O Retorno
Depois de quinze anos, retorno à casa onde passei minha infância, culpa de uma péssima situação econômica no país, que me fez deixar o luxuoso apartamento em pinheiros onde morava com minha esposa, para voltar a ocupar a casa em São Bernardo do Campo, fechada desde que nossa família se mudou em definitivo para a chácara em Piracicaba, após o falecimento de meu pai.
Ao abrir a porta, o cheiro forte de mofo me faz tossir.
Abro as janelas.
A luz do sol risca o pó que paira no ar.
Fico olhando as partículas saindo pela janela, enquanto o ambiente vai sendo arejado.
Li em algum lugar que noventa por cento da poeira é constituída por pele humana, quanto de mim estaria ali naquele pó, parte de minha infância presa naquela casa há quinze anos.
__ Você pode trazer nossas coisas para dentro? Vou tomar uns comprimidos e me deitar um pouco. Não estou me sentindo muito bem.
__ Claro Ruth! O quarto principal é a última porta no fim do corredor, no segundo andar.
Ela e os comprimidos dela, odeio quando ela os toma.
Minha esposa foi a mais afetada por nossa falência financeira. Anda deprimida, mal humorada...sempre recorrendo a seus muitos comprimidos contra depressão.
Eu evito o assunto por saber que a culpa é minha. O provedor fracassado.
Termino de abrir as janela e subo para o quarto.
Ela esta deitada na cama, de costas para a porta.
__ Esta acordada Ruth?
Quando sento na cama, o pó sobre o lençol se espalha no ar.
Ela nem mesmo bateu o lençol!
Como conseguiu deitar com toda essa poeira.
Tossindo, abro a janela daquele cômodo também.
Penso em falar algo para minha esposa, mas percebo que ela nem mesmo se moveu.
Os comprimidos já fizeram efeito.
Prefiro buscar as coisas no carro e evitar a discussão.
Com o decorrer dos dias, a casa me traz de volta muitas lembranças de infância, principalmente de meu pai.
Lembro dele, sempre triste andando pela casa.
Tão parecido com minha esposa, que acabo ligando para minha mãe.
__ Oi meu querido, esta tudo bem?
__ Oi mãe, esta sim. E você?
__ Só preocupada com você! Tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo...Nem sei como falar disso com você...mas sei como você deve se sentir. E essa casa... deve ser tão solitário ai! Minha casa esta sempre aberta pra...
__ Mãe! Mãe! Não se preocupe. Está tudo bem. Eu liguei porque queria te fazer uma pergunta, mas não quero que você se preocupe.
__ O que foi meu querido?
__ Como foi que o Papai morreu?
Silêncio.
__ Por favor Mãe?
Escuto um suspiro do outro lado da linha.
__ Querido, você sabe que não gosto de falar sobre isso.
__ Ele se matou não foi?
Outro suspiro.
__ Sim.
Silêncio.
__ Você não está pensando em fazer nenhuma besteira né?
__ Claro que não Mãe!
__ Mas por que isso agora? É essa casa não é? Sabia que você não devia ter voltado aí! Mas passou tanto tempo! Você era apenas uma criança. Não pensei que...
__ Mãe! Calma! Está tudo bem, eu não estou pensando em me matar nem estou vendo o fantasma do papai correndo por aí! Estou preocupado com a Ruth, mas está tudo bem, vou cuidar de tudo. Não se preocupe! Beijos.
__ Como assim? Preocupado com a Ruth? Eu...
Desligo o telefone.
Minha mãe me liga de volta.
Por quê fui atiçar a fera?
Bloqueio o número, não quero falar com ela agora, tenho outros problemas para resolver.
Lembro que quando meu pai entrou em depressão, a única coisa que minha mãe fez foi ficar chorando pelos cantos da casa, ela e meu pai nunca conversavam.
Era raro até ficarem no mesmo cômodo.
Não posso mais adiar a conversa com minha esposa.
Temos agido como meus pais e não quero que a mesma história se repita.
__ Ruth?
Encontro ela na cozinha, sentada à mesa com seu olhar perdido em algum ponto abstrato na parede.
Vejo sobre a mesa um copo de água e um frasco de comprimidos.
__ Tomou seu medicamento?
__ Sim. Não estava me sentindo muito bem.
__ E esta melhor agora?
__ Na verdade não!
__ Estou preocupado com você Ruth! Você está me lembrando muito meu pai.
__ O que tem seu pai?
__ Ele estava como você, exatamente como você. E então se matou! Eu não me lembro disso, não diretamente sabe? Minha mãe me confirmou, mas de alguma forma já sabia! Acho que mesmo poupando as crianças da verdade é impossível disfarçar o ambiente que fica numa situação dessas. Estou sentindo a mesma coisa agora, por isso precisamos conversar.
__ Vou dormir um pouco.
__ Por favor, fale comigo!
__ Agora só preciso descansar. Conversamos depois.
__ Depois quando?
__ Quando eu acordar.
Ela se levanta e deixa a cozinha, subindo as escadas em direção ao quarto.
Escondo o frasco de comprimidos no fundo da gaveta de talheres.
Me sento na sala para ler um livro, entre um capítulo e outro subo até o quarto para ver se esta tudo bem e esperar que minha esposa acorde.
Algumas horas depois, minha leitura é interrompida pela campainha.
Minha mãe veio me visitar.
Fico contrariado com isso.
__ Mãe! Por quê veio? Eu disse que não precisava se preocupar.
Ela esta chorando.
__ Entre, vou preparar um café.
Enquanto fervo a água e coloco o pó de café no coador, minha mãe começa a falar.
__ Estou preocupada. Você disse algo sobre a Ruth?
__ Sim. Ela anda bem deprimida com tudo que aconteceu. Esta dormindo agora. Dopada com seus remédios.
Mais lágrimas.
__ Ai meu menino!
__ Ela me lembra a forma como o papai andava por essa casa.
__ Ai meu querido! Você não entende...
__ Não se preocupe mãe, vai dar tudo certo, diferente de você e do papai, eu e a Ruth vamos conversar assim que ela acordar.
__ Você não entende filho, sempre me culpou, mas na verdade seu pai se suicidou bem antes de mudarmos para essa casa, ele nunca chegou a morar aqui, mas quando você era criança começou a vê-lo pela casa e até conversar com ele. Levei você a diversos psicólogos, mas você só parou de vê-lo quando mudamos daqui.
Quando você disse que queria vir morar aqui até as coisas melhorarem, eu tive minhas dúvidas. Mas não pensei que depois de tanto tempo, isso aconteceria de novo.
__ Do que você esta falando mãe? Isso é loucura!
__ Não filho, é a verdade! Seu pai nunca morou nessa casa. Por isso me via chorando tanto. Porque tinha acabado de perder meu marido. Por isso você nunca nos via conversar, por que ele não estava realmente aqui. Era só na sua cabeça!
__ Mesmo que seja verdade, eu não estou vendo meu pai andando pela casa!
__ Mas está vendo a Ruth meu querido! Ela tirou a própria vida pouco antes de você perder seu apartamento! Overdose de comprimidos!
Encosto no balcão da pia em choque.
Lembro do dia em que retornei aquela casa, todo aquele pó sobre os lençóis... e a Ruth deitada...
Por reflexo abro a gaveta de talheres e procuro o frasco escondido.
Nada.
Viro a gaveta jogando os talheres no chão.
Nada de frasco.
Corro em direção ao quarto, minha mãe fala algo mas já não ouço.
A cama está vazia.
Aos poucos a dolorosa lembrança volta.
De certa forma já sabia, a sensação de perda sempre esteve lá.
Sento na cama e fico olhando a poeira pairando no ar.
Presa dentro daquele cômodo.