Quarentena em Prova
Ao longe, como se a pessoa estivesse há metros de distância, Margarete conseguia ouvir alguém falando seu nome. O sono pesado não deixava seus olhos se abrirem, mas ela sentia que alguém a chamava, e a voz não lhe era estranha. Porém, suas pálpebras pareciam de chumbo, e sua cabeça parecia girar, ainda que de olhos fechados.
Adormeceu novamente. Sentia algumas partes de seu corpo latejar, como se tivesse apanhado.
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A paciência já havia se esgotado. Aqueles alunos gritando, todos ao mesmo tempo, já tinham passado de todos os limites. Sua mão direita já tremia involuntariamente, sinal de que o estresse atingira seu ápice. Seus olhos estavam perdidos ao som das vozes. Roberto e Pablo estavam sobre a mesa cantando o hino de seu time, enquanto algumas meninas dançavam e riam de notícias na internet. A professora já havia pedido silêncio, mas infelizmente, eles não queriam escutá-la.
Ela se levantou e foi até a janela. Pode ver algumas ambulâncias correrem sem rumo, e alguns carros de emissoras de televisão as seguirem na mesma velocidade. Estranhou aquela movimentação na rua da escola. E tudo ficou ainda mais curioso, quando carros de polícia e exército passaram na mesma direção. Alguns alunos e professores começaram a se amontoar no pátio. Aos poucos, dentro da sala, sua mente foi ignorando a voz dos alunos, e focando nas cenas lá fora. Todos pareciam desesperados. Alguns choravam enquanto eram confortados por outros. Mariza, a diretora do colégio se aproximou de outros professores e parecia passar ordens. A mente de Margarete estava focada naquela cena lá fora. Estava em transe. Transe este, que foi desligado quando um apagador da lousa bateu na parede à sua frente, assustando-a.
A professora caiu sentada em sua cadeira. Sua mão tremia enquanto os alunos sorriam. Ela estava tomada pela raiva, e na sua cabeça, aquela comoção do lado de fora parecia ser algo mais sério do que as palhaçadas de seus alunos.
Ela então saiu de sala.
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Os olhos continuavam pesados. O som ao fundo era de alguma banda estrangeira nova, daquelas que fazem qualquer som e acham que são os novos The Rolling Stones. Ela sentia algo segurar seu pulso. Estava pendurada. Sentia também que estava completamente urinada, pois seu corpo estava gelado na região pélvica, e o cheiro já se tornava ácido.
Tentou abrir os olhos mais uma fez, impondo mais força. Conseguiu ver algumas luminárias espalhadas pelo lugar. De fato, era um local escuro, úmido, e tinha cheiro de areia molhada. As paredes estavam cobertas de lodo, e alguns canos enferrujados estavam expostos nas paredes descascadas. Tentou gritar. Mas sua boca estava tapada por algum tipo de fita de plástico, com um cheiro de resina insuportável. Sentiu gosto de sangue na boca, e antes que os olhos perdessem a força, pode ver uma silhueta surgir na sua frente, portando um objeto pontiagudo nas mãos. Não demorou para outra pessoa aparecer ao lado da silhueta.
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Ao sair da sala, Margarete esbarrou em Gutemberg, o professor de ciência. Ele parecia muito desesperado.
- O que está acontecendo? – perguntou ela enquanto o homem continuava andando com pressa.
- Tire esses garotos da sala! Você é louca? Mande essas pestes para casa! Eles são problemas do governo agora!
- Mas como assim? O que está acontecendo, porra?
- Margarete, a FEBRE! Ela veio aos poucos, invisível... – O homem apressou os passos e saiu pelo portão principal da escola empurrando as portas, que bateram na parede e voltaram fazendo um estrondo.
Imediatamente, Margarete pegou seu celular pesquisou por “FEBRE”. Entre algumas informações sobre temperatura, gripe e todo o mais, ela leu uma nota de que uma febre oriental, desoladora, chegara ao Brasil e já fazia numerosas vítimas por todo território.
No começo, ela se desesperou. Pensou em seu marido, seu filho de trinta e seis anos que morava em Dublin, na Irlanda, e pensou em seu gato, Mussumzinho, que estava em casa. Aos poucos, foi pesquisando um pouco mais, entendendo mais sobre o mal que derrubava idosos e crianças, e que provavelmente, em poucos dias, derrubaria boa parte da população mundial. Além disso, segundo o presidente, em breve algumas lojas seriam fechadas e cidades isoladas. A Europa já estava em caos.
Mas Margarete se aquietou. Respirou fundo, olhou ao seu redor e guardou calmamente seu celular, antes, conferindo se estava no silencioso. Ela caminhou pelo corredor e parou na porta da sala de aula. Podia ouvir os alunos gritarem lá dentro. Pelo visto, ainda não tinham percebido que algo estava errado lá fora. Não tinham percebido que havia algo de muito errado, no mundo. Olhou para sua mão, e elas começavam a tremer. Calmamente, foi até o refeitório, revirou alguns armários do pessoal da limpeza, e quando achou o que procurava, sorriu. Sorriu como nunca tinha sorrido sob aquele teto.
Os alunos estavam em polvorosa. Alguns deles já haviam tido acesso à notícia, e enquanto uns se desesperavam tentando ligar para casa, outros faziam piada. Quando duas meninas iam sair da sala, Margarete entrou impedindo. Seu olhar era tranquilo, e o sorriso parecia imóvel.
- Professora, precisamos ir! O mundo tá pegando fogo lá fora! – gritou uma das meninas tentando alcançar a porta, mas sendo impedida pela professora.
- A gente precisa sair! Precisamos ir para casa! Tem gente falando de zumbis! – disse um rapaz que antes, havia jogado um apagador contra a professora.
Margarete passou o tranco na porta, mantendo seu olhar brando e sorriso agora assustador de tão amarelo e imóvel.
- O mundo realmente ta pegando fogo! Pelo que li, queridos, a partir de amanhã será dada a largada para o fim. Sabe? Fogo? Trevas! Mortes!
- Professora... Abre a porta precisamos sair! – disse outra aluna que ao tentar tocar em Margarete, foi atingida por um martelo, no meio de sua testa.
A menina caiu no chão trêmula, tendo espasmos pela força da pancada. Com o rosto coberto de respingos de sangue, e parecendo se orgulhar disso, a professora pegou um galão de álcool que pegara na sala dos zeladores. Abriu o galão, e despejou tudo em algumas mesas e alunos. O caos começou! Enquanto uns corriam, outros tentavam detê-la. Mas mesmo assim, a professora conseguiu acender o isqueiro, e um “bafo” quente tomou conta da sala. Alguns alunos se debatiam fugindo do fogo. Outros queimavam por inteiro. De repente, Margarete sentiu algo atingir sua nuca. Foi enfraquecendo. Até que apagou.
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Ao abrir finalmente os olhos, Margarete viu uma televisão bem na sua frente, com cenas de desespero pelo mundo. Na barra da manchete, estava escrito “A FEBRE QUE QUEIMA O MUNDO”. O mundo estava em chamas. E ela ali, presa. Tentou se debater ao se lembrar do que havia acontecido. De como tinha se sentido bem castigando aqueles alunos que não lhe davam respeito.
Dois dos alunos se aproximaram dela e a mostraram em um espelho, como seu rosto estava machucado. Eles, ambos com o rosto queimado em com facas nas mãos. Um deles desligou a televisão. A partir dali, Margarete sabia o que ia acontecer. Apenas fechou os olhos, e minutos depois, sentiu seu pescoço ser cortado lentamente, sob o som de uma banda de rock horrível, sem qualquer afinação.
fim
#Covid19