Dona Carmélia

Seu Miguel Arcanjo, cidadão trabalhador, operário, cumpria a rotina. Os anos 1960 estavam acabando.

Tempo em que as capitais tinham menos habitantes. Claro, não poderia ser diferente.

Miguel trabalhava numa fábrica de refrigerantes.

Regressava para casa à noite, ali pelas 20 horas. Quase sempre via alguém sentado à porta de uma casa. Perto da casa dele.

Esse costume era comum em tempos passados. Pessoas à porta, sentadas, conversando. Costume que terminou, alguns dizem que por causa da insegurança. Agora é muita violência, assaltos, estupros, agressões, assassinatos, lesões corporais. Por aí vai.

Ele passava, saudava aquela senhora. Dava “boa noite”. Ia, seguia para seu lar.

Ela desejava a ele, também, “boa noite”

Em casa ele quis saber da mulher, Deusa, quem seria aquela senhora, a que sentava-se à porta.

----- Volto do trabalho, passo, ela está lá, sentada. Toda noite está à porta. Lhe dou boa noite. Você a conhece, Deusa?

----- Sim, claro, a conheço, chama-se Carmélia – aliás dona Carmélia, é ela uma pessoa de idade. Tem 88 anos – a mulher respondeu.

----- Mora só. Tem uma moça a cuidar dela, mas vai embora quando escurece, quando chega a noite... Algumas vezes dorme na casa.

Duas semanas se passaram. Miguel não percebeu que Carmélia não sentara-se à porta. Talvez pela fadiga do trabalho, as preocupações, desatenção. São coisas normais, fazem parte da gente, da nossa condição humana.

À mesa, em casa, ele lembrou dela, Carmélia.

Disse à Deusa: ----- Olha, faz tempo não vejo aquela senhora, Carmélia.

----- Ah! Esqueci de dizer-te, ela faleceu, faz uns 4 dias...

Miguel sentiu um impacto, aquilo lhe foi uma surpresa.

Quis saber de que teria morrido.

------ Pneumonia, sua mulher respondeu.

Numa segunda-feira, o trabalhador Miguel Arcanjo precisou fazer hora extra. Voltou para casa tarde, ali pelas 23 horas.

Rua deserta.

Em frente à casa dela (Carmélia) viu uma cadeira, a que ela sentava. Apenas a cadeira, só, vazia.

Aquilo o assustou – a senhora já havia falecido. O que fazia aquela cadeira ali, naquela hora?

Percebeu que a porta (da casa) estava meio aberta. Parou. Foi até lá. Empurrou a porta, estava escuro.

Silêncio, não viu nada, ninguém. Depois, uma voz. ----- Boa noite, és tu, Miguel?

Voz de uma senhora, idosa. Voz parecida à dela, a que falecera, dona Carmélia.

Ficou paralisado, mente e corpo estáticos.

Ele nada respondeu. Poderia dizer, "sim, sou eu, o Miguel, marido da Deusa".

Não, estava com medo, ficou mudo, quieto.

Quem não ficaria com medo?

De novo a voz: ---- És tu, Miguel?

Ele encostou a porta. E rapidamente foi para casa. Logo pensou, aquilo, a casa, a cadeira à porta, certamente seria uma assombração, coisa do outro mundo, uma visagem.

Antes, no meio do caminho, olhou para trás.

Não mais viu cadeira, a que aquela senhora sentava-se todas as noites. Ficou ainda mais temeroso, apavorado.

Não sabe ele, até hoje, se essa visão ocorreu de verdade, se foi real.

Ou apenas fruto de sua imaginação, talvez do cansaço do trabalho.

Se só uma miragem, uma assombração. Nada mais.

Salatiel Hood
Enviado por Salatiel Hood em 20/02/2020
Reeditado em 20/02/2020
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