O Filho do Diabo
O lugar cheirava a mofo e Tylenol, não a versão genérica que é mais barata e costuma ter maior saída na farmácia dos Greysons. De verdade, o quartinho pouco iluminado era uma amontoado de fezes e urina, e resto de comida enlatada. Um monte delas. A batida policial ocorreu às 18h, quando a clientela da farmácia aparecia em peso para comprar antigripais e camisinhas.
Todos realmente ficaram chocados quando os Greysons foram levados algemados por dois policiais. A acusação oficial não escapou fácil, mas um cliente ou outro tentou bancar o detetive e consegui tirar algumas poucas informações como "filho", "cárcere" e "assassinato". O mar de informações desencontradas, é claro, deu pano para a maioria dos boatos que se seguiram durante semanas na pequena cidade de Fall West, no condado de Winschester.
A imprensa local ficou em cima do caso como moscas oportunistas sobre a carniça. Não era apenas o quarto pequeno no fundo da farmácia dos Greysons que fedia pelo visto quando o pequeno Tobias foi resgatado por um idosa que catava papelão e ouviu os grunhidos do menino aprisionado.
Ele tinha a pele branca e os cabelos pretos como o da mãe, mas os olhos sulcados e o rosto ossudo eram do pai. Uma mistura adequada pensavam os familiares. A criança aparentemente não apresentava motivos para ser tratada daquela forma. Mesmo um castigo severo não justificava que Mary e Joseph tratassem o filho à base de trincas e remédios para dormir.
Tobias foi achado desnutrido e como uma severa deficiência de vitamina D. A equipe médica teve muito trabalho para resgatar o mínimo de saúde para o corpo do menino, mas um mês depois do resgate, ele se mostrou saudável e alheio a quaisquer sentimentos que possuía pelos pais.
Não havia raiva, muito menos tristeza. Ao contrário da mãe que mordera a língua numa tentativa de suicídio e por isso cumpria pena em uma casa de saúde mental. O pai permaneceu na prisão estadual, aguardando um julgamento que se estendera por meses a fio. O doutor Monroe lutara sem folga para inocentar os pais, mas o Estado era mais forte e já detivera a comoção pública para julgar os monstros que trancaram o próprio filho. Não havia muito o que fazer exceto esperar pela sentença. Tudo no entanto aconteceu tão rápido que a justiça prefere manter o caso como um segredo, quase solicitando para que o Vaticano o trancasse em seus cofres.
A noite era chuvosa e a hora já se aproximava das três da madrugada. Joseph dormia no beliche de cima quando foi despertado por um trovão. Não era de costume que houvesse tempestade em pleno verão, mas naquela noite o serviço de previsão metereológica colocou um sobreaviso em seu canal de rádio de uma tempestade que poderia causar uma enchente por causa do transbordo do rio, o mesmo que circulava pela prisão na qual Joseph esperava sua sentenca.
Havia uma opressão no ar e os guardas passavam em revista pelas celas a cada cinco minutos, batendo nas grades de quem desconfiassem alguma tentativa de fuga.
Joseph riu quando a cela das "moças" foi invadida porque alguém trepava e aquilo não era permitido quando a prisão estava em estado de alerta. Então o perigo veio por onde menos se esperava.
Águas turvas começaram a jorrar das privadas que ficavam nas celas, uma fúria de águas que rápido encharcaram o chão na altura do joelho e se reunindo no centro do pátio em uma reunião fria e apavorante. Os presos se apertaram sobre os beliches, gritando para os guardas para que dali fossem tirados. Os mais violentos começavam a brigar e então toda a prisão se viu de repente num torpor de uma rebelião. Os guardas tentaram conter os mais agressivos, mas o contigente de agentes era baixo e a maioria dos presos seria assassinada por seus desafetos.
Joseph não tinha problema com seu parceiro de cela, um cara de trinta e poucos anos preso por tráfico de drogas e prostituição, preso há pouco mais de duas semanas antes dele. Seu nome era Christopher, mas preferia ser chamado de Cuba Libre. Joseph dividia o pouco espaço de seu beliche com Cuba, que cantarolava alguma coisa em espanhol, o mesmo de sempre.
-- Minha "chica" gosta muito -- disse. Era evidente o nervosismo e com ele a paranóia de uma morte por afogamento.
Os dois no entanto ficaram esperançosos quando um dos guardas, que era chamado de Will pelos detentos, passou empurrando água com os joelhos e chave em mãos, mas na verdade era em direção à cela ao lado, onde Andy Bronco aplicava uma chave de braço em Sergei, um russo grandalhão viciado em morfina e estupros.
As águas voltaram a estribuchar dos canos e os vento batia forte entre as barras de ferro da pequena janela no alto da cela. Mais um pouco e os pés dos dois já estavam debaixo da água. Alcançar o teto da cela era uma questão de tempo. Joseph e Cuba conseguiam nadar e os guardas tinham ido embora.
A água fria começou a castigar Joseph e Cuba, que já estava com os beiços roxos e falava de toda sua vida. Seria o tal da vida diante dos olhos de que todos falam quando estão perto da morte e então aconteceu.
Cuba parou de nadar e apenas flutuou, sendo pressionado contra as barras de ferro pela corrente. Joseph sabia que seu fim não seria diferente quando então começou a assistir o filme da sua própria vida, atento ao momento que a mudou por completo. O nascimento de Tobias e a visita de uma tia sinistra de Mary, que chamou o bebê de Filho do Diabo. Os anos seguintes então foram os mais estranhos que vivera, com animais mortos sem cabeça encontrados no quintal e o acidente que ele vira que seu filho provocara a filha do seu amigo, o qual deixara a menina cega dos dois olhos por uma perfuração de pregos e meses de coma. Foi por um triz que a menina não morreu. Daquele dia em diante ele entendeu as palavras da tia de Mary, mas sem coragem para abandonar Tobias, ele e a esposa chegaram a conclusão de que trancá-lo era a solução. Um engano que pagaram para ver.
Joseph já estava cansado e sua cabeça se mantinha para fora da água com muita dificuldade. O frio tragava seu corpo amolecendo seus músculos, então ele desistiu sem relutância e afundou. No fundo da cela, com as águas sujas e cadáveres que boiavam, Joseph viu Tobias rindo, daquele jeito cínico que ele vira centenas de vezes enquanto o menino arrancava pena por pena dos pequenos pássaros que pegara.
Ele percebeu a tempo. Não havia água, nem corpos e nem prisão. Sim, ele continuava preso e ao lado de Mary, que dormia dopada. E à sua frente Tobias, sorrindo.
-- Boa noite, papai.
E dormiu outra vez.