INSULINA

   Não sabia o que fazer naquele momento. O brilho da lua, que estava encoberta pelas nuvens, não me permitia ver muito além daquilo que o farol do carro alcançava. Eu tinha ido à cidade para trazer as compras para os meus pais. Em tempo de COVI-19, eles estão de quarentena, pois são idosos e fazem parte do grupo de risco. Então, me voluntariei para fazer as compras para eles uma vez por semana.

   Da fazenda onde eles moram, na Vila Mariana, para a cidade mais próxima, São Cipriano, dá em torno de uma hora e meia de carro, contando com as estradas vicinais. Eu já estava na estrada de terra batida quando, do nada, vi um clarão no céu e instantes depois o carro morreu. Os faróis ainda estão acesos, mas não sei por quanto tempo. Tive a nítida impressão de ver alguma coisa se movendo pela plantação.

   A carroceria da pickup está lotada de mantimentos, medicamentos, produtos de limpeza e ferramentas. Mas o mais crítico é a insulina. Pelas minhas contas, devo estar a uns vinte ou trinta quilômetros da nossa fazenda.

   Não sei o que é pior: temer alienígenas ou saqueadores. Acabei demorando nas compras porque onde quer que eu fosse só era atendida uma pessoa por vez cada um a dois metros de distância do outro. Enquanto esperava nas filas, ouvia as pessoas comentarem sobre ladrões que estavam saqueando casas e carros.

   O problema é que foi nessa região que, há uns dez ou quinze anos teve um fenômeno ufológico que chamou atenção do país. Veio o pessoal do exército, do serviço secreto, da imprensa e o escambau.

   Na época, disseram que uma nave tinha caído e que havia alienígenas rondando a região, mas que todos teriam sido capturados pelas forças armadas. A versão oficial era que um avião carregando alguns animais deformados caiu. Os "animais" teriam sido encaminhados para a Universidade Regional de São Cipriano para pesquisa. Mas a verdade é que até hoje esse assunto ainda é um tabu.

   Temos uma espingarda calibre 22, mas ela está na fazenda. Tudo o que tenho em mãos é o celular sem área e a chave do roda, que estava debaixo do banco.

   Tentei fazer uma chamada de emergência, mas nada de sinal. Peguei o pacote com medicamentos. Na pior das hipótese, iria a pé. mas eu não queria sair do carro. Precisava resolver logo esse dilema. Não sabia o que poderia ter acontecido. Se a bateria tivesse pifado, as luzes do carro também teriam apagado.

   Enquanto eu estava matutando sobre que iria fazer, uma luz ofuscante passou por sobre o veículo. Toda a vegetação ao redor estava balançando. Graças a Deus que as portas estavam trancadas!

   Pude sentir que o carro foi arremessado para longe. O que foi aquilo?! Um caminhão, um helicóptero voando baixo? A pickup virou algumas vezes. Sorte a minha que eu ainda não havia tirado o cinto. Agora eu estava no meio de uma plantação, sem ter ideia para onde ir. A capotagem quebrou os faróis.

   Ouvi passos apressados vindo em minha direção. Desvencilhei-me o mais rápido possível do cinto, peguei os medicamentos e me arrastei para fora do carro. Saí correndo no meio da plantação. Não iria ficar para descobrir se eram saqueadores ou aliens. Aquilo não fazia mais diferença. Minha mãe precisava tomar a dose de insulina ainda aquela noite. Precisava chegar em casa o mais rápido possível.

  Distanciei-me o máximo que pude. Eles pararam perto do carro virado. Mesmo correndo a toda velocidade, logo aquilo ou aquele bando se aproximava cada vez mais rápido. Tinha a impressão de estar sendo cercado.

   Parei por um instante, me abaixei e apurei os ouvidos. Pude estimar que eram uns cinco ou seis. Olhei para cima. Dava para perceber as luzes de uma casa. Era a fazenda do vereador Jeremias. Nós não éramos amigos. Já tinha ouvido histórias de que ele teria sido investigado por estar envolvido com roubo de carga. O cara era bem mais rico que nós. Será que aqueles seriam os capangas dele e eu estaria sendo saqueado? E os meus pais, será que eles estão bem ou fizeram algo com eles?

   Os passos também pararam. Será que eles tinham me perdido de vista e estariam esperando eu sair para continuarem a caçada? Mas se forem ets? Não seria melhor eu pedir ajuda ao vizinho... mas que hipótese ridícula! Me sinto um bobo por estar pensando nisso. Mas o contato inicial foi tão estranho… Dizem que o pessoal do exército não conseguiu capturar todas as criaturas. Desde então, volta e meia a gente escuta histórias de ataque de chupa-cabras. Droga, preciso tomar uma decisão!

   Tentava a todo o custo controlar a minha respiração ofegante. O suor estava fazendo as minhas mãos ficarem escorregadias. Dei mais umas voltas no saco, prendendo-o com mais força. Outro clarão passou rápido por cima. Bem pelo alto mesmo. Escutei vozes dizendo "para onde ele foi?"

   Se eles realmente estiverem me roubando, se eu pedir ajuda ao vizinho é capaz deles me matarem. O que eles podem ter feito aos meus pais enquanto eu estive fora?

   Uma onda de calor subiu o meu rosto. Um ódio tomou o meu peito só de imaginar o que eles poderiam ter feito. Meus olhos marejaram. Estava de joelhos no meio da plantação de milho. Se realmente eram as terras de Jereminas, eu deveria estar a uns dez, quinze minutos da minha casa. Se eu pegar um desses jagunços de surpresa, talvez eu consiga pegar a arma, nocaltea-lo, e ir para casa com ao menos uma forma de defesa.

   Nesse meio tempo, pude ouvir passos se aproximando. Minha mente estava tomada pela raiva. Seria capaz de matá-lo. Saltei com a chave de roda na não, pronto para golpeá-lo com toda a força que tinha.

   Quando pulei, dei de cara com uma pequena trilha. Em vez de um jagunço, me deparei com um ser de quase dois metros de altura, encurvado, com seis olhos brilhantes na sua enorme cabeça. Seu corpo era completamente negro, não dava para ver seu contorno muito bem. O corpo parecia ter membros normais e mais alguns tentáculos. Aquilo estava se esgueirando pelo campo. Ambos ficamos paralizados, nos encaramos por alguns instantes. Soltei um urro de susto, instintivamente. Aquilo fugiu campo adentro, um misto de fumaça incorpórea e serpente.

  Instantes depois, um jagunço com uma carabina nas mãos apareceu e perguntou se eu estava bem. Estava sem saber o que falar, em choque.

   Ele chamou por ajuda e me explicou que eles encontraram algumas vacas mortas sem sangue nos estábulos e que tinham seguido a criatura até aquele lugar. Eles também viram algo caindo ou voando muito baixo no céu. Mas não souberam dizer o que teria sido.

   Para mim, nada daquilo importava. Tudo o que eu queria era entregar a insulina para minha mãe. Embora tivéssemos nossas diferenças, Jeremias emprestou um carro para eu poder chegar em casa.

   Quando cheguei à fazenda, fui direto para o quarto dos meus pais e vi minha mãe deitada já sem forças na cama. Meu pai estranhou a demora e me perguntou se eu estava bem. Graças a Deus eu consegui chegar a tempo. Sua pele já estava ficando amarelada, e ela estava ficando cada vez mais letárgica. Pouco após aplicar a insulina, minha mãe sorriu com os olhos, agradeceu e disse: "Sabia que você viria!"
Manassés Abreu
Enviado por Manassés Abreu em 18/04/2020
Código do texto: T6921331
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