos de Bruno. Ingenuidade... admiração... Respeito. Respeito verdadeiro.
— Obrigado velho, obrigado mesmo. Eu não imaginava que...
— Velho, é sério. Não desista, faça o que for preciso mano. Mate... se for preciso... mas busque a Literatura porque você tem talento. E olhe que eu nem li outras coisas suas mas vou querer ler sim. Totalmente inusitado... tipo, você fez algo impensável... e impensado, o que é o mais importante. E olhe que eu já li muita coisa. Parabéns mano... Aquela cena em que o filho mata o pai, toda a relação psicológica louca entre eles, e faz uma alusão ao xadrez foi dramática... pesado demais. Não sei onde tu foi arrumar essa ideia, tipo, foi muito real... ele não acuou o Rei, ele matou o Rei... Foda. Parabéns cara, na moral mesmo. Gostei pra caralho!
José refletia profundamente.
Naquele momento, a mente de José passeava outra vez por aquele beco escuro, confiante de que as coisas mudariam e ele esqueceria o quanto foi humilhante ter vivido o que viveu... quando olhou naqueles olhos tristes que o inspiravam tanta saudade, tanta ternura e desentendimento que ele aguardou que pudessem ser entendidos caso ele se explicasse... seus motivos, seus porquês... e o que viu foi... o nada. Nenhum remorso, nenhuma recordação. Algo vazio. Ele estava vazio e José retirou seu último sopro... Um ato de Justiça sob seu ponto de vista e que o injustiçou de várias formas... inclusive em seu insucesso... Não se pode matar... e logo o pai... a mãe...
A conversa com Bruno pareceu ter efeito estimulante sobre a imaginação de José naquela manhã, as lembranças e algo como uma possível esperança o atormentavam. Estava tendo diversas inspirações e insistentemente ouvia a frase sendo repetida em sua mente “Você precisa ser conhecido... mate... se for preciso...” Ele talvez fosse capaz... Não que quisesse, mas faria qualquer coisa pra que o Mundo o olhasse... nem que fosse por alguns segundos, mas que o seu nome pudesse ecoar pela eternidade com um feito notório...
“Você precisa ser conhecido... mate... se for preciso...”
Ele já era um assassino...
O telefone do restaurante tocou e coincidentemente era Bruno, gostaria de falar com José, o passador-de-carne, não o barman.
— Eae mano, qual é?
— Na moral mesmo, se liga no hóspede do 914, da suíte duplex, ele chegou ontem à noite, é gringão, coroa, altão, tá com a mulher, coroa também, baixinha, e um filho coroa barbudo, em outro quarto, os três usam óculos, enfim, eu acho ele familiar mas não tô reconhecendo ele... mas eu tô ligado que eu o conheço. Reserva em nome de Mrs. Spruce. O nome dos outros dois não tá na lista. Depois tu me diz qualquer coisa se tu sabe quem é, eu acho que eles vão almoçar aí hoje. Gorjeta em dólar mano, americano a galera. Não se esqueça do brother aqui não. Vai.
— Beleza, vou ficar de olho, valeu mano.
O movimento do horário e almoço teve início e logo o salão tingido por um vermelho púrpura na decoração estava repleto de diversas máscaras sentadas elegantemente enquanto os servos faziam seu trabalho com excelência. José observava à procura do perfil da família que Bruno o informara, estava um pouco curioso e também não entendia porque havia dentro de seu peito algo como o que ele sentiu no dia em que executou sua última jogada no xadrez da vida... Ele estava sentindo nuances diferentes de sua intuição, algo estava para acontecer... algo louco... surreal... parecia um flashback de ácido. A faca amolada cortava precisos pedaços agarrados por pegadores em mãos ávidas e deitados sobre um pequeno prato ainda molhadas do sangue quadrúpede... sal grosso, e só. Na faca escorria o vermelho bovino... sangue de sacrifício...
“Você precisa ser conhecido... mate... se for preciso...”
Quando os momentos de pico passaram, não havia mais que 50 pessoas no salão. A recepcionista bilíngue veio seguida por 4 pessoas, 3 de um tom de pele avermelhado, a mulher, logo atrás da recepcionista, tinha o cabelo curto e cinzento, o homem mais alto, de cabelos também grisalhos, segurava a mão dela, andava um pouco encurvado e seu andar tinha algo de coxo. O outro, cabelo e barba escuros, carregava dois livros de capa escura, eram livros grossos. Os três usavam óculos. A quarta pessoa José já conhecia de outros momentos, sabia que era um intérprete da língua inglesa. José os viu sentar em uma das mesas que fazia parte de sua rota, pegou no ar as dicas fornecidas por Bruno ao ouvir que era realmente em inglês que se comunicavam com Renata, a garota da recepção. Renata tinha graduação suficiente para gerir o hotel de maneira competente, mas esse cargo já era ocupado pelo sobrinho do proprietário, e à ela restou a função de recepcionar com excelência. E isso ela fazia. Chegava a ser deprimente.
— Oi Diego, oi José! Como é que tá?! Muito serviço hoje?! Olha a assistência com o pessoal da mesa 15 viu, eles são VIP tá? Vieram de muito longe, de um lugar bem frio e estão amando conhecer nosso país! E o principal, nosso Estado! Só é pôr em prática o que vocês já sabem né pessoal, vocês são demais! — Renata falava com um sorriso constante no rosto, as pernas em constante balançado contido — Vou contar um segredo pra vocês... o senhor mais alto, aquele que tá de jeans e camisa listrada simplesinha, tão vendo? Contribuiu muito para os nossos pesadelos com certeza quando éramos mais novos, sabiam? Não sei se já assistiram os filmes “O Iluminado”, “Carrie, a Estranha”, “Cemitério Maldito”, ou esse mais recente, “It, O Palhaço Assassino”, que tava nos cinemas, mas todos foram baseados em livros que ele escreveu. Ali é a família King! O senhor grisalho é o incrível e maravilhoso escritor Stephen King! Meu Deus é o Stephen King... Uau... Tá com a mulher e um dos filhos, que também é escritor, o Joe. Eu ainda tô me tremendo por ter conhecido ele... ai já tô falando demais... Não se preocupem que o sr. Robson vai traduzir qualquer pedido, então qualquer dúvida é só consultá-lo. Então, vamos fazer o melhor por eles e pelas férias deles tá certo? Não por isso, por nada de fama claro, mas sim porque somos os melhores no que fazemos! Bom trabalho! E sim... antes que eu esqueça, só pra avisar mesmo: nada de fotos, ok? Eles querem privacidade antes de tudo. Profissionalismo em primeiro lugar! Tchau!
E Renata se foi. Tagarela e operacional como sempre. A funcionária perfeita. Pensando em ligar pra amiga Bruna pra contar que ela não ia acreditar se ela dissesse que conheceu o Steph...
José estava paralisado.
A peça de picanha numa mão.
A faca amolada na outra.
A lâmina refletia um feixe de luz imaginária.
Seu sangue parecia ter pedrado, as pernas aos poucos tornando-se moles, amorfas. O chão adquirira a constituição de areia movediça, a respiração ofegante se acelerava acompanhando um raciocínio absurdo que imediatamente se formava...
“Não... não pode ser... não...”
Ele tentava não ouvir a voz...
“Mate...”
“Se for preciso...”
José não tinha frescuras com relação a nenhum artista, via claramente a verdade no quesito Celebridades X Fãs, sabia bem que os tais famosos pouco se lixavam para aqueles que muitas vezes dormiam em calçadas desejando ver de perto aqueles em quem depositaram algum tipo de afeição capaz de amenizar a angústia da vida... músicos, atores, youtubers, não importava, eles queriam distância da grande massa. Era a distância quem mantinha as coisas em seu devido lugar. Todos eram gentis e maravilhosos enquanto estivessem sendo bem atendidos e satisfeitos em suas necessidades especiais como pessoas especiais, os limites residiam na natureza da realidade dos fatos... servos devem permanecer servos... ponto final. Criar um novo parágrafo dependeria de uma revolução em massa quase utópica tendo em vista a estrutura solidificada da ignorância conquistada ao longo de eras...
M as ali... era Stephen King...
A fonte... referência...
T alentoso... inspirador...
E ternizado... respeitado...
O Mestre... alguém a ser batido...
REI...
A chance.
- Bora José! Tá dormindo é? Porra de VIP, porra de livro, porra de escritor, porra de filme! Esse aí é só mais um fresco riquinho, livro de cú é rola! Vamo que essa porra ainda vai encher hoje, já tô vendo que vai dar merda mais tarde, 4 cara pra atender todo mundo? Tomá no cú... Aquela Renata fala pra caralho! - vociferou Diego “Macaco” perto de José e saiu resmungando com a bandeja cheia de pratos ensebados de gordura. Diego andava realmente muito estressado, sempre de ressaca, sempre zangado, sempre triste. Aos quarenta a vida tem um peso diferente, e ele sentia.
José partiu na direção da cozinha como se atiçado pelo açoite demoníaco da dúvida, será mesmo que o que pensava tinha algum sentido?
“Ele seria capaz?!”
José estava decidido. O futuro e o presente fundiam-se com o passado sendo apenas o mesmo presente que depois seria passado e nunca o futuro que seria efeito de todo o presente...
Ligou do telefone do refeitório para a recepção.
- Recepção, Bruno, boa tarde.
- Bruno meu velho, aqui é o José, me responde uma pergunta rapidão, tu tá em qual período da faculdade mesmo? Tu acredita mesmo que tu vai ser bom no que tu quer fazer? É isso mesmo que tu quer fazer da vida cara? - José perguntou com um tom de voz sério, Bruno do outro lado ficou confuso, sem entender o contexto para que sua resposta soasse em concordância com o que agora ele pensava a respeito de José, já que acreditou que ele era um ser diferente... uma espécie de catástrofe sentimental escondida na imagem de um homem comum. Bruno analisava-o psicologicamente agora, literariamente e humanamente, José seria um caso interessante para o Direito na Literatura. “O que é a Justiça para quem acredita ter o direito e a necessidade de matar?” Esse questionamento ficou de sua leitura do livro não publicado de José.
- Bem... sem contar com possíveis greves, eu creio que em um ano... um ano e pouco meu velho, sabe como é que é faculdade Federal né, daquele jeito, mas, que que houve mano? Pergunta estranha a essa hora, ganhou uma gorjeta boa pra gente mudar de vida foi mano? Demorou?
- Me arrume um bom advogado mano, eu te peço só esse favor, depois você vai entender cara... vou seguir seu conselho... talvez depois isso faça algum sentido meu velho, vou precisar de você pra me ajudar com as publicações dos meus trabalhos, se você quiser, claro... - e desligou antes que Bruno pudesse responder. Bruno ia retornar a ligação, mas uma família de chilenos chegou pedindo informações e ele precisou responde-los. Estava intrigado.
José observou bem antes de sair correndo do salão e realmente era ele... seu herói... parecia que ele sentia algum tipo de energia diferente no ar... conversava alegremente com a esposa Thabita e com o filho Joe... que coisa mais improvável estava acontecendo naquela manhã estranhamente encorajadora... Stephen King... o Rei... a quinze metros... seria a cena perfeita para o livro mais louco que escreveriam num futuro caso ele fizesse o que estava pensando...
Em alguns instantes sentimentos que tentavam justificar o que faria se misturavam com todas as lembranças de como aquela mente brilhante o havia feito entender o poder do que fazia quando escrevia... como era nobre a lição de como ele via a função da Literatura. Seu trabalho influenciara a decisão de José em continuar acreditando no que fazia, foram tantos de seus livros lidos e relidos... alguns o marcaram profundamente...“A Dança da Morte”, o primeiro que leu, ainda adolescente, com seus grupos divididos pelo chamado divino... “A Autoestrada” e a dor da perda e o apego às memórias de um passado ameaçado pulsando a cada página e guiando ao suicídio... “Sobre a Escrita”, que o ajudou a encontrar outros modos de ver o ofício e a missão da escrita... “Love”, “Rose Madder”, “Angústia”, “Sob a Redoma”, “Sombras da Noite”... e tantos outros... tantos... King era muito mais que uma referência... era uma mente única e inigualável, um artista além das fronteiras impostas pelo tempo, um produtor de sonhos impressos, dono de uma imaginação invejável e um exemplo de superação e fé na Arte. Todo o reconhecimento alcançado por ele ao longo de décadas era totalmente justo, ele havia se dedicado como nenhum outro para alcançar o patamar em que se encontrava. Naquele momento, havia um livro por ele escrito que incentivava “Charlie Malcom” a acreditar no que estava sentindo... no chamado “divino” à realização de algo que ecoaria indefinidamente pela História o tornando odiado para que houvesse a mínima chance de um dia ser amado... seu livro preferido do mestre... “A Zona Morta”, e a decisão de matar para mudar o rumo do destino... a voz desse destino soava como um cântico profético numa versão Heavy Metal...
“KILL THE KING!”
- Cadê José? - perguntou Valdemiro “Chupa-Ovo”.
- Acho que ele deu um pulo no banheiro, aproveitou que o movimento deu uma baixada - respondeu Diego, que na verdade não sabia onde José havia ido.
- Porra, num movimento desse o cara fica saindo direto, tô vendo que essa equipe tá precisando de algumas modificações... - Clécio “Papa Véio” foi em direção à cozinha pra ver se encontrava José para acariciá-lo com algumas boas palavras de incentivo e empenho.
José apareceu ao fundo do corredor e Clécio já estava armado para saber por que ele não estava no salão.
- Meu filho, bora bora bora, num terminou o expediente ainda não! Banheiro só na hora do intervalo, você sabe que num é a primeira vez que eu lhe digo isso! - Clécio falava olhando para José como se olhasse pra um pedaço de fezes canina, ele costumava olhar assim para a maioria de sua equipe.
José passou por ele como se não houvesse ouvido nada. Pegou a faca afiada que estava sobre uma mesa, retirou um dos espetos que girava sobre o fogo, e foi para o salão como um soldado decidido a explodir o colete com dinamites preso ao corpo para com isso levar o maior número de inimigos. Clécio ficou com a boca aberta pensando que já era para José, iria providenciar sua demissão o mais rápido possível porque não gostou do jeito de José desde que ele entrou. Achava-o muito “intelectualzinho” pro gosto dele, sempre fazia pouco caso do que ele falava, tinha problemas sérios com a hierarquia. Ia o presentear com uma passagem de ida para a “Terra dos Currículos”.
- E aí Diegão, vou lá atender o gringo, vou atender muito bem mano. Muito bem mesmo... - José falou e se encaminhou com o “Faisão ao Red Pepper” no espeto.
- O frescão que traduz já me pediu as bebidas, o coroa que ela disse que é escritor é tão fresco que pediu cerveja sem álcool, é demais isso... Melhor pedir um copo de leite, frescura do cranco - o ânimo de Diego realmente andava nos piores dias, e nem mesmo seu mau humor conseguia imaginar os acontecimentos do próximo ato.
Nos segundos que antecederam a chegada de José à mesa 102, ele fixou o olhar naquele homem responsável por fomentar a imaginação em milhares de pessoas ao redor desse mundo de caos e perfeição, e ele havia cumprido com mérito e notável distinção sua missão. Na mesa, os quatro conversavam dentre sorrisos, Stephen King segurava os livros e os abria enquanto Joe King explicava alguma coisa para o intérprete. Nos pratos, José conseguiu perceber que havia salada. Aguardavam as carnes? Talvez... mas jamais o que aconteceria...
- Excuse me... “Pheasant with Red Pepper” Mr. King? - José falou com o coração acelerado, seu corpo tremia e ele sentia arrepios subindo da base da espinha como se querendo eletrocutá-lo. O intérprete olhou para José surpreso, talvez pela firmeza da pronúncia, talvez por não saber que ele reconhecera a celebridade.
- Oh yes... thank you... it seens delicious... - Stephen King falou com um grande sorriso, os olhos azuis por trás das lentes fitavam José como se curiosos, talvez ele estivesse percebendo as mãos trêmulas do garçom e quem sabe tendo alguma inspiração para mais uma de suas maravilhosas estórias. Ele e José ficaram por segundos eternos a se olharem enquanto a faca removia a coxa do faisão e a colocava no prato. E o que aconteceu em seguida, foi algo... desconcertante...
- Thank you sir for everything... I hope you can forgive me... I’m a horror writter... and this is my only chance to change my life... - enquanto falava, todos na mesa o olhavam, o intérprete olhava para trás à procura do gerente, estava constrangido com a atitude indiscreta do garçom, sem falar que não imaginava se ver sem utilidade no contato entre as partes. Stephen King olhava José e em seu olhar um brilho diferente arrefeceu o sorriso de segundos antes, e ele falou...
- Yes... I forgive you... that’s the best end... do what you have to do man!
E como numa cena de filme, um filme onde no tabuleiro o Peão se aproxima do Rei e o encurrala sem ajuda de nenhuma outra peça... a faca cortou o ar numa velocidade sibilante, o contato dela com o pescoço pulsante fez jorrar o sangue em todas as direções...
- Ah meu Deus!! Meu Deus!! Não!! O que você fez!! - o intérprete Robson gritava como uma estudante de ensino médio ao ver seu ídolo de perto.
Na mesa, caído sobre o prato, um senhor alto, magro e grisalho, está com um sorriso no rosto, no pescoço um corte profundo faz com que seu sangue escorra pela mesa, a esposa Thabita grita como se saísse do pior pesadelo de todos, algo nunca imaginado pelo homem com quem por décadas dividiu a vida. Ela o sacode pedindo que ele acorde, mas há vermelho demais ensopando a camisa... o faisão... ao redor... As pessoas no salão rapidamente se levantaram e o tumulto generalizado tomou conta do restaurante, todos se apavoraram ao ver o homem degolado sendo abraçado pela esposa em pranto ensurdecedor. O filho Joe partiu para cima de José que havia largado a faca e o faisão no chão e olhava para o homem desfalecido com lágrimas que escorriam, o socou e José caiu no chão, recebendo chutes por todo o corpo, insultos que ele não conseguia entender. Então tudo ficou escuro... ele planou por sobre um lugar desconhecido... estava feito...
A notícia inacreditável se espalhou como um vírus por todos os meios de comunicação, era só o que se falava em todos os programas, jornais, tabloides, redes sociais. O mundo estava totalmente perplexo com a morte terrível do maior escritor de suspense e terror do século XXI, parecia uma piada de mau gosto narrar o fato para uma legião de fãs indignados com uma tragédia sem precedentes na História, desde Lennon ou Kennedy os americanos não sentiam tamanho choque. O Maine estava em luto eterno. Os jornalistas traziam psicólogos para explicarem o que havia motivado o garçom que não possuía nenhum antecedente criminal a cometer tal crime, teria sido para chamar a atenção? Teria sido mais um caso de fã fanático? Teria sido apenas o mal que habita todos os seres humanos dando o ar da graça como todos os dias ele o faz sem que nos demos conta?
Meses se passaram até que ficassem sabendo que José escrevia livros, que era visto pelos colegas de trabalho como alguém distante, que parecia ter algum problema muito sério escondido em seu íntimo. Após sua primeira entrevista assistida por todo o mundo via Internet, José, com a aparência de um cadáver, revelou que o próprio King havia autorizado sua ação, o que entrou em confronto direto com o depoimento da esposa do escritor, do filho e do intérprete, que realmente haviam ouvido as últimas palavras dele, mas que não conseguiam associar ao crime cometido. Após mencionar os livros escritos na entrevista, José acabou por atrair a atenção de alguns editores com faro apurado para o dinheiro, independente do que se tratava a literatura do assassino, o acontecido certamente havia entrado para a História no hall dos assassinatos que marcaram uma geração. O luto pelo escritor gerou inúmeros protestos ao redor do mundo, a retaliação contra brasileiros ficou ainda mais perceptível em outros países, todos queriam pôr as mãos em José e esfolá-lo no melhor estilo indígena. Mas não conseguiram.
Depois de transferir os direitos autorais para o advogado, dois anos depois do assassinato, José se enforcou na cela com o lençol da cama. Bruno, detentor da obra devidamente registrada, fechou um contrato milionário com uma editora que resolveu publicar toda a obra de José dos Santos sob o pseudônimo de “Charlie Malcom”, e o que jamais esperariam aconteceu: em menos de uma semana 1 milhão de cópias do livro “A Chaga dos Dias” foram vendidas, e nos meses e anos seguintes, o mesmo se repetiu com os outros 3 romances publicados e os 5 livros de contos. Os críticos literários faziam debates ferrenhos sobre a obra do desconhecido assassino e suicida, as universidades usavam contos de sua autoria em aulas, estavam todos desnorteados com o valor das obras e todos se perguntavam “Por que ele precisou fazer isso?” “Quem foi José dos Santos?”
Infelizmente, somente sua obra poderia responder...