FEBRE
Já era o sexto dia de quarentena. A comida ainda sobrava na dispensa, e as garrafas cheias de cerveja ainda se amontoavam na garagem, cobertas pela piscina de 200 litros, que agora servia de lona protetora. Passara no mercado dias antes, comprara muitas coisas das quais nem precisaria, mas achou válido tê-las naquele tempo. E agora, no quinto dia de quarentena, ele não havia tocado em nada, não tinha fome, nem sede, e simplesmente não sabia o que estava acontecendo com seu organismo.
Sua pele já estava ressecada, e seus ossos, misteriosamente, já vaziam um relevo grotesco em seu abdômen. Ao se olhar no espelho, ele não gostava do que via. Seus olhos fundos, e sua boca estando cada vez mais roxa. Os dentes? Olha, os dentes pareciam mais amarelados, muito em parte por conta das gengivas que sangravam por horas do dia. Tudo que sentia, era gosto de sangue. E nenhum daqueles sintomas eram sintomas do mal que dominava lá fora.
Naquela manhã, quando as notícias eram cada vez mais repetitivas, e os jornalistas se dividiam entre criticar os governantes negligentes, relatar novos caso do mau e dar dicas de como evitar o contágio, ele simplesmente sentou-se na banheira cheia de álcool, e ali ficou encarando, ainda que não enxergasse muito bem, o teto. Os gritos dos vizinhos e barulhos de vidraças sendo estilhaçadas em meio ao caos em nada o abalavam mais. Foi assim na semana anterior, e rapidamente tudo estava em colapso. Mas poucos acreditavam. Ele sonhara com aquilo, estocara alimentos, mas agora parecia que era abatido por outro problema. Outro mal. Desconhecido.
Se olhassem seu porão e sua garagem, viriam lá garrafas de álcool em gel estocadas. Assim como papel higiênico aos montes, garrafas de água, kits de primeiros socorros, e muita comida não perecível. Comida que ele não tocara desde sua última ida ao mundo exterior. Desde que enfrentou uma senhora que o criticara pelo estocamento egoísta de comida. Ele sentia que o que sentia agora, vinha das rudes palavras daquela senhora desdentada, que em suas mãos, apenas tinha um saco de cebolas – tudo que o seu dinheiro pode comprar – e em seus olhos, raiva.
Ela o humilhou, praguejou, e até chegou a chorar de desespero ao ver aquele homem ali. Era por isso que ele não gostava de ir aos mercados e shoppings. Aquele contato com os pobres, com os que se faziam de vítimas da sociedade aos seus olhos. Mas aquela mulher, ela gerou sua febre. Ela olhou no fundo de seus olhos e após xinga-lo de todos os nomes, apenas sorriu. Ele sorriu junto, gravou-a com seu celular. Mas no dia seguinte... no dia seguinte sua saúde descambara.
Primeiro a febre, depois a tosse, depois as dores nas articulações e as pontadas atrás dos olhos e na nuca. Então, vieram os pesadelos acordados. Visões, vultos, calafrios. E então, a febre voltou. Com a segunda febre, a cegueira temporária. Ficara dois dias assim. Cego, apenas ouvindo vultos e sussurros em uma casa qual morava sozinho. Foi assim durante seis dias. O medo, a raiva, e o arrependimento brigavam dentro de seu corpo como feras famintas por uma carniça já putrefata.
Ele então desistiu. Na tv, aas notícias não eram boas. Não conseguia ler, pois sua visão estava embaçada. Tudo que via era um amarelo leitoso, como o sol ao olharmos pela primeira vez na manhã. Foi no sexto dia, ainda de manhã, que decidiu antecipar seu fim. Não iria aguentar morrer como todos os outros lá fora. Então, juntou suas garrafas de álcool, e cambaleante, tateou até o banheiro, despejando todas as garrafas que conseguiu juntar em sua banheira. Após isso, andou até a cozinha pisando em cacos de vidros de pratos que quebrara em um surto de raiva pela sua condição atual. Antes rico e bonito, agora ora cego, ora louco, e com uma aparência repugnante. Com dores, ligou todos os bicos de gás de seu fogão, e assim, uivando de dor pelos cacos que furavam sua carne, voltou até o banheiro.
Respirou fundo... Tateou o isqueiro dentro do bolso de seu short... Tentou orar, mas se irritou com Deus por deixa-lo chegar a tal situação...
A explosão assustou os vizinhos e os saqueadores naquele bairro nobre. A casa 108 foi pelos ares. O apresentador de tv provavelmente não sobrevivera aquilo. Mas na tv, um repórter com feições amigáveis e olhar doce, transmitia a notícia de que o mal havia sido controlado, e que vacinas e remédios estavam sendo enviadas para o mundo todo. A preferência, era para os pobres.
Fim.
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