Ironia da morte
Amadeu nascera no dia 29 de fevereiro. Quando alcançou o entendimento, costumava brincar dizendo que as pessoas que nascem nesse dia só fariam aniversário oficialmente de quatro em quatro anos. Com isso, vivia a vangloriar-se que viveria muito mais e que levaria mais tempo para envelhecer do que as demais pessoas. E mais, quanto às chances de morrer no dia do seu aniversário então, era remota.
Com essa brincadeira ia levando a vida. Porém, o que o levava na verdade a brincar desta forma era o pavor de saber que um dia teria de morrer. Nada o tirava mais do sério nem o preocupava tanto quanto essa realidade inevitável. E esse assunto complicava mais, quando algum amigo de molecagem lembrava que todos ao nascer já vinham com a passagem de volta para o além, comprada.
Por acreditar ser a morte uma ignorante, pois desde criança a via levando as boas pessoas e deixando as que ele achava ruim, às vezes passava em sua mente a vontade de fazer o mal, mas logo se conscientizava de que este não era o caminho, teria que descobrir outro. Dedicou-se a estudar.
Amadeu fizera bacharelado em Biblioteconomia e Documentação, além de alguns cursos de extensão. Todo esse estudo foi à forma encontrada para distrair a cabeça, parar de pensar na morte e encontrar um meio de enganá-la o máximo possível. Trabalhando na Biblioteca, um local tranquilo, só frequentado por estudiosos e intelectuais ele acreditava estar mais protegido ali. Quando perguntado porquê escolhera aquela profissão, justificava dizendo: – tudo ali dentro permanece vivo.
Na sua concepção, não se sabe de onde tirou essa ideia, costumava dizer: – As bibliotecas sofrem ao longo dos anos a ação do tempo, as guerras, a censura e as pragas, contudo isso, mesmo assim elas conseguem sobreviver a todos esses ataques. É por isso que eu acredito que a morte jamais executará seu trabalho lá dentro.
O tempo passou e a idade veio chegando sorrateira como acontece com todos, mesmo para os que nasceram naquela data. Estava para completar sessenta anos e como não podia deixar de ser, as pequenas doenças e os mal-estares também vieram junto. Mais até do que nos seus amigos.
Amadeu envelhecia e não deixava de temer a morte, razão pela qual passava a maior parte do seu tempo dentro da biblioteca. Mesmo com a idade continuava pensando que dessa forma estaria livre dela ou pelo menos a prorrogando. Nos últimos tempos raramente ia para casa, e seus familiares já não sabiam mais o que fazer para mantê-lo junto a eles. Hoje, porém estavam todos felizes, pois sabiam que no dia seguinte – 29 de fevereiro, seu aniversário – ele ficaria em casa. Tinham tudo praticamente organizado e pronto para a festa, afinal não era sempre que se fazia aquela idade. Entretanto, naquela madrugada Amadeu acordou passando muito mal e com fortes dores no peito.
“Não posso morrer no dia do meu aniversário”. – Pensou.
Levantou rápido, se arrumou e saiu de casa deixando um bilhete explicando sua ausência.
Sua mulher e os filhos pensaram que ele fora para o hospital, mas qual? Ao invés disso dirigiu-se para a biblioteca, pois o medo da morte o fazia pensar que ali estaria seguro. Chegando lá se sentiu aliviado, a dor até desaparecera, deitou na poltrona que tinha no seu escritório para descansar e ali adormeceu.
Amanhecera. Marivaldo, seu colega de trabalho, chegou mais cedo do que o de costume e estranhou encontrá-lo ali deitado no sofá. Não era seu costume. Tentou acordá-lo, mas não conseguiu; Amadeu não respondia à sua chamada. Estava morto. Ao invés da festa; velório.
Magda, sua mulher comentava com os amigos:
- Meu marido passou a vida com medo e fugindo da morte. Nem mesmo suas previsões e o que achava se concretizaram; – não morrera tão velho como sempre previa, faleceu justo no dia de seu aniversário e dentro do local que achava mais impróprio, a biblioteca onde trabalhava.
- A morte não escolhe lugar nem hora. – Disse um amigo.
Que ironia da morte. – Pensava seus familiares.