O ESTRIPADOR DA RIBEIRA
A cidade de Natal é dividida em dois pelo Rio Potengi. O lado historicamente isolado é a famigerada zona norte. No século XX, a única passagem existente para o outro lado da Cidade do Sol era a ponte do Potengi, conhecida também como Ponte de Igapó, por estar localizada no bairro do Igapó na zona norte.
Na década de 70, a ponte foi interditada para algumas reformas e logo seria reinaugurada. Construíram uma nova via ao lado da estrutura de ferro, garantindo a passagem de mais automóveis.
Nesse meio tempo em que a ponte ficou interditada, os moradores da zona norte tinham como opção apenas barcos para atravessar o rio e ir a seus trabalhos. Alguns acabaram por ficar sem ir trabalhar durante esse tempo.
Cláudio é um desses trabalhadores de repartição pública do bairro da Ribeira — um dos bairros centrais de Natal —, num prédio da Receita Federal.
Mas, por infortúnio, morava ali no Igapó.
Dependente da ponte para ir trabalhar, ficou em casa nesse período.
A cidade parecia um pouco estranha depois que a ponte foi reinaugurada. O centro comercial de Natal parecia menos movimentado; a Cidade Alta e a Ribeira pareciam mais vazios para Cláudio. Talvez algumas pessoas que moram na zona norte não sabem que a ponte foi reinaugurada, pensava.
Cláudio notava que, depois das 17h, horário de pico, quando as repartições públicas fecham, a Cidade e principalmente o bairro da Ribeira, onde trabalha, ficam desertos. O que é estranho, ainda mais em noites de sexta-feira, quando ocorrem por ali eventos culturais e os bares e puteiros são frequentados pelos fartos assalariados de ofício.
Ouvia dizer em boatos sobre um perigo nas horas tardias da noite.
Jacó, o estrupador!
Sim, estrupador.
Pelo visto, uma má tradução do nome Jack the ripper.
Algum jornal transliterou esse nome para apelidar um maníaco que andava pelas ruas da Cidade e da Ribeira. Quando foi escrever estripador, o redator parece ter apertado na letra u da máquina no lugar do i. E publicaram a matéria — de capa! — sem revisar.
Mas o apelido pegou.
Jacó. Estrupador.
Na boca do povo, era válido.
Narravam as vozes populares que o maníaco buscava principalmente as moças. Nos bairros centrais de Natal, os puteiros mais famosos começaram a fechar cedo temendo serem alvos. Não queriam perder suas putas de luxo.
Diziam também que ele era altíssimo, mais que o normal. Magrelo, usando um sobretudo escuro, que lhe cobre até às pernas, e uma cartola que sombreia-lhe o rosto todo, tornando a face irreconhecível. Uma figura tenebrosa.
— Qual é, Cláudio. Tu acredita mesmo nessas invenção do povo?
— Todo mundo tá acreditando, Flávio. A cidade começar a esvaziar antes de fecharmos a repartição nos mostra que isso não é só história não.
Flávio era um contador. Também funcionário na Receita Federal, na repartição onde Cláudio trabalhava. Era rapaz de bem, mas não gostava de se meter muito em conversa alheia. E muito reservado. Por tal, Cláudio era o único da repartição com quem mantinha diálogos e, vez ou outra, comentava de alguma fofoca.
— Fui no Arpege e estava fechado. A dona parece que tá com medo desses boatos serem verdade. Não quer ver nenhuma de suas meninas aparecer no Diário de Natal.
— Até o Arpege? Misericórdia. Parar por conta de boato assim… ainda mais pra um lugar grande daqueles.
Arpege era provavelmente o cabaré mais conhecido da Ribeira. E certamente o maior de Natal. Era altamente frequentado pelos comerciantes da Ribeira e por alguns nomes influentes. Mas não só pelas putas. Era lugar de reuniões. Muitos iam ali só para almoçar. Cláudio era um desses que só comia o que lhe era servido em prato ali.
— Seguinte, Cláudio.
— ?
— Nós vamos tirar a prova. Ver se é verdade.
— Como é? Tá doido? E como quer fazer isso?
Flávio propôs como desafio a Cláudio passar a noite, até às 22h, pela Ribeira e Cidade Alta e ver se aparecia o tal do estrupador. Os dois ali. Até tarde, em busca de um maníaco.
— Deixe de conversa…
— É sério, macho. Vai eu e tu.
— Homem…
— Sabe que eu também sou frouxo. Não teria essa ideia se acreditasse nisso.
— Tá. Tudo bem. Nós vamos.
E ficaram ali, esperando a hora passar, depois de fecharem a repartição às 17h. Foram logo subindo para a Cidade, a caminho de uma cigarreira perto da Praça Metropolitana. Uma das únicas que ficava aberta após as 17, quando o comércio também parava.
Cláudio pediu uns cigarros na cigarreira. E leu um periódico da Tribuna do Norte. Assustou-se com a primeira notícia que leu. Era sobre uma das mortes esquisitas que ocorrera ali na Cidade. Um corpo foi encontrado pela Polícia Militar e logo levado ao ITEP, na Ribeira. A autópsia revelou um fato tenebroso e extremamente insano: não havia, externamente, uma ferida além do corte profundo no abdômen da vítima; contudo, dentro do corpo, estava tudo mutilado. Seus órgãos próximos à barriga todos atingidos — fato que deu dor de cabeça aos médicos do ITEP. Como pode algo assim? Uma ferida por fora e tamanho estrago por dentro?
— Olha, Flávio…
— O que foi? — disse Flávio ao olhar o jornal — ABC ganhou o Potiguar de novo?
— Não… leia a matéria aqui do começo.
E Flávio leu. Assombrou-se com o fato. Contudo, não estava tanto quanto Cláudio, que, gelado e com as mãos estáticas — como se o sangue tivesse parado de correr aos capilares —, parecia prestes a mijar nas calças. Um cadáver vivo. Trêmulo por dentro, imaginando o inferno em sua mente; paralisado por fora, como se houvesse encarado os olhos da Medusa.
— Tudo bem. Agora é preocupante. Passou de boato popular para as fontes oficiais… Mas pode ser que não tenha nada a ver com essa história de estrupador. — Flávio disse, com um certo pavor no olhar e um calafrio na forma de falar.
— Tu tá se cagando agora, né, Flávio? Avisei… — Cláudio respondeu, tentando aliviar o medo e dando uma risadinha.
O dono da cigarreira ouviu a conversa dos dois e, preocupado, disse:
— Vocês se liguem, viu. O povo fofoca mas nunca é mentira. Sempre tem verdade no fundo… e agora, com a Polícia na causa, a coisa tá séria. Vão pra casa vocês dois. Já já tô fechando.
Cláudio logo respondeu:
— Ele tá certo. Vamos sair logo.
Mas Flávio propôs outro desafio, desta vez imediato:
— Calma, doido. Antes, quero ver tu indo ali naquela esquina.
— Oxe… onde? E pra quê? Quer me ver morto, seu cabaço? Vá tu.
— Eu não. Tenho vida pra viver. Mulher e filhos!
— Que invenção é essa, Flávio? De onde tás tirando essa de mulher e filhos? Tu mora sozinho, desgraça. Agora vai lá, quero ver se tu é macho. Me desafia pra essas coisas mas duvido que faça.
— Eu não…
— Tá vendo? É tão frouxo quanto euzinho.
Flávio irritou-se.
— Pois eu vou. Tu vai ver como não tem nada.
E foi. Andou até a esquina do Palácio do Governo (Pinacoteca do Estado), que fica de frente à Prefeitura. Logo voltou e nada havia ocorrido consigo. Exceto que voltou sem o chapéu na cabeça, que estava em suas mãos.
— Pronto…
— Tu não passou nem dez segundo ali, Flávio!
— Não vou mais. Vamos embora logo.
Desceram à Ribeira e foram esperar algum ônibus ou táxi. Ficaram andando próximos ao ITEP, esperando a possibilidade de ir embora.
— Estamos no ITEP. Qualquer coisa, não haverá dificuldades de encontrarem nossos corpos.
— Diga isso não, Flávio. A gente já tem prova de que não existe nenhum Jacó aqui.
— E aquele caso que a Tribuna relatou?
— A imprensa é uma bagunça… mesmo um jornal como a Tribuna pode acabar sendo sensacionalista, né…?
Pararam bem de frente ao ITEP, entre as vias onde passam carros.
Próximo aos postes, cuja luz ofuscante não clareava tanto, Cláudio pensou um pouco em sua vida e no risco que corria ali. Porém, estava acompanhado de seu amigo — fato este que em nada interferiria, considerando que um maníaco que mutila seu corpo por dentro não seria parado por dois funcionários públicos.
Flávio andou o caminho todo inquieto, mexendo nas abas de seu chapéu. Seus passos eram o de alguém ansioso. Cláudio não achou a atitude estranha, pois imaginou que o calafrio que corria em sua medula era a mesma sensação que causava essa ânsia em seu amigo.
Na verdade, Flávio estava eufórico.
As luzes dos postes da Avenida Duque de Caxias não iluminavam bem. Piscavam, o que causava maior tensão em quem estava por ali depois do pôr do sol. E quando surgiu essa história sobre o estrupador, ninguém mais queria estar por ali. Alguns ainda frequentavam a Rua Chile, por ser menos tenebrosa à noite, mas eram gatos pingados — e, principalmente, gente sem maior expectativa para a vida.
Os postes continuavam a piscar, já num ritmo semelhante ao ponteiro de um relógio. Pareciam seguir certo ritmo.
Cláudio pensou sobre o mito. Jacó, o estrupador, tornou-se lenda urbana de Natal. Um homem esguio, de roupas escuras. Acinzentado como as ruas da cidade. Com um chapéu semelhante a uma cartola. Alguns relataram também que usava sobretudo preto. Diziam que mirava principalmente as moças, e que o Maria Boa já havia perdido uma de suas garotas. Pensava nessas descrições enquanto encarava as poucas estrelas do céu e fugia do medo. Parecia tudo ficção, agora.
Flávio chamou sua atenção:
— Cláudio, tu viu esse ônibus?
— Oi? Não prestei atenção. Nem ouvi barulho…
— Tá viajando fundo…
— Pois é.
— Mas eu te juro… não vi ninguém no ônibus que passou.
— A essa hora, nem uma águia veria.
— Não, zé… não vi nem motorista.
Cláudio frisou. Essas palavras foram absurdamente irracionais. Não faziam o menor sentido. Mas preocupou-se. E parecia ter voltado à tensão.
Os dois, parados de frente ao ITEP, sob um céu quase que sem estrelas e clareados por luzes frias.
— Flávio.
— ?
— Não vimos nada. Essa história é mentira. Não encontramos Jacó algum.
Flávio, com um gesto aparentemente de conforto, colocou seu chapéu de volta à cabeça. O mesmo em que estava bulindo o caminho todo. Ao invés de aparentar amassado, parecia mais reto, como uma cartola. Esboçou um sorriso ao ouvir as palavras de seu amigo. Olhou para ele e, com a face já completamente insensível, pôs, lentamente, a mão em seu ombro, enquanto recitava as seguintes palavras, com a ânsia de quem estava segurando um peso durante muito tempo:
— Sempre estive aqui.
Jacó deixou mais um presentinho para os estudantes de anatomia da Universidade e mais um serviço para o ITEP.