O Expresso Em Perigo
A cidade entraria em festa no dia seguinte. Eram muitos os preparativos e um trem seguia para lá. No interior da cabine, maquinista e auxiliar estavam alvoroçados.
- Uma bomba? Isto não tem cabimento; não faz o menor sentido – afirma o chefe das máquinas quando avisado pelo inspetor da composição.
- Também penso como o senhor. Porém, não custa nos prevenirmos. O comunicado veio da estação que deixamos a exatamente... quarenta e dois minutos – disse, conferindo o relógio de pulso, o inspetor.
O trem disparava agora em enorme campo aberto, cujo verde perdia-se de vista. O panorama, composto de árvores espaçadas, de grossos Em troncos, baixos e carregadas de rica inflorescência vermelha e branca, marcava o auge da primavera. Como havia chovido, o brilho das flores era intenso e o gramado via-se repleto das pétalas que escaparam dos galhos com a leve ventania das primeiras horas daquela manhã. Muitos passageiros ainda cochilavam em suas poltronas inclinadas para trás. Alguns limpavam o vidro de suas janelas embaciadas para apreciarem com mais detalhes a encantadora vista. Mesmo em grande velocidade era possível distinguir um esquilo correndo entre uma árvore e outra, como o voo rasante de um corvo ou, bem longe, um ajuntamento de abutres em festa ao devorar a refeição decomposta. O ritmo constante e veloz da imensa locomotiva que conduzia, atrás do seu prateado em destaque, o interminável comboio de carros convidava ao relaxamento e à meditação. Cortinas cerradas ocultavam a intimidade de cabines leito onde se ainda dormia ou procurava-se a solidão a dois, alheia a toda e qualquer distração.
Fez-se o possível para que fosse mantido sigilo sobre a notícia a fim de se evitar um alarme. A situação exigia cautela, ação rápida e precisa. Chega da central, via rádio, novo comunicado atualizando as informações. Confirma-se o embarque de indivíduos suspeitos que teriam em seu poder o provável explosivo. A intenção dos criminosos era deixar o artefato em um dos vagões e desembarcar na estação seguinte antes que se desse a explosão. Autoridades policiais já haviam sido comunicadas e um grupo de agentes já se encontrava em alerta para a inspeção de todos que ali deixassem a composição.
- Vou fazer uma varredura em todos os carros – disse o inspetor, recolocando no bolso o aparelho de rádio.
- Sim, faça isto – respondeu o maquinista sem tirar os olhos dos trilhos. Contornavam neste momento as faldas de uma montanha e tinham a visão dificultada por um nevoeiro denso e crescente.
O trem ganha elevação. Iniciaria, a partir dali, um longo caminho tortuoso entre colinas e vales. O ar, embora pesado e escurecido, não impedia, em determinadas curvas, um vislumbre da paisagem. Havia momentos de total surpresa e curiosidade, quando, em curvas fechadíssimas, frente e traseira da composição punham-se num mesmo nível, por pouco não se tocando e fazendo olhares de uma e outra extremidade se cruzarem, cheios de simpatia. Vez por outra, abriam-se, entre as camadas de névoa, espaços suficientes para se apreciar a torrente de um rio longínquo ou lagos azuis que se formam nas reentrâncias desses fenômenos geográficos.
Ultrapassando esse trecho entre serras têm-se ainda alguns quilômetros, ainda de terreno inculto e pantanoso, de vegetação rude antes de surgir os primeiros sinais de área habitada. São casebres baixos, sem acabamento, um por cima dos outros, amontoados. Crianças sem camisa correm perigosamente em suas lajes; pipas sobrevoam esse mundaréu de pobreza. Sacos de lixo se acumulam em cada esquina como se há dias ali estivessem. E moscas, muitas moscas, milhares delas infestando tudo; um voejar repugnante: sobre os monturos, ao redor das caçambas, largadas abertas, dos focinhos dos cães que farejam os restos de comida e grudadas em sacos plásticos espalhados nas ruas.
O trem entra apitando nesta zona residencial num ritmo lento, quase parando. A estação, a poucas centenas de metros dali, fervilha de curiosos. Não é comum, no pequeno lugarejo, reunirem-se tantos homens da lei. A investigação do inspetor, de vagão em vagão não resultara em encontro algum. Nem de bomba nem de suspeitos. A fim de cumprir a ordem recebida de não levantar suspeitas de que a viagem corria perigo, privou-se de se embrenhar devidamente em sua procura. Por isso, não considerou aquele esforço; concentraram então a investigação nos passageiros que deveriam ali desembarcar. Ao encostar na plataforma e abrir suas portas o trem foi invadido. Eram quinze os policiais fardados, acompanhados de quatro agentes usando terno e gravata. Ninguém poderia deixar, por enquanto o seu interior. Segundos depois ouve-se, à bordo, uma mensagem enviada pelo circuito interno:
“Senhores passageiros, queiram nos desculpar o incômodo, mas este trem não seguirá viagem. Por ordens superiores, pedimos a todos que desembarquem nesta estação. Não, sem antes, se apresentarem aos nossos policiais para uma vistoria. Pedimos a compreensão de vocês”.
Ao recolocar no gancho o fone da cabine, de onde enviara esta mensagem, um dos agentes viu-se surpreendido por dois sujeitos que ali acabavam de penetrar sem dar-lhe tempo a qualquer reação. Foi uma ação rápida e surpresa. Viram-se sob a mira das armas dos dois marginais o agente, o maquinista e seu auxiliar.
- Jack; vá por fora e solte a trava do vagão dois. Em seguida volte para cá imediatamente; cuide para não ser visto.
Os três continuaram na mira do bandido chefe.
- Creio que sabem por que me encontro neste trem. E que não são tolos para acreditarem em bomba. Logo, terão que seguir minhas instruções se não quiserem sair machucados – disse o criminoso. O maquinista e o auxiliar entreolharam-se assustados.
Jack está de volta à cabine.
- Sucesso, chefe! Estamos descolados do resto, mas ainda há um bocado de gente aí atrás. São dois vagões cheios de gente bacana; que tal limparmos todos eles, agora?
- Não diga tolices, seu idiota. Não é essa a nossa missão, pelo menos por enquanto.
- Liga essa geringonça e vamos cair fora daqui, e a toda! – ordenou ao maquinista.
Cumprida a ordem, a potente locomotiva e mais dois vagões começam a se movimentar e deixam a estação. Na plataforma, um cenário de pasmo e estupefação.
- É para correr, foi o que eu disse! Gosto de emoções fortes – falou o marginal em tom de pilhéria.
Em alta velocidade, o que restava da composição desmembrada distanciou-se cada vez mais da cidadezinha e ganhou uma área rural. A via cruzava campos extensos de área cultivada, fazendas de café, intermináveis laranjais e sua simetria perfeita ao exibir os renques de árvores baixas, formando um conjunto fascinante, de inigualável beleza. Casinhas ao longe eram pontos esbranquiçados na paisagem. O gado espalhava-se pelas propriedades além das cercas de proteção a demarcar os terrenos, pastando solitariamente ao redor de formações aquáticas que lhes saciavam a sede ou marchavam tediosamente em busca de locações. O veículo disparava. Havia trechos sinalizados para travessia de animais, homens a pé ou em suas carroças. Um deles se encontrava vermelho no momento da aproximação da máquina. Felizmente não havia ninguém cruzando a linha naquele momento. O apito prolongado denunciou a chegada; como bala, deu-se a passagem. Em questão de segundos não havia ali nada mais além do costumeiro silêncio.
Uma linha reta, espetacular, foi o que veio em seguida, fazendo da linha férrea, para quem olha do interior da cabine, um imenso traçado paralelo que vai se afinando até perder-se no infinito. Em ambos os lados, terrenos desertificados, cheios de rochas e parco de vegetação.
- Onde está o carregamento? – foi a pergunta do invasor ao maquinista. Vendo o seu embaraço, acrescentou: - Não adianta mentir nem inventar truques. Passe-me esse rádio. – Arrancou do outro o aparelho, lançando-o pela janela.
O agente, sob a mira das armas, não tinha como esboçar reação. Sabia, por experiência, reconhecer sua desvantagem.
- Sei que em algum lugar desses três carros está a carga em ouro que estão transportando; vi quando embarcaram a caixa para este lado. Para evitarmos confusão é só me dizerem onde ela está escondida e tudo terminará bem.
A um sinal do agente, sem que o bandido percebesse, disse o maquinista.
- Está bem; vai encontra-la no vagão dois, embaixo de um dos bancos.
- Muito bem! Acompanhe-me, mocinho. Mostre-me onde – ordenou ao auxiliar. E, ao maquinista, acrescentou: - Previno que, se estiver bancando o esperto, vai se arrepender.
- Jack; vigie os dois. E não hesite em atirar se se meterem a valentes.
Dizendo isto, agarrou pelo braço o auxiliar e penetrou no vagão um. Os que ali se encontravam, já apavorados pela incrível velocidade em que iam, passando a toda por estações deram-no por desgovernado. E, vendo um maquinista, em uniforme, conduzido à arma por um elemento estranho, forçando-o a se adiantar, entraram em desespero; houve pânico e gritaria. O homem ergueu o revólver e atirou para o teto.
- Façam silêncio, seus idiotas! Nada de crises histéricas. Se ficarem sentadinhos em seus lugares nenhum mal acontecerá.
A um brusco solavanco da locomotiva, e mais dois tiros intermitentes, novo pânico. Mas ocorreu dessa vez no interior da cabine. Em seguida voltaram, os carros, a se movimentar, porém em menor velocidade, agora.
Em dado momento, enquanto rendidos, nova comunicação entre o agente da lei e o maquinista sem que Jack se apercebesse. Uma manobra proposital causou o solavanco. O agente, já prevenido, nada sofreu, mas o outro foi ao chão, gritando ao mesmo tempo “desgraçado” enquanto caía e atirava. Sua bala atinge, na clavícula, o maquinista que cai para frente ensanguentado. Na tentativa de acertar também o agente, não teve o mesmo sucesso. Este, mais rápido e experiente, elimina-o com dois tiros certeiros.
Corre até o chefe de máquinas e o vê sem sentidos. Tenta mexer os controles, mas não obtém êxito em parar a geringonça. Penetra no vagão um, apressado, apoiando-se contra os solavancos e acalmando a todos, de arma em punho e visando o vagão seguinte. O trem deixara a grande reta e ganhara os contornos de uma colina perigosamente acidentada.
Não foi difícil desarmar e prender o criminoso chefe, concentrado em encontrar o ouro que tanto almejava. Na mira do auxiliar não percebeu a aproximação do agente senão quando já tinha nas costas o cano de sua arma; entregou-se sem esboçar reação. Rodeando a cordilheira e já descendo por um de seus vales a pesada máquina foi finalmente controlada pelo hábil auxiliar ao entrar, ofegante, cabine adentro.
Não havia bomba como fizeram crer, mas uma carga, como queriam os meliantes. Só que de fogos de artifícios para a grande festa daquela cidade. Por suas ações corajosas o agente foi condecorado e promovido e o maquinista voltou ao trabalho, recuperado e cheio de homenagens. Tanto barulho por nada!