O corvo

Ella havia conhecido Frank no supermercado próximo da casa de ambos. Ele era charmoso e simpático; além disso, solteiro, e declarou gostar de animais; mais especificamente, de cães.

- Eu tenho um gato - Ella admitiu, sentindo uma ponta de culpa por não ter precisamente o mesmo tipo de animal de estimação que ele.

- Gatos são muito independentes e voluntariosos - redarguiu Frank, sorrindo. - Sabe por que eu prefiro cães?

Ella não sabia.

- Porque somente um cão é capaz de lhe dar amor incondicional. Não se pode esperar isso nem mesmo de um outro ser humano.

Ella achou o comentário muito profundo - e também uma pequena provocação. Será que nenhum ser humano seria capaz de nutrir esse tipo de amor que um cão tem por seu dono?

- O amor de um cão é uma espécie de idolatria - teorizou ele. - Nem mesmo o amor de mãe chega a esse nível.

Na verdade, Frank estava testando Ella, ver se a garota demonstrava ser capaz dessa admiração canina que ele esperava encontrar numa mulher. Até então, não tivera sucesso. Mas Frank não era de desistir fácil e Ella parecia ser uma boa ouvinte.

Ambos descobriram que moravam em ruas opostas ao parque, próximo ao supermercado. Frank costumava ir ao parque aos sábados pela manhã, dar uma caminhada com o labrador, convenientemente apelidado de Brownie. Convidou Ella para aparecer e bater papo. Ella foi.

- Gosto daqui - disse ao encontrar Frank e fazer festas em Brownie. - Às vezes, trago comida para os corvos.

- Corvos? - Repetiu Frank, com um esgar. - Aves barulhentas e desagradáveis.

- São barulhentos, às vezes - concordou Ella. - Mas muito inteligentes também...

- O seu gato não os caça? - Inquiriu Frank. - Gatos são pequenos psicopatas, se analisarmos bem...

- Eles não vão até a minha casa - minimizou Ella. - Só os vejo aqui no parque.

Como se houvesse sido chamado, um corvo pousou no ramo de um arbusto próximo. Cravou os olhos em Frank e grasnou duas vezes, de modo agourento. A reação do rapaz foi inesperada: ele abaixou-se, pegou uma pedra, e a atirou na direção do pássaro, que saiu voando em disparada.

- Por que fez isso? - Questionou Ella, assustada.

- Não gosto de corvos - replicou Frank. - Para mim, dão azar.

- Nunca me fizeram qualquer mal - insistiu Ella. - Para alguém que diz gostar de animais...

- Eu gosto de cães, já lhe disse o motivo - retrucou Frank, parecendo irritado com o rumo da conversa.

Ella concluiu que já havia ouvido o suficiente; despediu-se do rapaz com uma desculpa qualquer e voltou para casa, pensativa. Algo não parecia ir bem sob a aparência afável de Frank.

Naquela noite, estava deitada no sofá da sala assistindo TV, quando ouviu nitidamente duas batidas no vidro da janela, que estava fechada por causa do tempo frio. Ergueu-se de imediato para ver o que havia provocado o som e viu um corvo, pousado no parapeito. Para não deixar dúvidas de que fora ele quem batera, repetiu o gesto. Ella aproximou-se da janela, intrigada.

- O que você está fazendo aqui, amiguinho? - Indagou. - Nem pense que vou convidá-lo a entrar... eu tenho um gato aqui dentro.

Imediatamente, sentiu um arrepio ao lembrar-se das palavras de Frank: "gatos são pequenos psicopatas". O corvo grasnou duas vezes, não parecendo disposto a sair do parapeito; e foi então que a campainha da porta tocou.

Ella dirigiu-se para lá e espiou pelo olho mágico.

Do outro lado, estava Frank, com um buquê de flores nas mãos. Ela resolveu abrir, mas sem destravar o fecho de segurança.

- Nós havíamos combinado alguma coisa? - Ella indagou calmamente, encarando-o pela fresta.

- Eu vim me desculpar - alegou Frank, com um sorriso cativante. - Pelo meu comportamento lá no parque.

Duas batidas no vidro da janela. E mais duas.

- Um momento, por favor - solicitou a garota.

Foi até a janela e a ergueu o suficiente para que o corvo pudesse entrar. Como uma flecha, ele passou por ela e disparou no rumo da porta entreaberta. Em seguida, ouviram-se gritos e grasnidos enfurecidos, enquanto Frank era atacado pelo corvo.

- Pássaro maldito! - Ele exclamou enquanto fugia.

Ella trancou a porta e fechou a janela. O gato, que durante o desenrolar da cena permanecera deitado indiferente no tapete da sala, ergueu-se e arqueou o dorso, espreguiçando-se. Depois, soltou um miado que Ella, corretamente, interpretou como fome.

- [18-02-2020]