A caixinha de jóias
A CAIXINHA DE JÓIAS
Wild completara dezoito anos e estava eufórico por adquirir o salvo-conduto ou, como diziam os escravos, a sua alforria.
Bernardete (sua avó), que estava muito doente, deu-lhe de presente uma “caixinha de jóias” e pediu que só a abrisse quando completasse 60 anos. Disse-lhe ter jogado a chave fora porque assim, far-lhe-ia refletir, todas as vezes que a curiosidade quisesse vencer a sua razão. Outrossim, dar-lhe-ia forças, em muitos momentos, para suportar situações difíceis, pelas quais certamente passaria até completar os sessenta anos.
Em janeiro do ano seguinte, Wild acabara o serviço militar, quando sua avó veio a falecer. Sentiu que com ela partiam muitos momentos de alegria, satisfação, atenção, carinho, consolo e educação. Sozinha, com uma mísera pensão, fê-lo um homem de bem, com saúde e dignidade, desde o dia em que a fatalidade, numa colisão de ônibus, levou seu avô, pais e a empregada, para o repouso eterno. Foi o maior teste de resignação pelo qual passou.
Já era adulto e o mundo abria-se diante dos seus olhos sem que nenhum elo vivo restasse dos seus antepassados. Tinha que enfrentar aquela realidade. Jovem, como a maior parte da população brasileira, desempregado e desamparado, com pouca cultura, muita fome e incrédulo quanto aos rumos do país, quase sem esperanças, olhou para a “caixinha de jóias”, uma das poucas coisas que lhe restou na mochila, entre roupas e objetos de uso pessoal. - Pensou em abri-la. Mas como! Estava com dezenove anos, era um homem de palavra e racional. - Não! A honestidade fazia parte da herança que sua avó lhe deixara e jamais poderia desaponta-la!
Obrigado a deixar os cômodos onde moravam de aluguel, caminhou pelas ruas e bairros, procurando um abrigo. - Nada! - Procurou um albergue, mas não havia na cidade; bateu em portas de fábricas, lojas, casas e... Nada! Continuou a via sacra em ruas mais distantes, rodovias, outras cidades e... Nada!
À noite, abrigado sob marquises, pontes, sacos plásticos quando chovia, ou mesmo ao relento sobre bancos de praças semiabandonadas, passava horas conversando com sua “caixinha de jóias”. - Eram momentos de paz, oração e reflexão em que, dia após dia, via as esperanças partirem como as águias, distanciando mais e mais as suas ilusões. Enfrentando o frio ou calor, o vento ou a chuva, ainda tinha que se proteger de indesejáveis visitantes. - Não mosquitos, morcegos, baratas ou ratos! Nada disso! Só gente! Gente que está em todas as partes, faz qualquer coisa, infringe aos mais elementares princípios de respeito, dignidade, honestidade, higiene e educação. Expressão viva da marginalidade, desgoverno, insegurança, revolta e desamor que, na calada da noite, busca arregimentar soldados para o seu clã de vícios e quem sabe, atos espúrios como o sexo sem restrições, o roubo, a droga ou até mesmo a criminalidade. Sim, a criminalidade! Porque não? – O que podem esperar da vida? - Nada!
Os anos passam. Ruas, casas, estradas, veículos, tudo se aprimora, no tamanho e luxo. Também a marginalidade é maior, tal qual a pobreza. Crianças abandonadas, insegurança, descrença, multiplicam-se. Enfim, uma sucessão de mesmices como o badalar de sinos sem fé ou a fosca luz de uma liberdade sem paz, sempre no rumo da inconseqüência e desigualdade, numa sociedade heterogênea, absorta pela omissão.
Assim Wild conheceu o mundo, a derrota, o sofrimento e a solidão. Aprendeu com a leitura de notícias estampadas em velhos papéis com os quais se aquecia, que elas permaneciam atuais. Entendeu que mudavam os seus atores, as cores, as formas, mas não o conteúdo e nem o significado. Pasmou-se ao ver que os restos que o sustentava e a muitos outros, acabaram por convencê-lo da importância de sua existência para evitar tanto desperdício.
Seis anos depois, seu Deus parecia diminuir a cada noite, suas orações eram mais curtas, “a caixinha de jóias” ficava esquecida por mais dias seguidos, no fundo da imunda mochila. Num belo dia, Wild caminhava pela avenida quando, uma buzina disparou, impetuosa! - Ao olhar para a rua viu uma criança atônita! - Ele correu em sua direção e, num movimento puramente instintivo, segurou-a, jogando-a para a calçada.
Depois de vinte dias em coma, Wild acordou no quarto de um hospital. – Ao ver uma senhora do lado da cama, pergunta-lhe: Onde está a criança? - Ato contínuo ela abraçou-o e pôs-se a chorar copiosamente, repetindo a seguinte frase: “Graças a Deus! Você voltou! Muito obrigado... muito obrigado...” - Passados aqueles momentos de emoção e surpresa, ficou sabendo que a criança nada sofrera e que aquela senhora, Dolores, era sua mãe; que esteve em coma devido ao impacto que sofrera do ônibus e que mais alguns dias de observações, lhe dariam alta do hospital para que retornasse às suas atividades normais.
Dolores, a mãe de Felipe, aproximou-se de Wild, beijou respeitosamente sua testa e disse-lhe: “sexta-feira virei buscar o senhor e o levarei em minha casa. Quero que conheça o meu marido e veja o nosso filho. - “Afinal de contas ele agora tem dois pais, o senhor não acha?” - As lágrimas escorreram pela rude face de Wild e, como por encanto, fizeram com que abrisse um largo sorriso nos lábios que, desde a partida de sua avó, jamais houvera acontecido. - Com seu lenço perfumado e de uma brancura que há muito tempo Wild não via, Dolores enxugou-lhe as lágrimas, colocou em suas mãos “a caixinha de jóias” desculpando-se por não ter conseguido salvar mais nada dos seus pertences, afirmando nem entender como aquela caixinha, estava dentro de sua mão e tão fortemente segura. Despediu-se e recomendou-lhe que a aguardasse na sexta-feira pela manhã.
Sozinho, ele passou a lembrar do passado e perguntou-se: “Porque acordar se tudo já tinha terminado? Para que continuar esse verdadeiro turbilhão de nadas?”. - Pensou fugir, jogar-se pela janela do prédio e até antecipar o próprio fim. Porém, lembrou da avó e de suas palavras. Como poderia ser tão covarde se precisava viver ao menos sessenta anos, para abrir “a caixinha de jóias” ?
Na sexta-feira, dez horas da manhã, a enfermeira entrou no quarto, forneceu-lhe roupas e calçados novos. O cabelo e a barba já tinham sido cuidados antes do banho matinal.
Wild levantou-se da cadeira e foi vestir-se. (Há muitos anos não me via tão bonito, exclamou interiormente.) - De volta ao quarto, a enfermeira perguntou-lhe se nada tinha esquecido. - Respondeu que não, pois tudo que possuía era aquela caixinha de jóias e o documento que encontraram na suja e velha camisa. Agradeceu por tudo, beijou a mão da enfermeira e foi para o saguão do hospital, onde Dolores já o aguardava.
Durante o almoço, soube que ficaria morando na edícula da casa e que trabalharia na fábrica do Nelson, pai de Felipe. Depois desse dia sua vida mudou totalmente. Aprendeu um ofício, fez cursos de especialização e tornou-se um profissional respeitado na fábrica.
Em casa tinha com quem conversar, trocar informações e ainda um “filho” que não saía do seu pé. – Tornou-se um novo membro da família.
Aos trinta e sete anos, encontrou seu espinho e acabou casando. Aumentou os cômodos da edícula e ali, com a esposa Marta, criou dois filhos. - Não tinham sonhos ambiciosos e foram muito felizes.
Felipe, muito estudioso, havia crescido, casado e estava realizando um curso de pós-graduação no exterior, era o orgulho de todos.
Wild nunca mais deixou de orar com “a caixinha de jóias”, antes de deitar-se. Agradecia cada momento de sua vida, as alegrias, conquistas e também as angústias, derrotas ou contratempos, pois aprendera que assim amadurecia e conseguia a paciência indispensável na busca pela paz, compreensão e respeito ao próximo. - Como sua avó foi importante! (Pensava) - Além de criá-lo com dignidade, respeito, educação e perseverança, fez-lhe forte o suficiente para resistir à fome, solidão, abandono, desonestidade e também às investidas do mundo mau. Acreditava ainda que, se alguma coisa existisse de sobrenatural, certamente teria sido sua avó quem colocou, no dia do acidente, “a caixinha de jóias” dentro de sua mão, enquanto desmaiado, permanecia estatelado no asfalto quente.
Hoje, Wild completou sessenta anos e adquiriu a maturidade e compreensão que, segundo sua avó, lhe dariam a capacidade de entender certos fatos e atos. - Ele está nervoso e curioso para saber o que contém “a caixinha de jóias”. Também está temeroso pelo que ela possa trazer-lhe de surpresa, nesse momento em que está tão feliz. Porém, se foi capaz de resistir todo esse tempo, como combinado, aos dezoito anos, é óbvio que agora seria suficientemente forte, para receber qualquer impacto da verdade que sua avó lhe tivesse guardado. Sentou-se à beira da cama e com o auxílio de um canivete, rompeu a frágil fechadura da caixinha. – Em seu interior uma carta bem dobrada e um retrato de mulher. – Abriu a carta e pôs-se a ler: “Wild, peço-lhe perdão! No dia do acidente, com você no colo, diante da família dizimada, pensei com egoísmo! Peguei os documentos da sua avó, essa aí do retrato! Depois enterrei os meus ao lado da estrada. Assim, consegui ficar com a pensão do seu avô e cria-lo. Sei que com dificuldades e pouco estudo, mas com muito amor. Tive medo que o levassem para um desses orfanatos mal administrados! Hoje você deve saber como é! - Aceite, por favor, meu beijo e abraço. Deus há de protege-lo e dar-lhe uma nova família, além daquela que você formará”.
Encontrando trilhas entre as rugas de Wild, as lágrimas escorreram; suas mãos trêmulas tentaram conte-las, mas eram muitas, encharcaram inclusive a sua alma e diluíram em seu coração, qualquer orgulho que ali ainda pudesse existir. - Quem seria aquela mulher que lhe deu “a caixinha de jóias”? - Não importa! Do alto de seus sessenta anos ele já sabia o que significavam a fé, a paz, o amor e a própria vida.