o Céu sem o Inferno é um espaço vazio
Cada família possui uma singularidade única, mas a de Roseta era além — um trio de religiosos pentecostais antiquados e completamente antipáticos aos olhos da vizinhança. Sendo tanto que Roseta era forçada a estudar em casa desde a infância. Roseta aprendeu desde suas fundações primárias quais seriam os seus lugares nesta vida, se equiparando aos passos da sua mãe com a subserviência sob os pilares do seu pai. Ela entretanto nunca julgou a seu pai pois entendia o quão necessário era o papel dele de provedor — e ele provia, do melhor. Para si própria e a sua mãe, os cômodos da casa eram os seus lugares, as suas jaulas confortáveis, enquanto o pai tinha um escritório para trabalho e um porão trancado com um grosso cadeado. Roseta aprendeu cedo inclusive com uma surra que a curiosidade sobre o cujo porão era intolerável — era um espaço unicamente do seu pai. Talvez tenha sido nos primeiros meses de sua nova década de vida pré-adolescente que Roseta começou a notar um padrão que se repetia quase mensalmente no qual o seu pai se prostrava singularmente indisposto e fora de si por alguns pares de dias, e nesses dias específicos, ele se trancafiava naquele porão por voltas e voltas do relógio à fio — ele estava na mesa de jantar mas com a fome atencionada ao rumo do cujo porão. “Papai, o que houve?”, Roseta questionava e após alguns segundos prolongados ele a fitava com um olhar vago faminto de um condenado que a arrepiava, “Nada com o que se preocupar, meu anjo.” Roseta também começou a perceber que se sentia estranhamente cansada e lenta nesses contáveis dias, e via a uma exaustão ainda maior na sua mãe. Nalgum ponto, já religiosamente temerosa, Roseta passou a acreditar que era do seu pai de quem emanava aquelas ocorrências — havia um mal naquela casa usurpando à escondidas. Numa noite desses dias, Roseta abruptamente acordou como se tivesse sonhado com um grito choroso entrecortado que de tão nítido não lhe pareceu só um sonho. Se sentia zonza, com a respiração difícil, e o seu estômago pesava com um amargor mesclado aos sabores do jantar. Ouviu a algo se batendo distantemente, vindo do rumo da cozinha, e o seu estômago se avulsionou. O mal estava dentro de casa, ela podia senti-lo queimando frio em suas fundações. Roseta tentava se levantar da cama paralisada pelo medo e ir porta afora. Agarrou a sua bíblia do criado-mudo envolta no peito e intensificou a coragem, caminhando silenciosamente trêmula porta afora e rumo à escadaria. Avistou a um feixe de luz na penumbra adentro da cozinha. O mal estava lá. Roseta amassou mais a bíblia e enfrentou a cuja luz, vendo a porta daquele imaculado porão entreaberta. Os passos curiosos e temerosos até a cuja porta eram lentamente pesados, curiosamente automáticos. Roseta entreabriu mais, rangendo as laterais da porta, e viu a uma escada funda. Já a conhecia, o mais longe que chegou ali dentro. Ela transpirava audivelmente. Um, dois, três passos calculados, e a escada rangeu, sendo respondida com um solavanco seco entrecortado abaixo. Roseta sentiu um ranger nas entranhas a alertando para parar, mas engoliu e prosseguiu, e sentiu aquele bile avulsionar garganta afora numa erupção quando avistou a uma menina com roupas rasgadas e sujas de terra com marcas de sangue presa nos punhos e nos tornozelos amordaçada em fita isolante numa cadeira posta abaixo de um bocal de luz — ambos os olhos da mesma cor se encontraram e o da cuja menina se esbugalhava à Roseta tentando se debater na cadeira presa ao chão. A bíblia de Roseta caiu à uma névoa de poeira incompreensível. Aquela menina presa possuía traços bastante similares aos seus — olhos azuis, pele bastante branca, o cabelo preto cacheado, de idade aparente, apenas uma adolescente. A cuja menina tentava se debater mais forte e gritar o seu silêncio mortificado à Roseta. Aquilo ali era um covil infernal num lar celestial acima, afinal, um não poderia existir sem o outro, e Roseta finalmente entendeu por que era proibida de entrar ali. Ela poderia ter seguido o instinto empático e tentado soltar a cuja garota, ao menos a fita da sua boca e ouvir o seu clamor por salvação, mas escolheu automaticamente apenas apanhar a sua bíblia e se virar corrida tropeçando de volta às escadas. Poderia escolher não mais ingerir os remédios calmantes diabólicos que seu pai dissolvia na sua comida e de sua mãe para que fossem cúmplices silenciadas daquele pecado fatal. Roseta compreendeu que, para ela própria viver, aquela sua versão falsa como Jezabel presa deveria ser condenada no seu lugar. O bem e o mal — ambos temos que esconder um para o outro sobreviver. Talvez viria uma estação futura na qual ela tomaria o lugar daquela garota e das demais já sacrificadas ali e seria condenada pelas torturas vis de um demônio predador. Roseta se disparava escadarias acima, engasgando em seu próprio vômito, amassando à sua bíblia, enquanto aquele par de olhos de um condenado faminto do seu pai a acompanhavam na penumbra debaixo da cuja escada salivando ao seu pecado irresistível com probabilidades futuras.