Nunca me disseste que ia doer tanto
Toca o despertador, na hora marcada, 15 minutos depois da hora do costume, agora não é preciso ser tão cedo. Passaram 20 dias desde a quarentena total e absoluta, a vida mudou, mudou muito, já não vive connosco a esperança, a maioria dos seniores já não esta entre nós, e os que estão, estão gravemente doentes, os meus pais, sogros, tios, já todos partiram deste mundo… tomo um banho sem vontade, já não ouço as notícias, tomo um pequeno almoço ligeiro e desço à garagem. Entro no carro, ainda me incomoda o dístico redondo no pára-brisas, redondo, amarelo, com aquela palavra “essencial”. Abro o portão da garagem, ligo o carro, abro o vidro e saio… não ligo o rádio, ouço apenas o silêncio do caminho, a Primavera chegou à uns dias, para trás fica um local confinado, a morada, local de regresso obrigatório, há uns tempo chamei-lhe lar, hoje apenas espaço onde estar. Escuto os pássaros, sinto o cheiro das flores, deslizo devagar, não é preciso pressa, não vou pela auto-estrada, não há necessidade, apenas circulam os veículos do famoso dístico amarelo…
Não há gente na rua, nem filas, nem ninguém espera um autocarro, um comboio, os poucos resistentes, circulam, com um dístico amarelo ao peito, “essencial”. Hoje já ninguém vai à praia, ao cinema, aos bares, os que há uns dias arriscaram ou estão presos ou foram abatidos…
Tenho familiares presos, tolhidos de morte no seu íntimo, quebraram as regras, visitaram os mais vulneráveis, levaram os netos a ver os avós, hoje, os avos não estão cá…
Nunca me disseste que ia doer tanto, ver as filas de caixões há porta dos cemitérios, dos crematórios, nunca me disseste que ia doer tanto saber que tantos partiram chorando e despedindo-se por telefone, sozinhos, abandonados como cães, privados de contacto…
A estrada leva-me, as ruas desertas, quase tudo parou, alguns dos que já têm o visto de deslocação, partem para o interior, por onde a morte passou, numa tentativa de regresso as origens, a subsistência básica da terra, tudo foi desinfectado pelos militares, mas a tristeza e o manto negro mora lá… dísticos roxos, como uma ultima esperança de penitência…
Nunca me disseste que ia doer tanto não se ter obedecido a processos simples e básicos, a um recato social, mas era giro desafiar o poder, o estado, as autoridades, fecharam-se escolas, depois bares e discotecas, restaurantes, fábricas, comércio, mercados e hipermercados, e vós inconscientes, continuavam a desafiar, fecharam-se fronteiras, primeiro a pessoas, depois as mercadorias… e vós desafiavam…
Depois o fim… quarentena obrigatória, apenas os dísticos amarelos podiam sair, pessoal essencial ao país, fizeram-nos exames rigorosos, não podemos ter contacto com ninguém, apenas desempenhamos um papel que nos foi dado.
Ligo o rádio, mais um hospital fechado para ser devidamente desinfectado, no país sobram poucos, pouco mais do que uma mão de hospitais, o resto, aguarda que haja pessoal medico livre da maldita doença, para reabrir. Chego finalmente, para mais um dia de trabalho, hoje circulam pouco mais de uma dezena de comboios, nenhum de passageiros, apenas combustível e algumas mercadorias, pois na europa, não há hoje outra forma de transportar.
Nunca me disseste que ia doer tanto um povo não saber obedecer, não saber se comportar…
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