Relatos de um correspondente de guerra

– Chamai-me Emanuel. Na semana passada, Rodolfo, o meu empregador, solicitou à Kátia, a sua secretária, que me transmitisse uma mensagem sua: um convite para um almoço. Enquanto ouvia a Kátia da mensagem inteirar-me, estudei-lhe, com uma pulga atrás da orelha, a fisionomia. Esbocei um interrogatório, que encerrei ao dela ouvir a resposta para a primeira pergunta que lhe fiz. E ela perguntou-me se eu aceitaria o convite. E eu o recusaria? Rodolfo me pediria uma tarefa, que eu não me disporia a empreender. Ele, todavia, presumi, e eu estava certo, tinha bons argumentos para convencer-me a empreendê-la. Ele não me inflaria o ego, pois sabe que sou infenso aos elogios e às bajulações. E não me ofereceria dinheiro. E também não me ofereceria privilégios. Pensativo, perguntei-me, durante aquele dia e à noite, na cama, antes de conciliar o sono, quais surpresas ele me preparara. Fui ao escritório dele, no dia seguinte, na hora aprazada. A Kátia acompanhou-me até dois metros da mesa. Rodolfo, que falava ao telefone, despediu-se do seu interlocutor, desligou o telefone, saudou-me com a reserva que lhe é comum, pediu-me que eu puxasse a cadeira, e apontou-ma, e me sentasse. Descontraído, falou-me da empresa. Enquanto o ouvia, eu seguia-lhe os pensamentos. Desconfiei de qual era a proposta que ele me faria assim que ele fez referências aos recentes conflitos bélicos que estouraram em alguns países. Com o preâmbulo, deu-me a entender que desejava que um jornalista fosse para um campo de batalha. Mas para qual campo de batalha? Rodolfo estudava as minhas reações. Eu lhe estudava as palavras, no desejo de antecipar-me ao que ele me diria, para que ele não me surpreendesse. Falei-lhe, em duas ocasiões, do que eu pensava dos conflitos que ele comentava, mas não lhe perguntei se ele desejava enviar-me para um dos países conflagrados, e tampouco ofereci-lhe os meus serviços. Dele eu queria ouvir as propostas. Enfim, ele se deteve no cruento conflito entre os A… e os B…, que, há dois meses, assola C…. Eu sabia que nenhum jornalista, eu inclusive, se ofereceria para documentar tão cruento conflito. Como, então, Rodolfo me convenceria a empreender trabalho tão arriscado? Esperei, e não por muito tempo, que ele me falasse das suas intenções. Ele me disse que obtinha informações diárias sobre o estado de coisas em C…, e temia o recrudescimento da conflagração, que poderia vir a ultrapassar as fronteiras do país, e, ao avançar aos países limítrofes, assumir proporções imprevisíveis. Intensificava-se a guerra. Vacilavam as potências mundiais. Os líderes das organizações internacionais, sempre que se pronunciavam a respeito da conflagração, acirravam os ânimos dos beligerantes, e o conflito recrudescia. Rodolfo estendeu-se ao tratar das notícias da antevéspera e da véspera. E eu o ouvi, certo de que ele me queria em C…. Falou-me dos riscos inerentes à tarefa de registro dos combates e da realidade do campo de batalha. E eu, enquanto o ouvia, perguntava-me se eu era provido de coragem para encarar tal desafio, inédito para mim. Malgrado o meu desejo de não me envolver neste crudelíssimo episódio da história humana e preservar minha vida, o desejo de empreender tão árdua tarefa enviou-me para cá, para registrar eventos que me propiciarão emoções inéditas. Não me ofereci para a tarefa. Rodolfo, todavia, munido de um arsenal de argumentos, persuadiu-me a vir para C…, de onde apresento este relato, registrar, arriscando minha vida, os embates entre os A… e os B…, e mostrar para o mundo a realidade deste país, a existência de milhares de humanos vitimados pela crueldade de governantes crudelíssimos. Estou numa das poucas áreas que bombardeios não devastaram. Metros à minha frente, ruas rubras de sangue. Os beligerantes abandonaram um rastro de destruição e miséria, desesperança e ódio. Aqui não há, além de mim, jornalistas. A imprensa mundial não os envia para cá. E os jornalistas independentes que arrumaram as malas para vir para esta área conflagrada, as desfizeram ao receberem a notícia da morte de vinte e dois jornalistas nos seis primeiros dias de conflitos. Muitos dentre eles foram alvejados pelos beligerantes, que tinham o propósito de dissuadirem outros jornalistas de vir para este país devastado. Muitas pessoas não desejam que os eventos que se sucedem aqui sejam do conhecimento do mundo. Há muitos interesses envolvidos, muitos deles inconfessados. Os donos da guerra não desejam que as suas identidades sejam reveladas. Logram os seus intentos, os malditos carniceiros! Os medrosos e covardes ocidentais (como dizem os combatentes e os que os instigam aos combates) carecem de coragem guerreira, e temem a morte, e malgrado os esforços para evitá-la, um dia defrontar-se-ão com ela num campo de batalha. E aqui estou, nas proximidades de um campo de batalha da mais feroz guerra moderna. Hordas de guerreiros sanguinários, personagens de lendas clássicas, oriundos de plagas desconhecidas, situadas em regiões inacessíveis, distantes da civilização, devastaram os impérios da antiguidade; asselvajados combatentes, rudes, ignorantes, amantes da guerra, bebedores de sangue, grotescos, incivis, bárbaros, promovem este conflito, para repetir, hoje, as ações de seus ancestrais bárbaros. Seres saídos das trevas, agourentos, vaticinam a aniquilação da civilização. Das trevas para a luz, não para usufruir dos prazeres que a luz nos oferece, mas para eliminar o que à luz dá origem. Os selvagens bárbaros modernos têm à disposição armamentos que seus antepassados jamais imaginaram. Com a fusão inconcebível da arte bélica antiga e dos artefatos bélicos modernos engendram carnificina sem precedentes… Abandono a digressão, e inicio o relato do que ocorre ao meu redor. Dou os primeiros passos, firmes. Ouço estrondos. Nuvens escuras no horizonte. Chegam-me aos ouvidos berros indistintos. Detenho-me. Atrai-me a atenção um ponto no céu, não sei a quantos quilômetros de distância, ao noroeste. Um avião rasga o horizonte, executa uma curva para o sudoeste, e desaparece atrás de uma nuvem. Chega-me aos olhos uma nuvem preto-acinzentada, que eleva-se e encorpa-se, de detrás de uma colina, há uns dez quilômetros de distância. Aos ouvidos chega-me o estrondo de uma detonação. Da minha esquerda, vejo uma nuvem de fumaça a uns cinco quilômetros de distância. Chega-me, aos ouvidos, não sei de qual direção, outro estrondo. Olho de um lado para o outro. Mísseis atingem áreas urbanas, vejo com o binóculo. Sobressaem-se, por sobre as colinas, os prédios mais altos. Não posso ver as dimensões da devastação. Rumo, sem vacilar, em direção à explosão à minha esquerda a uns cinco quilômetros de mim. Desloco-me mais de cem metros. Os sinais da devastação: carros de cabeça para baixo, queimados, casas destruídas, paredes de prédios esburacadas, ruínas em toda a extensão da rua, árvores carbonizadas. Dois cachorros famintos, ossudos, de olhos esgazeados, correm, e detêm-se, e fuçam qualquer coisa atrás de pilhas de tijolos, e, ganindo, correm, e o que vai na frente dá um ganido mais elevado do que o que emitia até então, e pula, e cai, e desaparece do meu campo de visão, atrás de um tronco de árvore carbonizado. O outro cachorro, assustado, de pelagem preta, com inúmeras falhas, a orelha machucada, a pele do flanco direito exposta, acelera a corrida, e muda a direção que segue. Cauteloso, ando, com passos firmes, na direção do cachorro que pulou e caiu. Não atino com a razão que o levou a pular e cair e o outro a disparar, assustado. A minha curiosidade, excitada, e o meu desejo de conhecer a resposta para o evento impelem-me até o cachorro que pulou e caiu. Não negligencio cuidados. Agi com imprudência, reconheço, agora, ao me deparar com o cadáver ensangüentado do cachorro escanifrado, um esqueleto banhado em sangue. Examino-o à procura da causa da sua morte. Com uma pedra cilíndrica coberta de saliências e cavidades, mexo-lhe a cabeça. Seus olhos, esgazeados; sua boca, entreaberta; sua língua, para fora. Mexo-lhe mais um pouco. Viro-lhe a barriga para cima; suas vísceras se lhe escorrem, numa poça de sangue, e esparramam-se no chão. O animal, grotesco. Uma quimera; não um cachorro. Falta-lhe uma perna. O que lha arrancou? As vísceras escorrem do corpo sem vida. A causa da morte do cachorro está próxima do cadáver: Um projétil, alojado numa pedra. Dou-me conta de que me expus, inadvertidamente, à morte. Fui imprudente. Não sei se o cachorro ficara sob a mira de um revólver, ou se o projétil, por obra do acaso, o alvejara. Olho em torno de mim. A disposição da pedra e a do cachorro não me orientam. O cachorro, atingido, dera um salto de um metro de altura, e a pedra, é certo, antes de o projétil atingi-la, não estava onde a encontrei. Fico com as minhas interrogações. Estou certo de que não me precavi como deveria ter feito. Expus-me ao perigo. Sei dos riscos que corro aqui. Eu deveria me precaver, e não me lançar, em busca da glória, com tal ímpeto inconsequente, suicida. Serei mais cauteloso. Não quero abreviar minha vida. Não quero que me abreviem a vida. Sou jovem, conquanto os esparsos cabelos grisalhos e as rugas exibam a figura de um homem de seus quarenta anos. Não quero ir para o inferno. Os seres das profundezas rejubilar-se-iam com a minha majestosa presença. Pretendo viver mais alguns anos neste inferno. Aqui, diante de mim, o cadáver de um cachorro. Abandono-o, em respeito à sua alma. Curvado, ando, com passos firmes, até uma pilha de pedras, que, acredito, me servirá de escudo. Onde estou com a cabeça? Atrás desta pilha de pedras. Minha cabeça ainda está sobre meu pescoço. Um míssil ou uma rajada de metralhadora pode pulverizar estas pedras e minha cabeça. Não tenho opções. Retiro-me de detrás desta pilha de pedras. Ouço um barulho. Detenho-me, curvado, com as pontas dos dedos da mão direita pousadas no chão. Vejo um avião, a mais de mil quilômetros por hora, sobrevoando o céu a uns duzentos metros à minha frente, a cem metros de altura, da minha direita para a minha esquerda. Os ruídos dos motores ofendem-me os ouvidos, que eu cubro com as mãos. O avião aos meus olhos reduz-se às dimensões de um ponto preto insignificante, a não sei quantos metros de distância e a quantos metros de altura. Uma explosão. Bombas atingiram um prédio a duzentos metros à minha direita. Duas pessoas saltaram do prédio, ou do prédio foram arremessadas, de uma altura de vinte metros. Seguem-se quatro explosões. Não vi de que direção partiram os disparos, e se de aviões, se de tanques de guerra, se de carros de combate. Agora, o silêncio é ensurdecedor. Ao longe, na mesma linha de visão, uma explosão de um avião, a não sei quantos metros de altura e a quantos metros de distância, e o rastro de fogo e fumaça que o avião abandona, na curva descencional rumo ao solo. O estrondo da explosão não me chega aos ouvidos. Eleva-se no céu a nuvem de fogo e fumaça. Nas proximidades do ponto em que o avião caiu, rasgam o céu dois aviões, vindos não sei de onde, e rumam em minha direção. As suas dimensões ampliam-se aos meus olhos enquanto de mim se aproximam. Deito-me. Dos aviões não desvio meu olhar. Os aviões executam uma curva; passam, a uns quinhentos metros de altura, a mais de mil metros de distância; deslocam-se a mais de mil quilômetros por hora. Ouço o rugido dos seus motores. Segue-se a calmaria. Acocorado, desloco-me, desajeitadamente, uns vinte metros. Precipita-se o crepúsculo. Anuncia-se a noite. Parece-me que o tempo se acelerou, como se um mecanismo planetário afetasse os ponteiros de um relógio cósmico com força suficiente para movê-los com velocidade superior à normal. Não consulto o relógio porque algo me chama a atenção: sapatos, atrás de um carro. Considerando a disposição dos sapatos, há pés dentro deles. Olho ao redor. Nenhum avião. Perscruto os arredores à procura de combatentes. Não os vejo. Vou, corpo arqueado, passos acelerados, até o par de sapatos. Como presumi, há pés dentro deles. Vejo os calcanhares, os tornozelos, as pernas, os joelhos, as coxas, e um corpo de homem. Foi-lhe rasgado o ventre e retalhado o rosto. Examino-o. Do corpo desviscerado foi extraído o coração. Os homicidas, crudelíssimos, tiveram o desplante de, com as vísceras, escreverem uma palavra à direita do corpo. Que desumanidade! Quem perpetrou tão horrendo crime? Tento desenhar, na minha mente, a figura original do rosto deste cadáver desfigurado. O sangue que corre pelas veias e artérias do perpetrador de tal crime é da constituição do gelo glacial, e seu rosto, da de um sujeito animalesco de expressão malévola. O homem, aqui, a desfazer-se em sangue. Vermes deslocam-se em meio às suas vísceras. Este homem não foi alvejado por projéteis; mataram-no mãos humanas, que o agarraram, cortaram-lhe o pescoço e o braço direito, e o desvisceraram, e extraíram-lhe o coração. É o corpo de um homem robusto de um metro e oitenta de altura e oitenta quilos. Era ele um dos combatentes? Ou ele era um civil, que entrou, inadvertidamente, no caminho dos combatentes das hordas inimigas? Nada, nele, indica tratar-se de um combatente. Ele não verga uniforme, e tampouco ostenta insígnias militares. Não concluo, no entanto, tratar-se ele de um civil. Os combatentes, muitos deles mercenários financiados por estados patrocinadores de organizações terroristas, não vergam uniformes militares. Sucedem-se explosões, não muito distantes de mim. Olho em torno. Devastação. Não há viv’alma no campo que meus olhos alcançam. Cães correm, ao longe, aos bandos. São oito, ou dez, todos doentios. Desaparecem dentro de uma casa em ruínas. Observo, pela última vez, o cadáver à minha frente. Curvado, afasto-me; cauteloso, desloco-me, contornando escombros e carros carbonizados. O cenário devastado parece um mural de um pintor moderno. Contorno uma casa em ruínas da qual restam pedaços das paredes. Vejo, a poucos passos de mim, um túmulo coletivo a céu aberto. Aproximo-me. Olho ao redor. Dois aviões passam ao longe. Uma explosão à minha direita, a mais de um quilômetro de distância. À minha frente, à esquerda, veículos deslocam-se, a mais de quinhentos metros, num ponto mais elevado do que o no qual me encontro, e afastam-se, rapidamente. Aproximo-me dos cadáveres. A disposição dos corpos indica que foram fuzilados à queima-roupa. São doze cadáveres, todos nus. Cinco homens. Quatro mulheres. Três crianças. Todos com olhar terrivelmente aterrorizado. Uma das mulheres, além do tiro na cabeça, foi alvejada no ventre. Piso num mar de sangue e massa encefálica. Aproximo-me dos cadáveres. Examino-os, detidamente. Não são de combatentes; são de civis. Combatentes os capturaram, e os espancaram. As mulheres e as crianças eles as estupraram. Os homens eles os espancaram até esmigalharem-lhes os ossos das mãos. Hematomas cobrem-lhes o corpo de ébano. Gritos atraem-me a atenção. Olho para a direção da qual chegaram-me aos ouvidos. Quatro homens correm; todos eles empunham rifles. São homens enormes. Correm para a mesma direção. Aproximam-se de mim. Deito-me na sujeira, no sangue, nas vísceras, na massa encefálica. Elevam-se os gritos. Aproximam-se de mim os quatro homens. Empunho a pistola que trago a tiracolo. Não sei se as aulas de tiro me serão de alguma utilidade. Uma série de detonações provoca a reação imediata dos quatro homens, que se abrigam atrás de escombros e, com saraivada de tiros, revidam ao ataque. Prendo a respiração. Não quero atrair-lhes a atenção. Aceleram-se os meus batimentos cardíacos. As explosões os abafam. Cessam os tiros. Apuro os ouvidos. Não mexo nem um dedo, nem as pálpebras. Predomina o silêncio. De repente, gritos e tiros. Enfim, cessam os gritos e os tiros. Predomina o silêncio sufocante, opressivo. Nenhum ruído chega-me aos ouvidos. Olho para a minha direita. Olho para a minha esquerda. Cauteloso, levanto-me, lentamente, Não quero que um projétil atinja-me a cabeça. Afasto-me, curvado, ziguezagueando por entre pilhas de escombros, dos doze cadáveres. Desloco-me, por entre os escombros, por uns cem metros. Recuo dois passos ao divisar uma cabeça movendo-se lentamente, e ponho-me, acocorado, atrás de um carro carbonizado. Ouço sussurros, resmungos, gemidos de dor. Olho para o homem que, à minha frente, chapinha numa poça de água estagnada numa cratera escavada, por uma bomba, presumo, no asfalto de uma ampla avenida. O homem retira-se da cavidade, e arrasta-se, fazendo das mãos pés, pois seus pés estão imobilizados e deles escorre sangue em profusão. Ele se detêm. Seu olho direito está rubro de sangue; acredito que não há olho na sua cavidade ocular esquerda, mas pasta de sangue, sujeira, pele e ossos. Ao dar um passo, emito, ao pisar num objeto de metal, ruídos, que atraem a atenção do homem que se arrasta. Ele me encara. Encaro-o. Sua figura, repulsiva, a de uma alimária, não conserva semelhanças com a figura humana. Ele se desloca, arrastando-se, como os répteis. Seu rosto, o de um ciclope desprovido de simetria. Uma figura destituída de peculiaridades humanas. Kafkiana. A guerra extraiu-lhe todas as características humanas. É um animal rastejante. Não desceu à condição de inseto, mas à de um réptil. Seu olhar, petrificante, vazio de vida, de humanidade. O que ele pensa, se pensa? Ele conserva a capacidade de pensar, ou a perdeu? Fita-me, como se olhasse para uma criatura fantasmagórica que se corporificou diante de seus olhos. A minha presença extraiu-lhe o que lhe restava de sopro divino. A face dele adquiriu consistência pétrea; ele perdeu os traços de ser vivo (não direi os de um humano), que ainda conservava, e cedeu ao peso de sua cabeça. Deteve em mim seu olho bom. Esvaiu-se o sangue daquele corpo sem vida. Andei até ele. Este cadáver não pertencia a um homem, pertencia a um macho de uma outra espécie de vida, de vida rastejante, primitiva. Diante de mais este espetáculo de horror, pergunto o que esta guerra reserva-me. Dou-me conta, agora, da noite, que se precipita. Entretido com os eventos até aqui relatados, não notei que o tempo seguiu, sem cessar, a sua jornada. Sei que, chegada a noite, os conflitos recrudescerão. Os combatentes intensificarão os bombardeios. Estou muito exposto, aqui. Tenho de encontrar um abrigo. À minha volta, ninguém. No céu, nenhum avião. Chegam-me aos ouvidos cantos de pássaros, que se destacam, e destoam do ambiente. Inusitados. Incomuns. Singulares. Surrealistas. Os pássaros são as excrescências deste cenário de horror. São as pústulas deste corpo perfeitamente tétrico. Procuro por um abrigo. Olho de um lado para outro. Diviso escombros. Ao longe, espocam luzes, de explosões, no céu e na terra. Riscos luminosos rasgam o céu. São de disparos, não sei de quais armamentos. Sucedem-se as explosões. Arrasto-me, com o coração aos pulos, bombeando, com vigor, o sangue, a ponto de estourar-me a caixa torácica. Envolve-me a escuridão; tão de repente, que me surpreende. Detenho-me. Olho em redor. Nada vejo. Não vislumbro nem meus pés, nem minhas mãos. Tateando os escombros, acocorado, desloco-me não sei para onde. A insegurança me consome. Sinto que não posso permanecer aqui. Retiro do bolso a lanterna. Ouço vozes, que me chegam da minha direita. Agacho-me. Com a lanterna na mão, detenho-me, ouvidos atentos e olhos apurados; nada vejo, entretanto. Não vejo nem a ponta de meu nariz. As vozes que me chegam aos ouvidos pertencem a três homens, que falam um idioma que desconheço. São vozes graves, cavernosas. Sussurro, agora. Os três homens aproximam-se de mim. Calo-me… Os três homens distanciam-se… Não me viram, para a minha felicidade. Afastam-se. Cauteloso, desloco-me, tateando os escombros. Não quero provocar ruídos. Duas detonações, não muito longe de mim. Ouço berros ensurdecedores. Vejo cilindros de luz cem metros à minha frente. Ouço detonações, uma, duas, três, quatro… Uma rajada de detonações, de duas ou mais armas. Sucessivas e simultâneas. De armas de modelos diferentes. Deito-me, de barriga para baixo, e pouso as mãos sobre a nuca, para me proteger. Não sei de que direção são dados os tiros. Os disparos não me são dirigidos. Não sou o alvo dos atiradores. Nenhum projétil assobia aos meus ouvidos, nem atinge os escombros próximos de mim. Nada vejo. Escuto detonações, que se sucedem de diversas direções. Sinto-me exausto, debilitado. Procuro controlar meus batimentos cardíacos. Sucedem-se explosões ensurdecedoras. Não são de disparos de revólveres, pistolas, rifles, metralhadoras. São disparos de mísseis. A terra treme sob meu corpo. Pedras atingem-me os braços, as costas, as pernas. Cerro as pálpebras. Mordo os lábios. Entrelaço os dedos das mãos e os comprimo uns contra os outros e contra a cabeça. Retesados, todos meus músculos. Segue-se silêncio lúgubre, que ruídos de motores de veículos interrompem. Afrouxo os dedos das mãos. Nenhum ruído. Nenhuma voz. Aviões sobrevoam a região não sei há quantos metros de altura. Desentrelaço os dedos das mãos. Passo as mãos, da nuca para o queixo. Deito sobre as mãos a cabeça. Ouço vozes de homens, de mulheres e de crianças. Homens, mulheres e crianças conversam, sussurrando, num idioma que desconheço; e afastam-se de mim. Não me movo. Penso em me levantar, em acionar a luz da lanterna. Empunho a lanterna. Não sei se a aciono. E se combatentes virem a luz da lanterna? As pessoas que estão próximas de mim estão armadas? Elas me ajudarão? Ou me matarão? Elas são combatentes? Dirão aos combatentes, ou aos A…, ou aos B…, de mim? Prefiro conservar-me, aqui, deitado, e, sussurrando, registrar este relato… Despertam-me detonações. Dormi não sei durante quantas horas. O céu, claro. A luz do sol atinge-me da cintura para baixo. Sucedem-se explosões. Um avião passa ao longe, a dois quilômetros de distância e oitocentos metros de altura. Alvejam-no projéteis. O avião explode. Com a consciência um tanto lenta, debilitada, afetada pelo resquício do sono que me dominou, e conservou-me no seu domínio não sei durante quanto tempo, ergo-me, e ponho-me sobre os joelhos. Olho ao redor. Diviso escombros, e escombros, e prédios fumegantes, e veículos dos quais escapam línguas de fogo. O que se sucedeu à noite? Consulto o relógio. Dormi durante mais de dez horas. À minha esquerda, cadáveres. Não estavam lá, ontem, antes de eu pregar as pálpebras. São quatro cadáveres, três, de homens, um, de mulher. Os quatro vergam trajes civis dos A…. A mulher, de cabelos compridos, jaz estirada numa poça de sangue, sob um homem deitado de bruços, de través, com um rombo no crânio, e de cuja testa escorre massa encefálica. Os outros dois cadáveres são, um, de um homem na idade de aproximadamente trinta anos, e o outro, de um homem de uns quarenta anos de idade, de barbas e bigodes espessos. Os quatro foram alvejados, cada um deles, por dois ou mais tiros. Não vejo cápsulas próximas deles. Concluo que os tiros partiram de longe. Chegam-me vozes aos ouvidos. Agacho-me. Vozes aproximam-se de mim. Os homens que as pronunciam não elevam o tom de voz. Aproximam-se de mim, lentamente. Acocorado, afasto-me dos cadáveres. À minha frente, um carro. Contorno-o. Ouço vozes de regozijo. Olho através do vidro do carro. São três homens. Não. Quatro. Cinco. Entrevejo armas. Rifles. Um homem carrega, a tiracolo, uma pistola. São seis homens. Dois deles, magros. Um, alto e musculoso, de voz roufenha, aparência tourina e músculos bem definidos. Seu tom de voz, de comando; os outros parlamentam com ele. Com um binóculo, ele esquadrinha o horizonte, e diz qualquer coisa. Um deles, magro, sobe em escombros e, com as mãos em pala, vasculha o horizonte. Dois homens andam na minha direção. Agacho-me. Arrasto-me para trás de escombros. Enfio-me por entre tijolos e vigas de ferro. Réstia de luz penetra nesta caverna, e revela-me o cadáver de uma criança decapitada, cujos olhos fitam-me, como se me repreendessem e suplicassem-me uma explicação ao que se sucede em C… Vejo, por uma frincha, o carro, e dois homens, que se detêm e remexem no carro. Aproxima-se deles um homem barbudo, que lhes exibe, ostentando-os com orgulho, os despojos que suprimiu, presumo, dos quatro cadáveres: dois relógios, um cinto, pulseiras e outros objetos. Aproximam-se do carro outros três homens. Riem. Gargalham. O grandalhão verga uma jaqueta preta, a qual retirou de um dos cadáveres, e exibe dois pares de sapatos e óculos de lentes pretas, e sorri, exibindo-se aos outros homens, que gargalham. A detonação de um projétil. Um dos homens que se acercaram do carro cai, alvejado por um projétil, presumo. Os outros homens põem-se de sobreaviso. Dois deles correm em minha direção, e abrigam-se nos escombros sob os quais estou. Seguem-se estrondos. Ouço gritos. Seguem-se estrondos. Sucedem-se gritos mistos de medo, raiva e dor. Explosões. Saraivadas de tiros. Aviões sobrevoam a região. Disparos. Gritos. Explosões. Estrondos. Passos acelerados. Várias pessoas correm, aos berros, próximas de mim. Vejo pés descalços ensangüentados passando por mim, rapidamente. Gritos. Choros. Gritos de desespero. Gritos de raiva. Gritos ameaçadores. Gritos de súplica. Entrevejo um homem carregando ao colo uma criança ensangüentada. Uma mulher ampara uma velha. Uma explosão. Nuvem de fumaça ganha o céu. Detritos invadem esta caverna. Cerro as pálpebras. Cubro o nariz, comprimindo as abas, para não aspirar detritos… Assentaram-se os detritos. Recupero a respiração. Descerro as pálpebras. Dissipou-se a nuvem. Não sei quanto tempo permaneci de pálpebras cerradas. Não ouço vozes. Não ouço ruídos. Nenhum som me chega aos ouvidos. Hesito. Quero retirar-me de sob estes escombros, que me protegeram, mas é uma armadilha. Por sorte, não ruíram, e não me soterraram. Apuro os ouvidos. Nenhuma voz, nenhum ruído, chega-me aos ouvidos. Lentamente, cauteloso, arrasto-me, evitando gestos bruscos, os ouvidos apurados para captar todo e qualquer ruído que me indique a presença de pessoas nas proximidades. Nada ouço. Movo-me, lentamente. Detenho-me. Ouvi ruídos de pedras caindo de grande altura. Segue-se o silêncio. Movo-me, lentamente, para me retirar deste abrigo, que poderá vir a se converter numa guilhotina e ceifar-me a vida. Censuram-me os olhos da criança decapitada. Fito-a pela última vez, e retiro-me de sob estes escombros. Olho em torno de mim. A paisagem foi enormemente modificada. O carro foi reduzido a ferro retorcido; mal há vestígios da sua forma original. Cadáveres juncam o chão a dez metros de mim. Há partes de corpos espalhados nos arredores. Braços. Pernas. Cabeças. Uma cabeça de mulher numa cavidade cheia de sangue. Ossos. Um mar de sangue. Quantos cadáveres há num raio de cinquenta metros que meu olhar alcança? Não sei para onde andar. Para onde me viro, vejo destruição e cadáveres. Sigo em direção às colinas, mais para o coração de C…, de onde chegam-me línguas de fogo e torres de fumaça, que se vergam ao sabor dos ventos, de mais de duzentos metros de altura. A batalha, lá, é mais intensa, encarniçada, do que aqui. Desloquei-me mais de vinte metros. Passei por cadáveres e escombros. Sigo em frente. Um veículo atrás de mim. Agacho-me. O veículo passa ao largo. Ergo-me. Neste terreno acidentado, repleto de obstáculos, corro, contornando-os, até um prédio em ruínas. Enveredo-me pelos seus domínios. Atravesso-o. Deparo-me com um cenário mais devastado do que o com o qual deparei-me antes de entrar neste prédio, que deixo para trás. Que… O que… O que é isto… O que é isto no meu braço direito? Um pernilongo. Criaturazinha maldita! Suga-me o sangue, a maldita! Sua barriga, repleta de sangue. Sangue! Sangue! Meu sangue! Criatura maldita! Enerva-me. Não me sugarás o sangue, maldita! Dou-te um tapa! Esmaguei-te, criatura maldita! Oh! Meu sangue! Mancha-me o braço meu sangue. Meu sangue! Oh! Meu sangue! Meu…

Emanuel desmaia. Aqui encerra-se o relato do correspondente de guerra.

Ilustre Desconhecido
Enviado por Ilustre Desconhecido em 15/11/2019
Reeditado em 27/12/2019
Código do texto: T6795298
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