O ÔNIBUS 555V-10 (repostado)
O ônibus das 21h sempre vem vazio, o problema é o tempo que ele leva até chegar a estação. Eu estava em casa. A patroa ligou e disse que precisava de mim para resolver uma coisa. "Ficar de plantão é um saco" pensei. Estava quase dormindo depois que coloquei o filme pirata dos Vingadores para assistir e de repente o celular toca.
Peguei a mochila com minhas coisas. Deixei pelo menos algumas pastas, pois tinha certeza de que não iria usar. Saí de casa às 20h50 e fiquei esperando o ônibus chegar. Precisava pegar o famigerado 555V-10. Eu estava com um livro na mão.
Quando um busão veio e a porta da frente abriu, desceu uma mulher com uma mão na boca e o celular na outra. Achei bonita. Ela me olhou e pensei que fosse vomitar. Descia com um guardanapo na altura dos lábios e pedindo desculpas ao motorista que nem olhou na cara dela. Entrei já imaginando o estado daquele ônibus.
Vazio. Olhei para o motorista e dei "Boa noite". Ele só balançou a cabeça. Passei o bilhete, atravessei a catraca e sentei na fileira da direita próximo à janela. Dali eu conseguia ver o motorista, já que éramos os únicos ali. O lugar cheirava mal. Um odor que lembrava vômito. Não tinha cobrador, o que deu um senso de solidão maior ainda dentro daquela lata gigante com rodas.
O livro que eu levava era o A CULPA É DAS ESTRELAS, John Green. A patroa que me deu.
Consigo ler com mais facilidade em transporte público. Em casa só dá vontade de dormir e comer. Comecei a ler para me distrair.
Enquanto folheava nem me dava conta em que ponto o busão já estava. Ao mesmo tempo que lia, ficava atento ao movimento na rua.
Sou meio paranóico. Toda vez que subo em um ônibus vazio penso que vai surgir alguém atrás de mim apontando uma faca para o meu pescoço. É uma sensação horrível. Mania de quem vê filme demais.
De repente o ônibus parou e a porta da frente abriu. Dois homens de jaqueta preta, um com uma tatuagem no rosto magro, o outro bem moreno e gordo de boné. Passaram a catraca e foram para o fundo do ônibus.Tentei me concentrar no livro outra vez.
Confesso que fiquei assustado quando vi a cara dos dois homens. Até pensei em mudar de lugar só para não correr o risco daqueles caras sentarem atrás de mim e sabe Deus o que poderia acontecer comigo. Ficaram num banco do fundo, do lado oposto do meu, à esquerda.
O 555V-10 era complicado. Ele saía da favela do Jardim Nilzete, entrava em umas ruas desertas e apertadas. Demorava demais.
Porém essa linha era mais conhecida pelos assaltos e arrastões que pelo tempo de espera. De vez em quando entrava um mal elemento com sangue no olho e a larica batendo e tentava roubar os passageiros.
Continuei lendo o romance dos dois jovens com câncer. O ônibus seguia dentro da noite. Saculejava igual botijão em carro de gás. De repente os dois elementos que estavam sentados na janela do outro lado se sentaram atrás de mim. No último banco do canto direito, mas ainda sim atrás de mim.
Eles falavam alto. Conversavam sobre drogas, mulheres e gente que queriam cobrar. Era tanta gíria que até me perdia no que estava lendo. Virei mais uma página do livro. Os mal-encarados continuavam dialogando:
- Neguinho vai tomar balaço na caixa. Pode pá.
- Ele e a esposa. Folgados eles, mano.
- É essa fita mesmo, tio. Ficou sabendo que o dono da boca lá mandou apagar o maluco da favela do Gato?
- É claro. O processo corre, filhão.
- Seloko.
- Seloko.
Aquela conversa era perturbadora e extremamente desconfortável de se ouvir num ônibus a noite. Eles continuavam:
- Aí, parça, lembra daquela fita lá do coreano?
- Ooohhh 'tô ligado! 'Tô ligado! Que na hora ele reagiu ao assalto e levou umas na barriga?
- Esse mesmo. Disseram que o cara não morreu, mano. Você acredita?
- Como, irmão? Depois de três balas na barriga e o cara ainda tá vivo, meu? É super homem agora é?
- Sei não, velho. Só sei que tem umas outras paradas aí... o bagulho tá loko.
- Pode pá. Pode pá. É isso mesmo.
- É isso mesmo.
Por tudo que era mais sagrado… como queria descer daquele ônibus. Mas como só estávamos eu, o motorista e os dois estranhos ao fundo, tive receio de que eles estranhassem e tentassem fazer alguma coisa.
O ônibus entrou em ruas mais escuras. Ouvi uma fungada forte e continuada. Depois mais outra. Olhei rapidamente para trás. Os dois estavam cheirando pó dentro do 555V-10. Ligaram uma caixinha de som e começaram a ouvir funk. Um deles se virou e me olhou nos olhos:
- Qual foi, tio? Tá olhando o que?
Virei imediatamente para a frente. Voltei os olhos para o livro com dificuldade.
Passou cinco minutos e o ônibus sacudia e pulava em cada lombada. Os caras do fundo falavam ainda mais alto. Riam freneticamente.
Precisava saber a hora, mas decidi não tirar o celular do bolso para que os elementos não imaginassem que iria ligar para a polícia. Eu não iria, mas para quem está louco de droga, tudo o que passa pela cabeça do tal é verdade. Mesmo que não seja. Também meu celular era novo, ainda estava pagando e aos olhos de qualquer ladrão, era um aparelho "visado". Bom para roubar.
No entanto eles pararam de falar alto e pareciam cochichar. Não pude ouvir o que diziam. A música da caixinha de som estava alta. E isso durou por cinco minutos.
Quando o busão saiu das ruas mais estreitas e começou a passar pela avenida, eles desligaram a caixinha e fizeram silêncio. Como ninguém dava sinal, continuamos sendo os únicos dentro do 555V-10. Aquela viagem para mim entrava na minha lista das cinco piores. Senti na pele porque ninguém gostava daquele ônibus à noite.
Foi então que os dois saíram do fundo do ônibus e se sentaram atrás de mim. Percebi que eles me olhavam faiscando, como se mirassem minha alma. Minhas mãos tiveram dificuldade de continuar virando as páginas.
Um deles disse atrás de mim:
- Tá suave aí?
Não respondi.
- Aí irmão. Tá suave?
Gaguejando respondi:
- Tá. Tá sim. Tudo bem. Tudo bem.
- Certo.
Silêncio. E ficaram me olhando.
Falaram novamente:
- O senhor tá ligado que é o certo pelo certo, entende?
- Oi? Eh... Verdade. - eu nem sabia o que respondia.
- Sabe que aqui é barra pesada, né tio?
Fiquei em silêncio. O outro começou a falar:
- Aí. Mochila bonita...
Apenas sorri de nervoso.
- Chefia? - um deles me chamava.
Continuei com os olhos no livro. Eu já nem lia mais.
- Chefia? - repetiram como se nunca tivessem falado comigo.
Permaneci em silêncio. Agoniado.
- Aí chefia? Na moral… o senhor aí de mochila.
- Ah… sim. Oi. Tudo bem? -- respondi.
- O senhor poderia falar as horas pra gente na humildade?
Os dois possuíam celular e relógio.
Tirei a ponta do celular para fora do bolso:
- 21h40.
- Agradece, chefia.
Seguiu-se o silêncio.
O ônibus saiu da avendia. Antes de chegar na estação, o 555V-10 entrou numas ruas mais escuras ainda. E mais desertas.
A todo momento imaginei que um deles se levantaria, puxaria uma faca para meu pescoço e tentaria me roubar ou me matar. Um deles disse:
- Você é do Jardim Nilzete, irmão?
- S… sou… sou sim.
Eu não era. Um deles percebeu.
- Nunca te vi lá, irmão. Tá de caô?
Eu não entendia muito bem o que ele dizia. Ele falou mais alto:
- CÊ TÁ DE CAÔ, IRMÃO?!
- N… não. Não. Eu moro lá. É sério. Juro por Deus.
- Certo - eles se inclinavam no banco para frente e para trás a cada frase que diziam. - De qual lugar?
- Perto dos prédios. - falei por impulso.
- Os "predinhos" do Rocha? - um deles colocou as mãos no ferro da "cabeceira" do meu banco.
- Isso. Lá mesmo.
- Certo...Tu não é PM não né?
- Lógico que não!
- Entendeu. Entendeu…
Fizeram um silêncio. Em seguida falaram num tom mais baixo:
- Escuta só... na miúda, hein tio...
Esse "na miúda" me perturbou. Virei meus olhos para o livro. Fechei-o e esperei que nada acontecesse.
Chegamos na estação. As portas automáticas do ônibus se abriram e eles desceram. Um deles gritou:
- Agradece, motô. Tamo junto!
Foi então que vi tiraram seus crachás que estavam por dentro da camisa e se dirigiram até o fiscal que os recebeu com muita familiaridade. A única coisa que eu ouvi da conversa deles foi "Período da madrugada".
Desci do ônibus também. Eu pegaria o metrô. Eles ficaram para trás. Espero não encontra-los novamente.
Não sei se julguei eles errados, se o que ouvi eles realmente falavam ou se foi coisa da minha cabeça. O medo faz essas coisas. Porém quando desci do ônibus meu medo deu lugar a raiva por reconhecer a estação onde estava. Só me dei conta quando desci do ônibus e falei:
"Pera! Por que eu peguei esse ônibus, se ele não era o que eu tinha que pegar?"