UM JARRO QUE CAI

Desde que me mudei para o quarto-e-sala de um edifício antigo no centro da cidade, sou obrigado a escutar, dois dias por semana, a música alta que vem do restaurante localizado bem abaixo da única janela do apartamento.

Para compensar o baixo movimento e atrair clientes, o estabelecimento oferece música ao vivo às quartas e quintas-feiras, intercalando as apresentações com jogos de futebol transmitidos pela TV. Os shows começam ao cair do dia e se estendem até meia noite. Raramente consigo pegar no sono depois que a música acaba e o alarido noturno do Centro se restabelece.

Chego do trabalho por volta das dezoito horas, consumido pelo ambiente tóxico do escritório e pelas longas jornadas passadas em frente ao computador, redigindo petições. Ao chegar em casa, cumpro um ritual redentor. Tomo banho, como o que estiver à mão – raramente cozinho – fumo dois a três cigarros e durmo embalado pela profusão de sons e cores da televisão.

O ritual, no entanto, é interrompido quando os músicos do restaurante soltam o primeiro acorde. Dali em diante, durante horas, tento em vão conciliar o sono com os falsetes rasgados que entram janela adentro.

Cheguei a requisitar, certa vez, auxílio dos órgãos de fiscalização. Um agente apareceu ao local dias depois com um medidor de decibéis e interrompeu a apresentação logo no início. Nos shows seguintes, foi possível perceber uma leve redução no volume do som. Já pela quarta ou quinta apresentação, tudo se passou como se nada tivesse acontecido e a vida voltou ao normal.

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A banda começou a apresentação com a música de sempre; raramente alteravam a ordem do repertório.

Decidi não esperar muito para arremessar o vaso em direção ao pequeno palco onde os músicos se espremiam entre caixas e aparelhagem de som; antes, estimei a força que devia utilizar para fazer o vaso alcançar o alvo, situado três metros à frente da janela, sete andares abaixo. Atirei o vaso com as duas mãos, evitando testemunhar a trajetória completa do objeto.

Com os sentidos turvados pela maconha, eu não conseguia compreender com exatidão o que acontecia lá fora depois do arremesso. Tapei os ouvidos e, no lugar do zumbido abafado, escutei gritos, sirenes e cães latindo por toda a vizinhança. Descerrei os ouvidos e ouvi um casal de vizinhos passando às gargalhadas pelo corredor, em frente a minha porta, e entrando no apartamento ao lado.

Deitei em seguida e não demorei a dormir, abatido por um cansaço súbito, até ser acordado pelo trinir estridente da campainha.

Antes de atender à porta, olhei em direção ao canto da sala, onde ficava o jarro de barro, cheio de terra com um galho morto de crisântemo no meio. O local, completamente vazio, me chamou de volta à realidade.

A campainha tocou de novo, desta vez mais insistente.

Comecei a tremer enquanto caminhava em direção a porta. Tinha vertigem, o ambiente começava a ficar escuro e os objetos ao redor eram vistos em duplicidade. Previa, agora acometido de náusea e dores musculares, os próximos acontecimentos da noite, a partir do momento em que a porta fosse aberta - a condução até a delegacia, o olhar impassível do escrivão, o chão frio e imundo da cela, ameaças vindas de todos os cantos e talvez câmeras de filmagem e repórteres.

A meio passo da porta, fui arrancado do transe pela voz familiar do vocalista da banda, que em tom alegre informava ao público que a apresentação havia sido interrompida por problemas técnicos e que logo mais voltariam a tocar.

João Pegado
Enviado por João Pegado em 23/04/2020
Reeditado em 25/04/2020
Código do texto: T6926109
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