A VELA
Tivera um dia muito tumultuado até então. Tumultuado como sempre. Já não via a hora de se livrar do recruta que a Unidade escalara para atuar com ele naquele mês. Seu parceiro, apesar da pouca idade, era esperto demais e sua esperteza o preocupava muito. Ramon tinha que trabalhar com a atenção redobrada para não tomar volta. Já não conseguia suportá-lo. O mango era muito ambicioso. Um verdadeiro guelão. Ramon sabia que aquela parceria poderia custar-lhe a carreira. Há tempos ele vinha observando Estevan. Sua proximidade com os comerciantes e contraventores. Suspeitava da prática de “acerto” ou “arrego”. Ramon não compactuava com o erro, mas sabia muito bem que quando a casa caía ninguém se salvava. Estevan era muito mau, sádico e inescrupuloso. Tratava mal as pessoas mais humildes e agredia os mendigos nas ruas sem motivo algum. Ramon já tinha perdido toda a paciência e faltava pouco para se estranhar com o parceiro. Passou grande parte do dia sem falar uma só palavra e naquela altura dirigia a viatura vagarosamente enquanto Estevan tirava um cochilo ao seu lado. Passava das quatro da manhã quando algo inesperado lhe chamou a atenção. Um motociclista fazia manobras na rodovia a despeito da presença dos homens da lei. Ramon não titubeou e arremessou a viatura contra o motociclista propositalmente derrubando-o ao solo. Embora o choque tenha sido relativamente forte, teve apenas ferimentos leves. Os patrulheiros, ainda tomados pelo susto e com os nervos à flor da pele, desembarcaram convictos de que se tratava de algum marginal da lei. Ramon dava ordens para que o jovem pusesse as mãos na cabeça, mas ele parecia não entender. Ramon insistia, mas o jovem parecia estar confuso e, quando tentava levar a mão ao bolso para apanhar sua identificação foi atingido de súbito por um tiro na cabeça. Estevan mais uma vez se precipitara. Ramon tentou socorrê-lo, todavia, já era tarde. O menino tinha ido a óbito. Depois de travarem breve discussão, Estevan sugeriu que pusessem uma vela na mão do garoto. Ramon rechaçou. Não concordava com essa prática. Definiu que preferia falar a verdade e assumir as consequências daquele ato. Estevan tratou logo de dissuadi-lo e insistiu na ideia da vela. Vencido pelas circunstâncias, Ramon houve por bem concordar com Estevan, mas tratou logo de cuidar dos mínimos detalhes, conforme a vasta experiência que adquirira durante a longa carreira. Apanhou uma pistola 380mm com numeração raspada dentro da viatura e pôs na mão do rapaz, efetuou um único disparo com a finalidade de impregnar a mão da vítima com pólvora. Em seguida, acionou a central, solicitou apoio e juntos procederam para a delegacia a fim de registrarem mais uma ocorrência de morte em confronto armado. Mais uma vez tinha dado tudo certo. A vida de Ramon, porém, nunca mais seria mesma. Naquela mesma noite foi terrivelmente assombrado com pesadelos e alucinações. Sentia-se completamente indefeso a qualquer tipo de perigo. Na noite seguinte, enquanto dormia ouviu um barulho do lado de fora da casa. Ao aproximar-se da janela viu claramente a imagem do jovem motociclista com as mãos espalmadas sobre os vidros. Seus olhos, vermelhos como um fogo ardente e uma expressão vazia que parecia querer fulminá-lo. Ramon ficou extremamente apavorado. Esvaziou a caixa de remédios antidepressivos para conseguir dormir, mas sua tensão continuava altíssima. Pela manhã tentou caminhar um pouco para descontrair, mas com toda certeza não fora a melhor ideia. Para todos os lados que olhava via pessoas com jaquetas de couro e capacetes. Tudo o que via o lembrava do fatídico episódio. Aquilo o assombrava ainda mais. De repente, sentiu alguém tocá-lo no ombro pelas costas e quando se virou viu o jovem que fora assassinado exatamente como na última vez que vira, com um buraco no meio da testa provocado pelo tiro. Desesperado, correu de volta à sua casa. Mais uma vez dopou-se com os remédios e recolheu-se. Por volta das duas da manhã Ramon ouviu alguém bater à sua porta. Não atendeu. A pessoa insistiu. Ramon ficou apavorado. Pegou a pistola que estava na gaveta da cômoda e foi em direção à porta com todo cuidado. Quando abriu deparou-se com um jovem motociclista de pé, à sua frente, com jaqueta de couro, capacete e o mesmo olhar fulminante. Não hesitou e efetuou um disparo certeiro em sua testa. A vítima ficou caída ao solo, paralisada, sem vida. Quando Ramon se aproximou dele percebeu que se tratava de um ledo engano. Ali estava Estevam, o seu amigo, caído ao solo. Estevam estava muito preocupado com Ramon e decidira visitá-lo, talvez, para tentar tranquilizá-lo e evitar que viesse a falar demais e por a carreira de ambos em xeque. Jamais podia imaginar uma recepção daquela. Por alguns minutos, Ramon ficou paralisado olhando para o corpo do amigo sem saber o que fazer. Depois, investido da capacidade de apreensão de conhecimento e experiência, caminhou lentamente até o seu quarto, apanhou uma pistola 9mm com a numeração raspada. Ajeitou-a à mão de Estevan. Fez um único disparo com a finalidade de impregnar a mão do amigo com pólvora. Em seguida, acionou a central, solicitou apoio para suposta ocorrência de homicídio em legítima defesa após tentativa de roubo à residência. Enfim, mais uma ocorrência de morte em confronto armado. Mais uma vez tinha dado tudo certo.