1137-DESFAZENDO OS NÓS DO DESTINO-Policial/Criminal
Finalização do conto “O Sequestro”
O Baile estava começando e a orquestra executava algumas músicas antigas e românticas.
O ex-delegado Davanti, sentado à mesa como convidado de honra, estava absorto, seus pensamentos viajando no tempo pelos sons das antigas melodias. Estava longe, bem longe do baile de formatura de seu neto Ramon.
Um casal aproximou-se da mesa onde ele e alguns outros convidados bebericam e conversam sobre amenidades. O rapaz é magro, bem apessoado. A moça é da mesma altura que ele, linda, sorriso brilhante e negros olhos e cabelos também muito pretos, despencando-se em cachos sobre os ombros.
Sem se dirigir diretamente a qualquer pessoa da mesa, falou com voz efusiva:
— Pessoal, apresento minha noiva Cristina.
A moça olhou para Ramon com um sorriso brejeiro e ao mesmo tempo de leve censura por uma apresentação tão informal.
Davanti, que estava mais próximo de ambos, levantou-se e cumprimentou a jovem.
— Prazer. Davanti. Cristina...?
— Cristina Rondas, esclarece o neto. E ela acrescenta:
— Meu pai é Ricardo Rondas, o senhor por certo o conhece.
E passa a cumprimentar os demais à mesa.
Davanti senta-se e toma um bom gole de uísque. E pensa.
Sim, sim, como o conheço. E também a sua mãe.
E deixa a memória abrir os escaninhos fechados há mais de vinte anos.
Ricardo e Marlene. O caso do ladrão que morrera ao ser empurrado pela mãe da moça. Sim... quanto tempo se passara.
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Tarde chuvosa e fria em Vento Leve. Na Delegacia de Policia nada de novo quebra o ramerrão diário da delegacia de polícia.
O Delegado Davanti manuseava, pela enésima vez, o processo que era um verdadeiro beco sem saída do ladrão que tentara roubar a criança de três meses do casal Ricardo e Marlene, no qual o ladrão fora morto de modo acidental.
Acidental?
Uma história sem pé nem cabeça até mesmo para sua mente acostumada a desvendar os mais complexos problemas ligados a crimes e criminosos.
Suas divagações foram interrompidas pelo jovem policial que recebia as pessoas na sala de “Atendimentos e Visitas aos presos”.
— Doutor, a diretora da Maternidade está aqui na sala de espera, quer conversar com o senhor.
— Diretora da Maternidade...? Ok, ok, mande-a entrar.
Levantando-se logo ofereceu a mão para cumprimentar a recém-chegada.
— Doutora Vitalina, boa tarde!
— Boa tarde, senhor delegado.
— Que honra! Sua visita realmente é muito bem vinda, embora aqui não tratamos de assuntos muito... muito... como direi? ... agradáveis.
— Sim, doutor Davanti. Minha visita está ligada a um fato muitíssimo desagradável. Para mim, principalmente, mas para diversas outras pessoas.
Percebendo que a doutora Vitalina estava querendo privacidade na conversa, ordenou ao guarda Juventino, que permanecia de pé, ao lado da mesa:
— Juventino, por favor, traga água e café para nós.
— Não, doutor, agradecida...
O guarda saiu, fechando a porta.
Assumindo um tom confidencial, a doutora disse:
— O que tenho a lhe dizer, doutor, irá resolver este crime do homem que foi morto na casa do senhor Rondas e sua mulher, dona Marlene.
Uma pausa. Ela parecia vacilar.
— Pode falar, estamos a sós e sou todos ouvidos.
— Por outro lado, irá complicar minha vida, posso até ir parar na cadeia. E irá envolver também outras pessoas que, afinal, estão numa situação que eu mesma criei.
À medida que ia falando, as feições da diretora do hospital iam se transformando, evidenciando o desespero e a grande dificuldade que ela estava enfrentando.
— A senhora está confessando que...
— Não, não estou confessando nada... ainda.
— A senhora quer que chame um advogado?
— NÃO! Pelo amor de Deus, não!
Ela estacou de súbito. Davanti lia claramente o desespero que tomava a diretora da maternidade: ela esfregava as mãos, e sua expressão de aflição não deixavam duvidas de seu estado de espírito.
— Então...?
— Quero que o senhor me ouça em confiança, sem gravar nem registrar nada. Depois, o senhor decide o que será melhor... se prossegue no processo... se me manda prá cadeia... sei lá. Seja o que Deus quiser.
— Posso ouvi-la sem testemunhas, mas não lhe prometo nada. Lembre-se de que sou Delegado de Polícia e não posso compactuar com nada ilegal.
A doutora Vitalina arregalou os olhos.
— Sei que é uma situação delicada... não de todo legal...
— Doutora, não existe uma ação meio ilegal... como não existe uma mulher meio virgem.
— Bem, peço que me ouça e me compreenda. Quanto às consequências do que fiz, estou plenamente consciente do bem que pratiquei. Embora tenha resultado na morte do rapaz na casa de dona Marlene, na semana passada.
Ao ouvir à referência ao acidente com o ladrão que morrera na residência dos Rondas, Davanti tornou-se alerta.
— Bem, até o momento, está sendo considerado um roubo frustrado e um acidente, disse o delegado. — Não há culpados, já que o ladrão morreu. A não ser que tenha sido a mandado de alguém.
— Bem, estou e não estou envolvida. Acontece que...
Então a doutora Vitalina contou como ajudara o casal Marlene e Ricardo a ter uma criança registrada como filha sua, não passando por um processo de adoção, mas sendo registrada diretamente como filha legítima.
— Acontece que reconheci no necrotério o rapaz que morreu. Ele era o pai da criança. Ele visitou a companheira na maternidade dois dias antes do parto e eu assisti a visita. Não sei como ele ficou sabendo que a criança fora entregue á dona Marlene e o marido. E assim que soube, pretendeu roubar o bebê, que era sua filha.
Davanti não perguntou detalhes. O que ouvira já era bastante para por dona Vitalina na cadeia e responsabilizar o casal por posse legal do bebê, ale de fazer falsas declarações de paternidade no cartório.
— O que a senhora me disse é grave. Mas porque veio me relatar isso tudo?
— É que o senhor está ainda investigando o caso. Mais cedo ou mais tarde, irá descobrir tudo, sei de sua competência. E que acontecerá quando descobrir? Vai saber de tudo que lhe contei, e de forma oficial, isto é, não terá como esconder o resultado.
Ela interrompeu a narrativa, esperando uma manifestação de Davanti, que permaneceu calado.
Alguns momentos de um silêncio profundo. Então, ela continuou:
— Quando chegar à solução do caso penso que eu serei incriminada, tenho certeza. A menina que entrou a criança também. O casal que acolheu bebê irá ser processado, também. E a criança? Não voltará para a mãe, pois ela já estará incapacitada legalmente de assumir o bebê. Irá provavelmente para um casal que a queira adotar legalmente, como filha adotiva.
O delegado ouvia com serenidade a doutora.
Mulher inteligente – pensou - Está se antecipando para livrar da humilhação de ser presa quando o caso vier à luz. E está completamente ciente de todos os efeitos que a solução do caso acarretará para todos os envolvidos e até para o bebê, batizado de Cristina Rondas.
— E que posso fazer para a senhora?
— É claro que o senhor irá descobrir tudo. Mas sei que agora o caso está parado, sem novas pistas. Só lhe peço que deixe o caso parado. Ninguém irá se aborrecer por isso.
Davanti, calado, observava a doutora em sua narrativa.
— Mulher inteligente. E ladina, muito ladina. – pensou. – E entendo seu ponto de vista, querendo resolver uma adoção por meios não muito legais (ela tinha razão...). Mas não posso lhe dar nenhuma certeza de que ficará impune
Davanti levantou-se e foi até à janela. Acendeu um cigarro e deu algumas tragadas, antes de voltar à mesa. De pé, olhou fixa e intensamente para a doutora.
— Alguém mais além da senhora e da mãe da criança sabe da história que me contou?
— Não. Senhor Davanti. Somente eu sei quem é a mãe biológica do bebê. E quem era o pai, naturalmente.
Mais uma tragada no cigarro, mais fumaça na sala.
— Olha, doutora Vitalina, vou fazer de conta que nada ouvi da senhora nesta visita. De outra forma, deveria registrar esse depoimento e o caso se resolveria. Fechar o caso não é possível.
— Obrigado, senhor Davanti. Sei que o senhor é humano e...
— Digamos que esta sua visita foi apenas de cordialidade.
— Obrigada, senhor Davanti. Não sei como lhe agradecer.
— Mantenha a boca fechada. — disse secamente o delegado, estendendo a mão para a médica.
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A orquestra já passara para os ritmos mais animados, e os pares dançavam um bolero de amor incompreendido.
Viu Ramon no salão, agarradinhos, enamorados e felizes.
Lembrou-se do caso do ladrão de bebê, jamais solucionado. Nada mais fora descoberto pela policia que pudesse tocar o caso pará frente. O mistério persistiu através dos anos. Alguns meses antes de se aposentar, deu o caso como encerrado e mandou arquivar.
Tomou um longo gole de uísque, que o aqueceu por dentro e confirmou o doce o conforto de saber que, tal qual a doutora Vitalina, diretora da maternidade, ele também desfizera uns nós na trama do destino da linda Cristina que, nos braços de Ramon, fazia um par de enamorados que rodeavam pelo salão em plena felicidade.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 4 de dezembro de 2019.
Conto # 1137 da Série INFINITAS HISTÓRIAS