VERDE MADURO

De volta à cozinha depois de uma tarde de boas colheitas, Judite deposita sobre o balcão da pia os repolhos crescidos na horta do seu jardim. Três, ao todo. O primeiro ela arremessa por inteiro dentro da bacia d’água, descascando as camadas – uma a uma – enquanto o mantém submerso. Lavadas as folhas, separa-as numa pilha ao lado. Partindo para o próximo, alcança a verdura em uma só esticada e, depois de despelá-lo, também o reserva em separado. No último, por algum motivo, demora-se diante da carcaça verde. Uma pausa quase meditativa. O repolho sobre a mármore; a mão direita sobre ele; a esquerda sobre a faca. Passando o utensílio de uma para a outra, firma bem o cabo nos dedos, antes de passar a lâmina – de uma só vez – pelo corpo cru do vegetal.

Escapando de acertar em cheio o meio exato da verdura, mas não de alcançá-lo, a faca pega bem na borda do seu âmago; pela tangente, arranca dele uma lasca do material que – até então – suas folhas protegiam. Fora do comum usualmente conhecido em todo o mundo, a faca – despreparada para o que a atingira – retorna do seu trabalho banhada por uma substância de cor inesperada. Vermelho. A faca pinga de sangue.

Por instinto, Judite – morta de aflição – berra o nome do marido. Túlio. Botânico. Bom homem; mas um homem de imunidade corruptível. Está viúva. Dois anos e uns quebrados. Meia safra de vinho tinto. Em meio à compreensão, e já do outro lado da cozinha, berra agora nome nenhum. De longe vê as duas faces do repolho tombadas; à vista, o espirrar descontinuado do líquido escarlate. Ela assiste ao sangue escorrer pia abaixo sem mais desejar emitir qualquer ruído. Silencia-se. Morde a língua. Judite teme, do fundo do peito, sequer ser ouvida. Contra a própria vontade, os olhos vão seguindo a linha avermelhada descer o balcão, tocar o armário, caminhar pelo piso, até quase – por muito pouco – chegar até ela.

Por sua conta em risco, embora lhe escape o controle, Judite termina o trajeto que o líquido faria e, ao bater os olhos sobre seus pés, percebe – enfim – o que não havia visto. Estava ensanguentada. Toda ela, dos pés à cabeça – como a faca que ainda agora carrega –, banhada em sangue.

Sendo a única pessoa de pé num raio de quinhentos metros, é evidente que cabe a ela – e somente a ela – verificar a procedência do repolho. Como que para atestar a veracidade dos fatos, ou – até – a truculência da vida, espia à distância em que situação as circunstâncias se encontram. Da outra ponta do rastro vermelho, a bancada transformada em uma poça de sangue. Já se sabendo fadada a alguma desgraça, busca em qualquer coisa a fuga de um alívio. Atrás da janela o gramado fluorescente se pendura feito um quadro na parede, e ela se tranquiliza – por enquanto.

Tudo o que é verde farfalha. Flores e abelhas se aconchegam. Os pássaros brincam. Camuflado ao canto do galo, ela ouve o som molhado do debater de um peixe encalhado à beira do rio. Pulsante e em carne viva, o interior do repolho arfa sobre a mármore. E na fração de uma piscadela, a paisagem perde sua atenção para o ofegar incomum do vegetal. No seu íntimo, a verdura lateja, ao mesmo passo em que o dela também palpita. Tentada – e talvez fraca, de medo –, Judite cede. Não de vez; lentamente. Lentamente, Judite vai cedendo ao próprio capricho. E quando torna a espiar a coisa sobre a bancada, a coisa em questão lhe convida a olhá-la de perto. Dentro do repolho, a mais desagradável surpresa. Válvulas. Músculo. Tecido. Nervuras. Mas não só, mais do que isso: cava, miocárdio, ventrículos, aorta.

Um órgão.

Mas não só.

Mais do que um órgão.

Dentro do repolho, encontra um coração.

Vivo.

Sobre o peito, levada pela vergonha, a mão calcula o espaço vago que a roupa esconde. Numa colheita banal de fim de tarde, Judite colhe a herança que desconhecia.