Assassinato em Buganville
Entender a natureza humana é tão difícil quanto impedir a mutação dos vírus. Os cientistas se esforçam, realizam pesquisas, descobrem vacinas e eles retornam mais resistentes. Assim também tem sindo as ciências sociais na tentativa de encontrar uma solução que ponha fim à natureza perversa de parte da humanidade. Filósofos, sociólogos, psicólogos e os mais variados teólogos e cientistas políticos elaboraram teorias sobre os crimes praticados por alguns homens e mulheres. Mesmo algumas crianças em suas aparentes inocências são capazes de atos de crueldade inimagináveis, deixando os diversos ramos da medicina em polvorosa. O assassinato em Buganville não é novidade, um crime, de certo modo comum: estupro seguido de morte. A questão, mesmo com os avanços tecnológicos é descobrir o autor. Eles são mutantes e miméticos. Para atender a cobrança da sociedade, a polícia, muitas vezes forja provas e coloca inocentes na prisão. Mas vamos aos fatos.
Somente com a prisão do assassino, ou dos assassinos seria possível esclarecer os detalhes de um crime brutal. As pistas, de acordo com declarações das autoridades, "ainda são insuficientes para se chegar ao autor ou autores do assassinato da caseira do Sítio Dona Flor, que deixou indignada e assustada a pacata população local".
Maria era uma mulher simples, porém chamava a atenção pelas curvas dos quadris e por ter um traseiro privilegiado. Morena, quase mulata, o rosto era comum, mas expressivo. Maria tinha os lábios carnudos, transmitindo sensualidade. Era uma mulher de poucos rendimentos. Cuidar do Sítio Dona Flor propiciava-lhe um salário extra, minimizando o orçamento doméstico e dando-lhe a chance de usufruir um momento de prazer: comprar as roupas que combinavam com o seu corpo. Maria gostava de se vestir bem. Recebia elogios da patroa - uma balzaquiana de cabelos tingidos de louro-castanho - pelo bom gosto na escolha de roupas e bijuterias e por maquiar-se com discrição. Cuidando da horta com roupas rotas e cabelos desgrenhados, era diferente da Maria das horas de passeio e descanso: pele hidratada, cabelos alisados em chapinha, brinco de pérolas falsas, calça ou vestido acentuando-lhe as curvas, maquiagem leve e um batom roxo suave, sapato preto; dependendo da ocasião poderia ser um branco de salto não muito alto, que lhe dava um aspecto de madame, desmascarada quando ela entrava no ônibus 7001, sob o olhar de desejo dos passageiros. Consta que ninguém nunca se atreveu assediá-la sexualmente de forma grosseira, pois ela sabia impor limites.
Acima de tudo Maria era de uma dignidade incomum. Vizinhos e amigos comentavam que ela esperava encontrar alguém que a amasse verdadeiramente, para tirá-la da solidão de uma viuvez precoce e trágica. O marido se suicidara quando tinham pouco mais de um ano de casados, dias depois do nascimento do único filho, agora com dezoito anos e que interditava toda e qualquer relação amorosa da mãe, com cenas de ciúme e, algumas vezes, com um certo grau de violência a que os vizinhos se acostumaram. A psicologia tenta explicar, sem sucesso o ciúme doentio que alguns filhos sentem pelas mães, através do complexo de Édipo. O filho de Maria, pela idade já deveria ter superado a fase edipiana. Mas se de fato ele era possessivo ou se não tinha rompido o cordão umbilical, só Maria poderia dizer.
O fato era que o filho estava empenhado em descobrir o assassino ou os assassinos de sua querida mãe. Foi ele o primeiro a perceber a demora dela em retornar do sítio. Preocupado saiu a procurá-la pelas matas do cerrado, antes indo ao Sítio Dona Flor. Percorreu o itinerário que a mãe fazia cotidianamente do sítio ao lar e não a encontrou. Retornou à casa e pediu a ajuda dos vizinhos, que saíram em mutirão, fazendo uma varredura nas matas, olhando debaixo dos frondosos pés de pequis e à beira de córregos e lagos. Foi este filho, cujo amor pela mãe transcende as fronteiras da compreensão do senso-comum, quem a encontrou barbaramente degolada, olhos roxos, cabeça fraturada; saia levantada, com a calcinha branca de renda descida abaixo dos joelhos e coberta de sangue. O urro de dor que ele soltou foi ouvido por todos que se encontravam espalhados nas terras ao redor do sítio.
Descobrir o autor ou os autores do crime constituiu-se um desafio para o exíguo contingente de policiais do pequeno e pacato município. A população local acompanhou tudo com vivo interesse, exigindo justiça; colaborou ao máximo com as investigações, embora alguns pedissem sigilo, com receios da ação dos criminosos, que poderiam estar por perto e retaliar.
Enquanto a polícia fazia o seu trabalho, boatos e depoimentos foram ganhando diferentes interpretações nas mentes criativas dos que viram a cena do crime e até mesmo de quem não viu. Raimundo, um pedreiro, fez o seguinte comentário em uma roda de curiosos: - Depois que o corpo foi retirado, o monstro voltou ao local e defecou sobre o sangue da vítima. O cara é um psicopata. Eu vi, porque se eu não vejo o corpo de alguém que morreu, principalmente de um conhecido, ele fica aparecendo para mim durante a noite e eu não consigo dormir. Ela estava com a calcinha descida abaixo do joelho, estava de bruços, com a garganta cortada, a cabeça quase separada do corpo. Se o cara estuprasse e não matasse... Alguém contrapôs: - Ele precisava matar para não ser descoberto, hoje em dia isso é muito comum. Antigamente os bandidos eram humanos, eles te roubavam, mas te deixavam vivos. Hoje eles matam, porque você passa a ser um arquivo, que precisa ser queimado... - Raimundo respondeu: - É verdade! Eliminar as provas. Um tarado só se realiza matando a vítima, só assim ele consegue ter orgasmo. Olegário Ironizou: - Para um simples pedreiro você está sabendo demais. Raimundo não retrucou. Uma mulher que acompanhava as discussões à distância, não resistiu e deu a opinião aos gritos: - Vocês podem ter certeza de uma coisa, o assassino está no meio de nós, está mais perto do que a gente imagina. Houve um breve silêncio em que se podia ouvir o batimento cardíaco de cada um dos presentes. Por fim todos acabaram concordando. Apenas Joãozinho Batuqueiro, um mulato de atividades duvidosas, cujo apelido de batuqueiro lhe fora dado em razão de sua versatilidade de produzir percussão batendo as mãos nas bochechas infladas, discordar: - Não concordo. Este crime não foi cometido por gente daqui, veio de longe.
Mas a ideia de que o crime pudesse ter sido cometido por alguém da comunidade causou constrangimentos e dúvidas, levando as pessoas a evitar falar do assunto, prejudicando as investigações. O Silva, um torneiro mecânico aposentado, só retornou ao Bar da Margarida depois de mais de um mês após o crime. Assim que ele entrou foi recebido pelos colegas com as brincadeiras de praxe: - E aí Silva, você levou uma sumida grande - disse Olegário. O Silva não retrucou, como sempre fazia com os comentários de duplo sentido. Cumprimentou a todos com um gesto e pediu uma cerveja. Sentou-se e começou a beber em silêncio.
- Está tudo bem com você, Silva? Perguntou Olegário, preocupado com o amigo.
- Tudo bem por quê? Posso tomar minha cerveja sossegado? Respondeu irritado.
- Uai Silva! Estou te estranhando, o que eu fiz pra você me tratar assim? Replicou Olegário, também irritado.
- Fique na sua, Olegário! Respondeu o Silva aumentando o tom. Percebendo o clima esquentando, Margarida pediu calma: - O que é isto gente? Vocês parecem crianças! Podem parar, não quero confusão dentro do meu estabelecimento. Se querem brigar, vão lá pra fora.
O Silva levantou-se, pagou a cerveja e saiu em silêncio.
- Entrou mudo e saiu calado - comentou Antenor, vaqueiro da Fazenda Gota D'água.
Após a saída do Silva, todos comentaram a sua mudança repentina e conjeturaram os motivos. O vaqueiro Antenor continuou falando: -Acho que ele anda irritado, porque foi intimado a comparecer à delegacia prestar esclarecimentos sobre a morte de Maria.
- Esta eu não sabia - cortou Olegário -, se soubesse nem teria puxado assunto.
- Qual é, Olegário! Todo mundo sabe que o Silva andava enrabichado por ela - interveio Silviano até então em silêncio, bebendo cachaça num canto do bar. Silviano transformara-se num alcoólico inveterado, depois de ter sofrido uma decepção amorosa. Segundo os antigos moradores de Buganville, ele estava de casamento marcado com a filha de um fazendeiro, uma moça belíssima de olhos verdes como as folhas do buriti. Às vésperas do casamento, um vaqueiro da fazenda foi até ele, para comunicar a desistência da moça. Dias depois Silviano ficou sabendo que ela ficara noiva do filho de outro fazendeiro. Então ele teve um ataque de insensatez; pegou o enxoval, atirou-o no quintal, colocou álcool sobre ele e fez uma imensa fogueira, que nem mesmo todas as lágrimas pretéritas, presentes e futuras seriam capazes de apagar as chamas do seu amor rejeitado. Desde então começou a beber e definhar, caindo no descrédito geral. Para manter o vício aplicava pequenos golpes ou fazia limpeza nas chácaras da região. Para suas parcas refeições contava com a caridade de alguns, especialmente de Alexandrina, uma evangélica diagnosticada com transtorno obsessivo multipolar, com dons premonitórios e mediúnicos, sensitiva capaz de captar mensagens de desencarnados e encarnados. Com todos estes dons, entrava em transe durante noites inteiras, com olhos fechados, mãos sobre a Bíblia Sagrada, esperando a manifestação de Maria, para revelar-lhe a identidade do assassino.
- Vamos ser sinceros, ô Silviano! Você tinha inveja e ciúme do Silva. Cá pra nós, você queria ter um caso com ela; talvez até fosse bom, assim ia esquecer aquela ingrata que te abandonou, conforme a música de Vicente Celestino. Acho bom você beber sua pinga na miudinha, porque a qualquer momento o delegado te convida para uma audiência! - interveio Antenor.
- Ela era muito cobiçada - disse Margarida.
- Convenhamos, era um pedaço de mau caminho - completou Antenor.
- Não quero acusar ninguém - continuou Margarida - mas penso que foi gente daqui quem a matou. Que foi não sei, nem imagino, pois não tenho provas. Falar é fácil, acusar também, vai que depois a pessoa é inocente e aí, como fica? Depois da lama jogada, como limpar?
- É isso aí, Margarida, concordo plenamente - disse Estevão logo ao entrar no bar.
- Margarida - disse Silviano engasgando-se com uma dose de pinga -, ajoelhou, tem de rezar. Se você acredita que foi alguém daqui, de quem desconfia?
- Não desconfio de ninguém, mas tem muito lobo em pele de cordeiro; quem vê cara não vê coração. Olha quem aparece! É um prazer revê-lo - disse Margarida me recebendo com um sorriso sedutor.
- Boa noite pessoal.
- Boa noite, Estevão - responderam todos.
Pedi uma cerveja e ofereci a todos. Apenas Silviano, como era de se esperar, aceitou de imediato. Após beber o primeiro copo de um só gole, dei a minha opinião:
- Eu também estou intrigado com este assassinato. Conheci Maria vagamente. Uma vez cheguei a falar com ela, quando trabalhava no sítio. Pedi-lhe umas mudas de cebolinha. Ela nem ergueu as vistas para mim, parecia tímida. Depois a vi umas duas vezes no ônibus. Realmente, ela tinha um corpo bem feito. Ao entrar no ônibus houve um silêncio tácito. Percebi que dentro de cada um os pensamentos eram de desejo. Convenhamos, uma mulher, não digo bonita, isto lá não era, mas como dizer... Um tesão! Isto ela era; lógico que desperta desejos, fantasias...
- Foi o que eu acabei de dizer, ela era muito cobiçada - completou Margarida.
- Só que o filho não queria que ela namorasse. Atrapalhava alguns namoros, ameaçando tanto os pretendentes quanto à própria mãe, pode uma coisa desta? - interrogou Olegário.
- Concordo com a Margarida de que é preciso ter cuidado na hora de levantar suspeitas, acusar - disse, pois tenho a mania de colocar civilidade nas relações. - Tenho pavor de cometer injustiças, e nesse país cometem-se muitas, principalmente contra os mais fracos. Sempre me vem a memória o caso da Escola de Base em São Paulo. Os donos da escola foram acusados de assédio sexual a menores, pedofilia. Passou na Globo, no SBT e em vários jornais. Arrebentaram com a vida deles, que foram ameaçados de linchamento. Claro, o primeiro sentimento que vem à tona nestes casos é o de ódio, de vingança, desejo de matar. Imaginem seus filhos sendo molestados! A primeira reação é de esfolar o agressor.
- Se alguém tocar num filho meu - interrompeu Antenor - eu corto os bagos dele, estraçalho o cara todinho.
- Então você pode imaginar o que os pais quiseram fazer com os donos da Escola de Base, depois das denúncias amplamente divulgadas pela grande mídia sensacionalista... - continuei com esta minha mania de doutrinador ideológico-. Só depois de quase oito anos ficou comprovada a inocência deles. Globo, SBT, ao que parece estão sendo condenadas a pagar indenizações. Como a Margarida disse, depois da lama jogada, como limpar? Não há dinheiro que pague. Como reparar os danos morais, a dignidade? Não se pode pré-julgar. Devagar com o andor que o santo é de barro. Maria foi violentada, mas a nossa sede de vingança pode nos levar a injustiças. Vamos deixar a polícia fazer o seu serviço, são profissionais...
- Não vai acontecer nada - interrompeu Olegário -, sabem porquê? Maria era pobre. Quem se interessa?
- Isto é a sabedoria popular! Concordo com você. Se fosse uma grã-fina seria notícia diária. Haveria um batalhão de investigadores, ministério público, teóricos de plantão analisando as causas da violência, que este é um país da impunidade. Concordo totalmente. Quando se trata de pobres, os dias passam e tudo cai no esquecimento.
- A justiça é dos ricos - completou Antenor.
- Justiça de classes - completei. - Apesar, não é gente? dos esforços do governo federal, através da polícia federal e do ministério público, ter colocado alguns criminosos de colarinho-branco na cadeia. O banqueiro do Banco Santos, o Juiz Lalau. desembargadores, empresários e até policiais!
- Prisão assim quem não quer? Com televisão, geladeira, sala de jogos, direito de receber visitas... - corrigiu Olegário.
- Mas peraí, gente! É sinal de que alguma justiça está sendo feita. O fato de estarem presos e não poder gastar suas fortunas em viagens com o mulherio, para eles é um inferno.
- Eu queria vê-los lá, junto com aqueles bandidos violentos, comendo comida estragada, sendo enrabados e vendo o sol nascer quadrado em cubículos apertados, fedendo a merda - opinou Antenor, com um gesto de nojo.
- Não acho que uma pessoa, pelo fato de ter cometido delitos, tenha que ser maltratada. Afinal para que existem os direitos humanos? Desta vez falei, para provocar um debate.
- Estevão, você é um cara que tem conhecimentos, mas bandido ser bem tratado, convenhamos, ele devia ter pensado antes de fazer bobagem. Eu acho mesmo é que devia comer capim pela raiz, dependendo do crime - disse Olegário, indignado.
- Eu sou contra a pena de morte. Acho que até o mais violento dos criminosos tem direito à defesa e a uma nova chance. Eu acredito no ser humano...
- Eu não confio em ninguém. Hoje em dia a violência é geral, lobo comendo lobo - retrucou o Batuqueiro.
- O que fazer? - Continuei provocando o debate.
- Acho que não tem mais jeito, está fora de controle. Confiar em quem? Na polícia? Deus me livre - murmurou Silviano, pedindo mais uma dose de pinga.
- Não tem jeito, a violência é geral. O tráfico tomou conta, matam por vinte e cinco centavos - disse Margarida, balançando a cabeça com ar de desânimo.
- Vou dizer o que penso da atual conjuntura - comecei de novo, lembrando a música Carpinteiro do Universo de Raul Seixas -. Realmente não tem solução se ficarmos discutindo os efeitos e não discutirmos as causas. Vale para a violência contra o ser humano, mas vale também para outros seres vivos...
- Que outros seres vivos? Quis saber Raimundo, com um gesto de ironia.
- Ora bolas! Estou falando dos pássaros, do macaco-prego, das libélulas, dos sapos e jacarés e das plantas, estou falando da fauna e da flora.
- Ah, meu Deus do céu, o homem pirou - rebateu Antenor, acendendo um cigarro de palha.
- Posso expor a minha ideia?
- Pode, mas só se pagar uma rodada de cerveja!
- Está bem - respondi - hoje estou com o coração mole, desce logo duas, Margarida. É o seguinte: vivemos em uma sociedade mal organizada, injusta. Trata-se de um modelo baseado no lucro, acumular capital. Para ser, você precisa ter. Ter carros, ter terras, sítios, fazendas, fábricas, bancos... Tudo. Aí você é considerado. Acontece que somente uns poucos têm muito, enquanto muitos não têm nada, gerando uma enorme desigualdade. De um lado os poucos ricos, do outro os muito pobres. Isto gera violência.
- É verdade - concordaram, meno Joãozinho batuqueiro.
- Peraí! - exclamou Joãozinho -. Os ricos ajudam muita gente com emprego e salários!
- Pense bem, Joãozinho - eu disse, interrompendo para beber um longo gole e pensar uma resposta convincente -, se por um lado os ricos dão empregos, por outro lado eles ficam com o suor dos trabalhadores e com o lucro. Para o trabalhador, aquele que conseguiu o emprego, sobra um salário que mal dá para o seu sustento e de sua família, ainda assim sobra um exército de desempregados. Não é justo. Nem estou culpando o empresário, estou falando do modelo, falo do sistema. Quando eu falei dos pássaros e plantas, queria falar do meio ambiente. O modelo econômico é cruel. Ele precisa expandir-se infinitamente, enquanto o meio ambiente é finito. Na busca do lucro, derrubam-se florestas, destroem o planeta, promovem guerras!. Hoje tem guerra por causa do petróleo, em breve haverá guerra por causa da escassez de água.
- Os Estados Unidos estão sempre invadindo algum país - disse Olegário com firmeza.
- É o imperialismo! É o sistema. Está errado, precisa mudar. É um modelo assassino; produz corrupção, injustiças e revoltas.
- Você quer dizer que é o sistema que matou e estuprou Maria? Perguntou Joãozinho Batuqueiro com um sorriso irônico.
- De certa forma sim. O assassino de Maria é filho desse sistema, um efeito. A causa é o modelo, entenderam? Só com mudança de paradigma alcançaremos uma sociedade justa.
- Para de falar difícil - exigiu Margarida -, o que é paradigma? Preciso entender.
- É o mesmo que modelo, sistema, regra de comportamento, valores.
Quem mudou o rumo da prosa foi Joãozinho Batuqueiro, propondo à Margarida que colocasse um cd de Roberta Miranda. Ao terminar de escutar duas faixas da sua escolha, saiu sem se despedir.
Eu também saí em seguida, meio bêbado. Era uma noite escura.Margarida aconselhou-me a não andar sozinho. Entendi logo a sua preocupação. Certa vez ela me dissera para tomar precauções, pois eu fazia muitas perguntas sobre o crime. E me pediu atenção especial com Joãozinho Batuqueiro. - Você sabe alguma coisa sobre ele? Ela me respondeu com um olhar empírico: - É um sujeito esquisito, não olha a gente no olho. Mas nunca me fez nada de mal... - Nem mesmo te cantou, Margarida? Olha que você também mexe com a libido dos homens... Ela me lançou um sorriso significativo. Enquanto seguia em direção da minha chácara, pensava "ainda vou transar com esta mulher, porque não?".
Seguia absorto em meus pensamentos, quando, de repente um vulto saiu detrás de uma moita, interceptando o meu caminho, com um saco de estopa nas costas. Fiquei parado, com o coração pulando para fora do peito. Finalmente o silêncio foi quebrado: - Fique tranquilo, sou o filho de Maria. Precisava falar com você sem que ninguém visse. Estava passando em frente ao bar da Margarida quando te vi. Decidi te esperar, pois preciso muito ter uma conversa particular com você.
Por causa da escuridão eu não conseguia ver nitidamente a fisionomia do moço. Foi nesta circunstância que o conheci pessoalmente. Sabia que se chamava Lúcio. Cumprimentei-o cordialmente, dando os meus pêsames. As informações que tinha sobre ele não me pareceram justas. Falaram-me de pessoa arredia, tímida e enigmática. Achei-o extrovertido e transparente. Falava com sinceridade, com um vocabulário bom. Disse-lhe então: - Esta conversa precisa ser hoje? Estou meio bêbado, a mente embotada. Sorri, para quebrar o constrangimento. Ele respondeu com humildade: - Se não for inconveniente pra você eu prefiro hoje, pois tenho pressa e creio que você poderá me auxiliar. - Tudo bem - respondi - prefiro que seja em minha casa, pois preciso tomar uma ducha, beber um café forte, para recuperar os sentidos. Sou fraco com bebida alcoólica, basta uma cerveja para eu ficar zonzo. Ele concordou, acrescentando ser o local ideal. E silenciou. E assim seguimos para casa.
Ao sair do banho surpreendi Lúcio examinando a minha casa, andando de um lado ao outro. - Muito legal a sua casa - comentou com naturalidade e pediu para ir ao banheiro. Em seguida fez um relato minucioso de sua vida e do amor que nutria pela mãe. Perguntou-me sobre as reportagens e as matérias que havia escrito, se tinha alguma pista do assassino. - Se encontrá-lo, juro cortar seus bagos. Respondi-lhe com tristeza sincera, que achava impossível descobrirem o assassino de sua mãe amada. Ainda me lembro de ele abaixando as vistas, para em seguida erguê-las e me olhar fundo nos olhos, dizer com convicção: - Pois creio ter as pistas e as provas. Disse-lhe quase em súplica: - Ah, por favor, eu quero este furo. Faço questão de escrever uma reportagem sobre o assassinato em Buganville. Prontamente ele respondeu: - Combinado, você estará por dentro de tudo, garanto.
Oito dias depois desse encontro com o filho de Maria, a polícia, munida de ordem judicial, entrou em minha casa e recolheu, detrás do armário de aço da cozinha um facão coberto de sangue, enrolado numa toalha de rosto, também com marcas de sangue. Exames de DNA comprovaram ser o sangue da vítima.
Este conto (crônica se preferir) integra o meu livro Filhos da Terra - Edição do Autor - 2009 - página 141. Edição esgotada