O MICRO-ONDAS

A noite era muito fria e a serração, típica das cidades serranas, tomava as calçadas de Nova Friburgo como uma densa névoa. Um silêncio aterrorizante que por vezes era interrompido pelo canto das cigarras e pelo coaxar dos sapos. Apesar da beleza proporcionada pelo brilho intenso da Lua, uma sensação estranha de que algo terrível poderia acontecer tornava o ambiente relativamente pesado. Renato Garcia era apenas um soldado da polícia militar cumprindo mais uma missão. Soldado Renato Garcia, oitenta milhão. Naquela noite fatídica ele estava sentado junto ao volante da viatura, onde aguardava o retorno do seu companheiro de serviço que havia se ausentado juntamente com integrantes de outras guarnições para tentar sondar o que ocorria. Todos haviam sido deslocados para um local que distava cerca de mil metros da serra nevada sob o pretexto de realizarem uma diligência cuja finalidade precípua seria prender meliantes que teriam trocado tiros com a guarnição do PATAMO comandada pelo Sargento Dos Anjos. Era mais uma troca de tiros. Habitualmente, aquela guarnição “tinha o azar” de deparar-se com meliantes fortemente armados, os quais, na maioria das vezes, se evadiam do local assim que o reforço militar chegava. Essa artimanha não convencia a mais ninguém e, além de ser motivo de escárnio, era muito criticada pela grande maioria dos policiais da corporação, ainda que de forma velada. Todos avaliavam com reservas os pedidos de prioridade feitos no rádio operacional e as histórias fantasiosas contadas pelo Sargento Dos Anjos. Tudo fazia parte de um grande teatro encenado para ofuscar interesses tenebrosos. Causava estranheza observar que alguns bandidos mortos em consequência das ocorrências denominadas “Auto de resistência” pudessem oferecer tanta oposição, embora estivessem portando armas tão inferiores às usadas pelos policiais, algumas, inclusive, desprovidas até mesmo de gatilhos. Repetia-se, invariavelmente, a conduta do uso da famosa vela. Artifício utilizado pelos maus policiais para fraudarem ocorrências e se justificarem dos seus maus atos. Muitas viaturas haviam sido deslocadas para aquela ocorrência, embora quase todas estivessem realizando apenas o cerco. Ninguém se arriscava a adentrar na mata escura e, por conta disso, o PATAMO do Sargento Dos Anjos ficava cada vez mais à vontade para exercer todas as funções que cabia ao Estado: prender, julgar e condenar. Ao redor, um grande contingente de coadjuvantes inserido em um contexto cujo roteiro era aprovado por poucos, mas consentido por muitos em razão de suas condutas omissas. Todos se encontravam mais ou menos equidistante do local onde a ocorrência se desenvolvia e, embora o negror que cobria a cidade fosse suficiente para confundir a clara visão dos rostos das pessoas que ali se encontravam, não chegava a ser tão excessivo ao ponto de camuflar os vultos furtivos e os rostos sem feições que se moviam sem cessar entre as folhagens e os galhos secos. As vozes e os sons trazidos pelo vento pareciam tão sólidos que davam a impressão de permitir tocá-los. Ameaças e xingamentos em contraste com gritos de dor e de desespero. De repente, uma voz encolerizada, incisiva, ecoou com espanto e assombro. Não se soube ao certo quem pronunciou. Logo, porém, tornou a calar-se. Garcia continuava tenso, não conseguia relaxar os nervos. Por alguns segundos, só ouvia ruídos da noite, feito uma espécie de pulsar que parecia crescer progressivamente e dominava os sentidos. Uma voz soou mais perto do local onde estava. Ele sabiam que era a voz do Sargento Tardim, seu companheiro de patrulha. Tardim chegou bastante nervoso e insistiu para que ele ficasse quieto e não se envolvesse com nada, independente do que viesse a acontecer. Parecia prever algo funesto. Sabia que aqueles policiais estavam fora de si e que qualquer interferência poderia lhe custar muito caro. Seus movimentos estavam carregados de tensão e temor. Garcia, por hora, decidiu ficar em silêncio, mas um pouco se atreveu a dizer que não poderiam deixar as coisas como estavam. Há muito que aqueles milicianos estavam loucos e precisavam de um freio. Tardim, porém, insistia em tentar conter a indignação do amigo. Naquele momento Garcia só pensava em gritar, ligar as sirenes e as luzes intermitentes da viatura no intento de chamar a atenção de alguém, ao menos até que todas as luzes da cidade se acendessem. Mas sabia bem que aquela não era a escolha devida diante das circunstâncias. Restava torcer para que a luz divina viesse a raiar e, dessa forma, desmascarar os bandidos da penumbra. Outra voz, no interior da mata, devolveu-lhe a tensão anterior. Desta vez as palavras foram ouvidas com muita clareza. Em consenso decidiram dar cabo da vítima. A noite prosseguia feito um roteiro de terror. A pequena rua onde eles estavam - pouco iluminada - não tinha luz suficiente sequer para reluzir os fatos que ocorriam naquelas imediações. Um negrume tenso e denso, que apertava e oprimia o peito... o coração... a consciência. Tardim insistia para que não se envolvesse e fazia de tudo para conter a insatisfação do amigo com tudo que ocorria. Embora Garcia concordasse com ele, precisava ao menos saber o que de fato ocorria. Após um curto silêncio, Garcia voltou a questioná-lo sobre a postura que deveriam adotar, entretanto, mais uma vez foi convencido a calar-se e a esperar o fim de tudo, mesmo sabendo que não teria condições para suportar o peso daquela decisão. O som dos galhos se quebrando sob as pisaduras chegavam até onde eles estavam. Garcia percebia tudo com muita clareza e sentia na garganta uma pressão tão terrível que dificultava-lhe a respiração. Mais uma vez chegou até eles o pedido de socorro, só que desta vez, quase abafado. Garcia insistia em questionar a razão pela qual estavam fazendo aquilo e também questionava a razão para permanecerem inerte. Sabia que de alguma forma estavam colaborando com os propósitos criminosos daqueles vermes e que de certa forma eram cúmplices. Uma luz reluziu em alguma parte da mata, interrompendo as trevas. Parecia uma lanterna. Logo, tão rápido quanto havia brilhado, desapareceu. As pisadas, ao longo da pequena trilha, eram captadas com muito mais nitidez. Por um momento pararam diante da radiopatrulha. O coração de Garcia suspendeu as pulsações, para bater em seguida em uma velocidade bem mais acelerada. O som dos passos seguia adiante quando um estampido característico fez a dupla perceber tudo que estava acontecendo. Garcia sabia muito bem que aquele fato tinha ligação com a política administrativa desenvolvida naquele batalhão e tinha como desígnio desestabilizar o comando do Coronel Robson junto ao 1º BPM. Ele era um Oficial destemido e implacável no julgamento dos desvios de condutas. Estava pondo em prática a famosa expressão “navalha na carne”, a qual tinha como finalidade banir da corporação os maus policiais. Esta prática ia de encontro aos interesses de muitos policiais pertencentes à “banda podre” e o cerco a cada dia se fechava mais. Não obstante à pressão correcional, os maus policiais insistiam em desenvolver suas práticas criminosas. Era a certeza absoluta da impunidade. Quantas vezes o batalhão teve a oportunidade de expurgar as sujeiras causadas por aqueles vermes através dos procedimentos administrativos internos e, ao contrário, acabavam sempre inocentando-os? Tudo era desenvolvido sempre em prol de um corporativismo mesquinho e inconsequente que só servia para denegrir a imagem da corporação. No final das contas, os procedimentos eram feitos para não se chegar a lugar nenhum e acabavam servindo de bônus para os infratores. Enquanto assistiam a tudo calados, as vozes continuavam a martelar os seus ouvidos e eles permaneciam ali, tentando enxergar além das trevas, buscando distinguir o que ocorria dentro da mata para, enfim, tomar ciência do saldo de tudo. Como um presságio funesto, um silêncio apavorante desceu sobre eles. A noite que já parecia demasiadamente densa, como um manto negro estendido sobre a terra, enfim, tomou corpo. Sim, uma noite espessa e pesada, cuja limpidez permitia ouvir qualquer ruído que se produzisse à determinada distância. Os sons naturais da noite não eram suficientes para ocultar o grito de socorro que rompia no breu ainda mais abafado. Por frações de tempo predominava em cena as canções entoadas pelas cigarras. Em outras, as cigarras também se silenciavam. Súbito, como que atingido por uma descarga elétrica, Garcia pôs-se de pé. A mesma voz quebrara o silêncio novamente. Aquela voz abafada que se traduzia em angústia e agonia. Aquela voz que suplicava por socorro. Ele sabia muito bem que precisava fazer algo. Dentro dele havia vários sentimentos em ebulição. Com as mãos sobre os lábios, os olhos cravados na noite, todos os sentidos alertas... ouviu mais uma vez. Uma escuta cruciante chegara aos seus ouvidos. A voz de uma vida que se perdia. Vozes de outros homens comemoravam simultaneamente. Nesse momento, toda noite pareceu encher-se de sons distantes. Duzentos ou trezentos metros além, enquanto o sangue latejava na testa no ritmo furioso de um fuzil automático, ele apenas esperava que aquela voz não mais clamasse. Mas aquela voz nunca mais saiu da sua cabeça. Continuava a clamar ao longe, tão longe que ele já não podia alcançá-la. Gritava e suplicava, quase em soluços, por uma atitude que ele não foi capaz de adotar. As outras vozes continuavam tentando sufocá-la como uma autoafirmação de poder... de poder tudo. Nenhuma luz se viu. Nenhum som se ouviu. Tudo simplesmente parou de vez. Eles, perplexos como estavam, não desviavam o olhar da noite, da vida e do fogaréu súbito que se levantou em meio às trevas. Continuaram ali parados. Seus movimentos não eram bruscos nem arrastados. Simplesmente pareciam carregados de uma tensão especial, como se qualquer forma mover custasse um tremendo esforço. No silêncio que se fez demasiadamente longo, pesado e cheio de tensão, só se ouviam sussurros longínquos, os quais aos poucos sumiam. Aquele silêncio sepulcral desceu sobre a cidade naquele instante. Por um momento a paz parecia estar restaurada. Mas aquela voz insistia em ecoar dentro da cabeça do jovem guerreiro. Enfim, chegou a ordem de maré uno para retornarem ao ponto zero. Retornaram para a sede levando nos ombros um grande fardo, uma sensação horrível de fracasso e a certeza de que o dever não fora cumprido. Através do espelho retrovisor da viatura Garcia observava a noite negra e ao fundo, chamas que a iluminavam, as quais pareciam bradar violência gratuita. O grito continuava ecoando insistente nos ouvidos surdos, repercutindo no fundo das consciências. Garcia pôs os olhos na mata pela última vez, onde cintilava uma imensa chama. Um aglomerado de pneus queimados. Aquele brilho representava a sentença de morte de alguém que morrera naquela noite junto com a justiça.

Vander Cruz
Enviado por Vander Cruz em 16/04/2020
Reeditado em 30/04/2020
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