Isqueiro
Alguém me contou esta história. Não lembro quem. Darei a essa pessoa o nome fictício de Melquíades. Deve haver muita gente com tal nome.
Este caso ocorreu com ele (Melquíades). Garantiu-me ser verdade. É um cidadão sério, sem dolo.
Me disse que já há algum tempo fora convidado para um aniversário. De um amigo. De infância. Foi.
Aniversário tem o lado bom, comemos, bebemos, nada pagamos – é o 0800. Mais importante, porém, é a aproximação com outras pessoas. Quase todos os convidados não conhecemos.
Mas com algumas fazemos amizade. Nem todas duradouras, claro. Fica ali, apenas naquele momento. Acho isso saudável, coisa boa.
Melquíades, já perto das 3 da madrugada, voltou para casa. Despediu-se de todos, do aniversariante, de seus familiares.
Pegou um táxi. Com ele veio uma amiga. A deixou na casa dela, num bairro próximo. Conversou algumas coisas com o taxista. Antes de chegar à casa viu um casal, na esquina. O homem, calça preta, blusa branca.
Nem alto nem baixo.
A mulher, mesma altura, vestida de branco. Estavam ali, na esquina, sob uma luminária. Nada de mais.
O taxista disse: ------- Veja, amigo, não te parece inusitado esses dois aí, a esta hora? Respondi-lhe: ----- Sim. Devem estar se acertando para ficarem juntos. Irem a um motel... Um casal a estas horas...
O veículo chegou à casa de Melquíades. Ele pagou a corrida, desceu, despediu-se do taxista. Madrugada amena, nem calor, nem frio. O taxista foi embora. Na calçada deparou-se com um cachorro, deitado.
O animal levantou-se, talvez em respeito ao dono da casa. Foi deitar-se na calçada vizinha. Melquíades ficou pensando no casal, o da esquina. Aquele da calça preta.
E a mulher, de branco. Dois seres sinistros.
O que fariam ali, naquela hora, já tarde? Abriu o portão de ferro, entrou. Pegou a chave, abriu a porta. Antes de fechá-la, olhou para a calçada.
Queria saber aonde estava aquele cão. Voltou ao portão. O animal havia sumido. Fora embora. Tentou localizá-lo, olhou, olhou – e nada. Fora embora, por entre a escuridão da madrugada.
Novamente lhe veio à mente o casal. Curioso, retornou ao portão. Olhou para a esquina. Ninguém lá, tudo soturno. O casal desaparecera. A madrugada se esvaía, morria.
Da casa dele à esquina, onde viu o casal, seriam uns 100 metros. Eram umas 4 da manhã. Entrou, fechou a porta. Com o pensamento fixo naquele homem. Na mulher. E no cachorro.
Entrou, subiu. Foi para o segundo andar, estava cansado. Gostava de dormir em rede. Seu aposento ficava na parte da frente, que dava para a rua. Deitou-se.
Minutos depois ouviu vozes. Seriam vozes de um homem e uma mulher. Conversavam compassadamente, pausadamente.
----- Quem serão essas pessoas? Melquíades se perguntava. Estava temeroso, amedrontado. Sim, estava.
Nas noites e madrugadas ficamos vulneráveis ao medo. Parece-nos que o perigo está à volta, perto da gente. Ouviu latidos. Levantou-se. Olhou pela grade.
Não viu ninguém na calçada, nem o cachorro, nem o casal. Deitou-se. Estava adormecendo. Ouviu o cão latir, de novo. O silêncio, em seguida. Novamente ouviu o casal conversando.
Levantou-se. Viu os dois. O rosto do homem era estranho. E o cachorro deitado, próximo aos dois. Aquela cena provocou-lhe mais medo, temor.
O homem, o estranho, se virou para o segundo andar, lá onde Melquíades estava.
Perguntou: ----- Ei amigo, vi você descer do táxi, ainda há pouco. Por favor, você tem isqueiro? Queria acender o cigarro.
Melquíades sentiu medo. Claro. Poderia ser diferente sua reação?
Nada respondeu, logicamente. Nem pôde. Não conseguia falar.
-----Como é que ele sabe que estou aqui? Meu quarto está em completa escuridão, ele pensou.
O estranho fez a mesma pergunta. Sem resposta.
O casal, então, foi embora. O cão os seguiu. Animal negro.
Melquíades paralisado emocionalmente suou frio. Só poderia ser aquilo uma assombração, coisa do outro mundo.
O casal, o cachorro... Plena madrugada, silêncio, as casas fechadas, todos dormindo. Cenário assustador, medonho.
Depois voltou a si. Criou coragem, abriu a grade. Queria ver os dois – e mais o cachorro. Saber para onde iriam aqueles seres estranhos, pavorosos.
Foi ao pátio, no segundo andar. Olhou, não viu uma viva alma. De repente, rápido, os três sumiram.
Rua vazia, desértica. Só as trevas, silêncio. Nada mais. Ninguém.
Eis que, minutos depois, já deitado, ouviu ruídos. Seriam eles, de novo? E a tensão, o medo, voltaram.
E a voz: ----- Amigo, peço-te novamente, me empreste um isqueiro. Quero acender meu cigarro. Melquíades se levantou. Criou coragem. Olhou pela grade.
Viu o homem, calça preta. Sozinho, sem a companheira. Sem o cachorro. Assustou-se ainda mais. Que medonha madrugada aquela.
Disse ao homem, o estranho, em pé na calçada. ------ Olha, amigo, não vou lhe dar isqueiro nenhum. Não te conheço, não sei de onde vens. Por favor, suma, vá embora.
Fez-se silêncio, de um minuto mais ou menos.
Melquíades, curioso, perguntou-lhe: ------ Onde está a mulher de branco, a tua companheira?
O estranho: ------ Que mulher? Não há mulher alguma comigo. Você deve estar vendo coisas...
------ Te vi, na esquina, com uma mulher. Depois vieste para cá, para minha porta... Ela estava ao teu lado...
------ Vi também um cachorro, um cão negro. Onde está ele?
------- Amigo, você viu algum fantasma, não tem mulher alguma. Estou sozinho, também não existe cachorro.
------ Olha, disse-lhe Melquíades, vá embora, suma daqui. Preciso dormir, descansar a cabeça.
O estranho foi embora, silenciosamente. Sozinho, seguiu pela rua, naquela madrugada macabra. Sem a mulher, sem o cão.
Melquíades tentava saber que fim levaram a mulher e o cachorro.
E para onde teria ido o homem, aquele ser inóspito, híbrido.
O que queria um isqueiro para acender o cigarro.