O sítio do tio - Parte II
Elizabeth, na carroça, acompanhada apenas do quieto Inácio, o carroceiro, e da noite, sentia um aperto no coração, como nunca sentiu. Mau pressentimento? Não sabia a explicação para esse incomodo no peito e na alma, mas já não podia voltar, estava no meio da viagem, passando por uma daquelas estradinhas de terra com elevações nas laterais. Bastou a ela contar com o divino para que aquilo passasse. Por algum motivo, a imagem de seu filho e seu sobrinho não lhe saíam da mente, se pôs a rezar para que nada os acontecesse.
Leônidas, perverso, só deixava-se imaginar o que poderia fazer com os dois. Em sua cabeça surgiam mil idéias, uma mais cruel que a outra, tanto que não conseguia ao menos decidir qual era a melhor. Irritado com as risadas dos menores, do lado de fora, gritou, assustando os dois garotos. Eduardo, temeroso com o berro que veio de dentro da casa, sugeriu ao primo para que fossem dormir; eram sete e meia da noite. Maurício não quis.
O mais novo, para evitar que fizessem mais barulho, levou Eduardo para a parte de trás da casa, lá existe uma pequena horta, uma cabaninha onde guardam as ferramentas e, aos fundos, ate até o fim do lote, um caminho que segue até um lago.
Resolveram ficar perto da casa, ambos ainda se policiavam para que não extrapolassem no barulho. Eram agora oito e vinte e três. Leônidas surgiu, abrindo a porta dos fundos de supetão, assustando os que ali estavam.
Apontou para o filho e chamou-o, ordenando que o seguisse, ratificou, no fim, que apenas ele deveria ir; Maurício pediu ao primo que ficasse lá esperando.
Tempo passou, já se passavam das nove e meia, Eduardo já estava um bom tempo esperando, até achou que fosse uma brincadeira, mas começou a se preocupar.
Em outras bandas, Elizabeth, quase chegando em seu destino, voltou a sentir dores, dessa vez as pontadas eram bem mais fortes que ela chegou a gritar. O carroceiro teve de parar e lhe prestar socorro, quem passava por ali também se propunha a socorrer a mulher, mas o que eles não sabiam era que a dor maior era a preocupação que ela sentia...
Eduardo chamou por Maurício, três vezes, onde estava, não foi respondido. Mesmo receoso, foi procurar o amigo dentro da casa. Na cozinha, apenas alguns insetos que comiam migalhas deixadas pelo chão, na sala de jantar reinava a solidão da mesa e cadeiras sem a vida de uma família reunida para a refeição. Viu a escadaria para a parte superior da casa, lá de cima ouviu uns ruídos, um suor frio e solitário como a noite escorreu de sua testa. Tomou coragem e subiu.
Talvez isso foi um grande erro.
A cada degrau os sons aumentavam, quando enfim chegou, viu a porta do final do corredor, lá era a sala que Leônidas passava o dia, a luz que saía pelas frestas da porta pareciam querer fugir dali para que não tivessem que testemunhar a maldade que era feita lá.
O menino seguiu até a porta, era de lá dentro que viam os sons abafados, abriu a porta devagar e viu a pior coisa que seus poderiam enxergar: Maurício estava amarrado na cadeira, com sangue escorrendo em suas pernas e multilado; Leônidas, o culpado, segurava seu queixo lhe queimando de leve no pescoço com um palito de fósforo aceso.
Maurício olhou sôfrego em direção ao primo, Leônidas percebeu, virando-se para trás rapidamente.
- Oi, sobrinho.
Não demorou e o garoto começou a correr, para evitar problemas, o homem deu fim ao filho e foi atrás do outro menino, que fugiu.
Viu da janela ele correndo pelos fundos do terreno, desceu até lá e passou pela cabana de madeira antes, pegou um serrote, um alicate e outros objetos e foi em busca do sobrinho.
Eduardo foi até o fim do caminho de terra, se viu encurralado pela água da lagoa e se escondeu pelas árvores que haviam lá.
Ofegante, tentava não arfar muito para evitar qualquer barulho, mas mal conseguia. Caíam lágrimas de seus olhos, maldita cena que viu, queria apenas que fosse um pesadelo. Escorriam, para seus lábios rubros, o líquido salgado como o oceano. Aquela imagem, do seu quase-irmão torturado de todos os jeitos, amarrado e amordaçado, naquela cadeira, pelo próprio pai, lhe perturbava, pedia aos céus misericórdia, mas não adiantou...
Leônidas achou o sobrinho, o puxou, de surpresa, com tanta força que deslocou o ombro do efebo. Jogou-o no chão, e, com toda sua insanidade aflorada, o torturou e matou.
Às duas e cinco da madrugada, o corpo desmembrado do menino mais velho foi jogado, ensacado, no lago. Maurício foi enterrado embaixo da cabaninha das ferramentas e, longe dali, Elizabeth, a doce mulher maltratada por anos, sofreu um infarto e morreu.
No fim, a família de Eduardo estranhou o atraso do filho para chegar em casa, visitaram o local para buscá-lo, nunca o encontraram. Leônidas saiu do estado e ninguém nunca mais o viu, mas, doze anos depois, acabou morrendo em um acidente na cidade de Caipó. Contam que ele viveu esse tempo atormentado pelo espírito dos três.