Capítulo 1 do livro Sangue e Gelo
Ano de 1837, mês de janeiro, o dia realmente não sei direito, para mim pouco importava, tudo era sempre igual. O sol ainda não havia saído por completo e eu já estava acordado em mais um dia comum na minha velha casa, tudo normal, em mais um dia normal, claro, se não fosse pelo frio insuportável que fazia especialmente no início do ano aqui em Norma, pequeno vilarejo de Turim na Itália. Não havia o que fazer e muito menos algo que motivasse alguém como eu a fazer algo, alguém que vivia apenas esperando que um dia a vida chegasse ao fim, e talvez por isso, mesmo acordado fiquei deitado, apenas olhando o olhar da “Remy” minha cadela da raça Braque francês que veio comigo da minha estada rápida em Lyon na França, há no mínimo uns 15 anos atrás. Remy é uma típica Braque, grande com algumas manchas vermelhas e pequenas pintas da mesma cor, olhos tristes e cansados da idade, e claro, orelhas caídas enormes. Apesar de velha, ainda era muito alerta, protegia-me e avisava-me sempre que alguém chegava ao meu chalé, mesmo que essas visitas fossem praticamente inexistentes, e quando existentes nunca eram bem-vindas, odeio visitas!
Naquela manhã ao finalmente levantar-me, vi pela janela já com vidros bem embaçados pela nevoa que caia já fazia alguns dias e também pela poeira, que alguém estava ao portão parado, acho que não restava mais duvidas, minha cadela estava doente, pois Remy nem latiu, no máximo olhou uma vez. O moço também não fazia barulho apenas olhava, com certeza impressionado por tamanho desgaste da minha casa, e o estado deplorável no qual se encontrava, era justo o tal julgamento, pois os rebocos estavam caindo, a pintura já não existia mais e as telhas, bom, o que não era remendo feito com pedaços de calha já estavam bem velhas, um jardim repleto de ervas daninhas que separava o chalé do muro baixo com um pequeno portão de ferro e bem enferrujado há alguns metros à frente da porta de entrada, a neve cobria todo o resto. Era fácil julgar que ali morava alguém que simplesmente não via mais sentido na vida a muito tempo, alguém amargando dias solitários e esperando, ainda que não fosse tão velho, o fim de sua jornada, jornada essa negada a felicidade, num lugar que se durando o dia é grotesco, isolado e frio, a noite chega a ser assustador tamanho o deserto daquele morro, pé de montanha.
Observando aquele moço alto magro de enormes olhos azuis, com a pele vermelha e ressecada pela friagem, usando um típico terno inglês preto, cartola coberta de neve, com um casaco de frio também preto e enorme, até parecia que não foi feito sob medida pra ele, porém se isso lhe parecia ridículo, a sua bengala com ponta e cabo dourado, seus dedos repletos de anéis que também pareciam ouro maciço, lhe dava um ar de elegância, que junto a sua postura esguia lhe dava um aspecto de soberba, me veio à mente que era impossível ele saber quem morava ali, então, preferi pensar ser apenas um homem perdido e fingir que não estava olhando tanto para minha casa.
Já de pé, em meio a casa, fui de encontro ao fogão à lenha, peguei o bule, um dos poucos utensílio doméstico que possuo, junto com a minha caçarola de ferro onde preparo meus cozidos de cordeiro ou coelhos, nos quais eu compro de um menino que sempre me vende com preço abaixo do normal, obvio que são roubados, o que para mim não faz muita diferença, o que importa mesmo é preço baixo, pois o dinheiro que guardava já não era grandes coisas, e ainda tinha de vender lenha pra conseguir mais algum. Ao longo da minha vida no isolamento daquele morro, me desfiz de quase tudo que eu tinha para poder comer e hoje ainda ter como estar vivo naquele fim de mundo.
Como bom britânico que sou, não abro mão do meu chá pela manhã cedo, ainda mais com o frio do mês de janeiro aqui na Itália. Ao começar a fazer os preparos e com isso fazer barulho nos utensílios domésticos, escuto o primeiro grito que não consigo entender ao certo o que foi gritado, por isso talvez mais uma vez eu fingi não ser comigo, o meu humor, ou melhor, mau humor, não suportaria uma visita naquela manhã e ainda naquele horário, mas como se era de esperar, ele insiste principalmente ao ver um movimento dentro da casa, porém para minha surpresa o moço grita algo familiar.
-Sr. Finningan
Esse realmente era o meu sobrenome, mas há anos não o ouvia, principalmente aqui em Turim, muito menos em Norma, praticamente um esconderijo, ninguém me chama assim, acho até que ninguém sabe que meu nome é esse, se não, Sr. Inglês. Era assim que todos me conheciam e chamavam, exceto a menina Paola a jovem que me traz escondida do pai verdureiro, verduras legumes e farinha, ela sempre me chamava de “Grande Velho” acho que pela minha boa estatura e pela minha aparência triste e desgastada, a anos não faço a barba, não me alimento direito e minhas roupas estão velhas, com certeza aparento ter uma idade maior que a verdadeira. Ao ouvir tal nome, passei de incomodado para curioso com aquela presença, presença essa que passava de inconveniente para intrigante, fui até a porta e mesmo sem a abrir, gritei, com voz rouca, porém potente;
-O que deseja?
-Falar com o Sr. Finningan
Fiz-me de desentendido e falei;
- Não sei do que está falando vá embora
Na verdade, falei aquilo não para expulsá-lo, mais para ver até onde ia o conhecimento dele ao meu respeito e foi quando ele disse:
-Preciso falar com o Sr. Finnigan, chamo-me James O’Connel vim da Irlanda do Norte tenho assuntos importantes para tratar com ele, sabe onde o encontrar? Segundo me informaram um senhor inglês mora aqui, e pressuponho que possa ser o...
Antes que o rapaz terminasse, cortei sua fala pela primeira vez.
- Olhe rapaz, foi um prazer em conhece-lo, você é muito simpático até parece boa gente, mas não tem nenhum Finnigan aqui, vá embora!
- O senhor poderia dar um pouco de agua para meu cavalo e eu, venho de logo e apesar de muito frio faz tempo que não bebo agua.
- Sim, água eu posso, fique aí onde está, vou pegar.
- Senhor, acho que não percebeu, mas, está nevando, fazendo um frio de congelar, aqui fora.
Entendi que ele na verdade queria esticar o assunto, pois sabia exatamente com quem estava falando, e minha curiosidade tratou de aumentar, ia ser grosso novamente, dizendo que não tenho nada a ver com o frio que ele está passando, não o chamei ali, mas minha curiosidade falou mais alto, e deixei-o entrar.
-Tá!, Vá colocar seu cavalo junto a minha égua no estabulo lá nos fundos, lá tem água e comida pra ela.
Exclamei quase que gritando com um tom rabugento.
O que meus ouvidos ouviram, minha cabeça não aceitou tão rápido, alguém em Norma sabendo meu nome e vindo da minha terra natal era mesmo algo de me enlouquecer. Como não poderia ser diferente deixei-o entrar, acho que até por isso enrolei tanto tempo, tentando aceitar aquele fato, tudo era misterioso, alguém saber para onde fui depois de tantos anos, tinha alguma coisa errada nisso tudo.
O interpelei logo na entrada:
-Como achou essa casa? Como sabe que foi que nessa região tem um velho inglês? Como chegou até aqui?...
O jovem entrou rapidamente fugindo do frio, levantando o chapéu em um sinal de cordialidade, colocando-o na cabeça e rapidamente esfregando as mãos, olhou-me rapidamente e não me respondeu nada
- Onde posso colocar meu chapéu?
Perguntou o jovem sorrindo, parecia em forma de agradecimento por eu ter permitido sua entrada, ou poderia ser por ter certeza que estava me vencendo. Esqueci por um momento as indagações que me eram importantes as suas respostas e apontei para uma mesinha próxima a porta indicando onde colocar a cartola, e tentei ser mais cordial;
-Aceita um chá quentinho? Sente-se.
Porém antes mesmo de sentar ou de responder se queria o chá, olhou pra mim com um olhar de espanto, arregalou seus grandes olhos azuis e falou:
- Como imaginei, o senhor é o Sr. Finnigan.
De imediato voltou meu mau humor, e repliquei:
-O moço entra em minha residência, não responde nenhuma de minhas perguntas, e ainda se acha no direito de me acusar de algo?
E o jovem disse-me com um sorriso maior ainda, quase uma risada, como se não sentisse mais sede nem frio.
- Bom então vamos tentar fazer as coisas da maneira correta, como disse chamo-me James O’Connel, sou de Ballybay, condado de Monaghan na Irlanda do Norte, acredito que o Sr. Conheça esse lugar. – Ele riu - filho de Paul O’connel e Victoria Butler...
Mais uma vez o interrompi, pois, aquele nome, Victoria Butler me arremetia a todos os motivos pelo qual vivi os últimos anos de minha vida e, diga-se de passagem, muitos anos, sozinho e escondido, fugindo, cruzando países e pagando por crimes e pecados que não cometi, então de imediato pedi que se calasse e disse-lhe:
-Olhe rapaz, depois de tantos anos nada mudará meu triste fim, por tanto não quero relembrar tanto sofrimento.
Entendi que na emoção de ouvir o nome, o que falei deixou claro que ele estava certo, dei as costas como se tivesse muito ocupado.
-Então o senhor assume ser Sr. Finnigan? Eu sabia!
-Sim! Sou eu.
Virei-me olhando fixamente no olhar do jovem, que não se intimidava.
- Pois apenas me escute.
- Poucas palavras e vá embora, por favor.
- Claro, apenas escute-me.
Exclamou o jovem arregalando os olhos, e apontado para o meu bule que já começava a apitar, com o vapor aparecendo e tornando o lugar próximo ao fogão um pouco mais quentinho.
-Aceito o chá!
-O que?
-O chá, você me ofereceu, eu aceito.
-Sim claro!
-Sr. Finnigan, sou sim filho da Sra.Victória Butler e sou jornalista também, sempre ouvimos falar do lendário, Finnigan O Justiceiro, talvez não saiba, mas, com seu sumiço, tudo virou lenda, alguns acham até que as histórias são mentiras.
-E são! Mas escute bem, realmente eu sou Roy Eric Finnagan, também de Ballybay e famoso em todo nordeste da Irlanda do Norte, mas por Deus o que quer e como me achou?
-Exatamente por essa afirmação! É tudo mentira, o senhor não é um justiceiro, paga por algo que não fez, acredito que se contarmos tudo do jeito certo, o Sr. terá sua remissão.
-Nunca acreditaram em mim, tive que usar muitos nomes e fugir a vida toda até chegar aqui, não me interessa contar essa história, por esse povo no qual quer contar essa verdade, eu estaria atrás das grades ou morto a anos.
-Bom, vou te falar o que me trouxe aqui, claro que não foi somente minha curiosidade de jornalista. Minha mãe me falou que viu tudo no dia do assassinato de Charles Dean, e ouviu a confissão dele antes do crime, seria uma história incrível se conseguíssemos provar sua inocência, não acha? Acho que isso é do seu interesse.
-Não brinque com isso jovem! - Falou sentando lentamente, como quem perdeu o norte, o rumo.
-Ela disse que naquele fim de tarde, foi até a casa onde você e seu chefe estavam conversando, ficou escondida atrás da janela, ela havia ouvido que você sabia quem matou minha irmã e foi pra conversar com você, levou uma faca, pois ela acreditava ser você, por coincidência igual a usada no crime e deixada lá junto ao corpo do seu chefe, porém, ao ouvir a história da boca do Charles, se aproximou, viu você na sala, e logo em seguida, saiu um grito abafado do quarto, com certeza o grito do Charles sendo degolado, quando olhou pela janela, viu você chegando e alguém correndo pela porta dos fundos, e do outro lado do quarto, o Charles estava deitado na cama com a garganta cortada e a faca ao lado. Ela nunca falou nada por que não queria que soubessem que ela foi lá com uma faca, afinal, poderá ser acusada do assassinato.
-Maldita!
O moço levantou-se com ímpeto.
-Não fale assim! O que faria no lugar dela? Acho que qual quer um ficaria aliviado por ter sido feito justiça.
-Justiça pra quem? Sua irmã continuou morta, e minha vida foi destruída. E então, do nada ela resolveu falar? Mesmo que aquele maldito merecesse uma morte ainda pior, nunca fui eu.
-Ela está morta, falou isso no leito de morte, disse que não ia partir com essa culpa, e seu último pedido foi que o encontrássemos e desvendássemos toda essa história. Para mim seria perfeito, atenderia o pedido de minha mãe e escreveria meu livro, Os contos do “justiceiro Finnigan, e quanto a você, acho que a verdade sempre deve interessar.
-Falso Justiceiro você quer dizer. Olha, não tenho certeza se depois de tanto tempo ainda quero ter com a verdade, ainda mais depois de tudo que tive que fazer para chegar até aqui, se era inocente, acredito que não sou mais. E além do mais, se sua mãe está morta, vai ser mais uma vez, só minha palavra, e como já falei o Charles já teve o que merecia, aquele verme.
Cuspi no chão com tamanho nojo ainda sinto só ao lembrar do rosto daquele amaldiçoado. Sinceramente me passava que ele era da policia e queria apenas uma confissão, deveria estar com os guardas escondidos.
-Quando falo em desvendarmos, não estou sozinho, meu tio Gael Butler é detetive da polícia de Monaghan e se comprometeu em resolver esse caso que para muitos já virou lenda, sua grande chance.
Tudo aquilo me deixou atordoado, sem saber o que responder, numa conversa rápida, tudo que pensei nos últimos anos se desfez, alguém sabia uma pequena parte da verdade, e eu tinha que decidir se contava tudo ou se enlouquecia de vez e decretava minha morte naquele lugar.
Enquanto servia o chá e puxava a cadeira para longe da mesa onde o jovem James estava, percebia que ele olhava fixamente para mim, ansioso pela resposta inevitável. Sentei-me e disse;
-Preciso de um banho e ir à cidade, para contar essa historia preciso de um pouco de conhaque ou whisky.
-Não acredito! - Falou o jovem como se eu fosse falar de algum livro emocionante que alguém escreveu, sem se importar que essa história tão empolgante aos olhos do jovem, acabou com minha vida e a vida de outras pessoas.
-Sim, e além de álcool, preciso de algumas testemunhas, vamos a pousada do Sr. Pipo, lá teremos o que comer e beber enquanto o senhor escreve a minha história, e lá certamente o dono do estabelecimento poderá ser nossa testemunha.
O Sr. Pipo, só o conheço assim pelo apelido, é italiano muito descente e fala inglês, sempre simpático e sua pousada quase nunca tinha hospedes, as pessoas preferem ficar em Turim quando vem visitar as montanhas aqui de Norma, ele certamente iria aceitar servir de testemunha auditiva das minhas histórias.