Os Demônios
- Você tem visita - anunciou um guarda pela pequena janela gradeada da porta de ferro da cela. Surpreso, Lev Kamenev ergueu-se do catre onde estivera deitado, no exato instante em que a porta foi aberta e por ela surgiu a figura maciça de Vsevolod Andreevich Chelpanov, um embrulho de papel pardo nas mãos.
- Vova Andreevich! - Exclamou Kamenev, abrindo os braços.
- Como está, meu caro? - Indagou protocolarmente o visitante, antes de abraçar o prisioneiro, ainda segurando o pacote.
- Do jeito que me vê - foi a resposta resignada.
Atrás deles, o guarda avisou antes de trancar a porta:
- Vocês têm dez minutos!
- Dez minutos - Lev Kamenev mordeu os lábios. E, indicando um tamborete ao lado do catre:
- Desculpe se não tenho melhores acomodações a lhe oferecer...
- Não estamos numa reunião do Politburo - redarguiu Vova Andreevich tomando assento. Em seguida, estendeu o pacote para o prisioneiro, sentado no leito.
- Lamento se não é um bolo com uma serra dentro... - tentou gracejar. - Ou não teria sido autorizado pelos agentes da NKVD na entrada.
- Bem o sei... - suspirou Kamenev, rasgando o embrulho e dele extraindo um grosso volume encadernado em tecido. Ergueu a obra à altura dos olhos, com admiração.
- Então, conseguiram imprimir!
- Conseguimos - replicou Vova Andreevich com um aceno afirmativo. - Todas as 492 páginas.
- A nossa edição de "Os Demônios", de Dostoiévski... - murmurou Lev Kamenev, folheando reverentemente as páginas de papel creme.
- Será uma bela recordação da Academia, quando ela deixar de existir - ponderou taciturno o visitante.
- Então, já decidiram fechar a editora? - Indagou Kamenev, fechando o livro e segurando-o no colo com as duas mãos, como se tivesse medo de que ele se fosse.
- Sim, seremos incorporados pela Goslitizdat - informou Vova Andreevich. - Também resolveram que esta edição de 1935 de "Os Demônios" não será lançada; e já havíamos impresso mais de 5.000 exemplares...
- Como pode isso... - murmurou Kamenev atarantado, apertando o volume entre as mãos. - Por quê?
Vova Andreevich virou-se para a porta, como se temesse que o carcereiro estivesse ouvindo a conversa, o que era provável. Inclinou-se para Kamenev e baixou a voz.
- Quem poderá dizer? Talvez este não seja um bom momento para que o povo leia um romance de Dostoiévski que fala da transformação de pessoas comuns em... demônios... capazes de cometer atos terríveis por ideais que julgam meritórios e corretos!
Kamenev anuiu em silêncio.
- As pessoas parecem possessas - prosseguiu Vova Andreevich num sussurro indignado. - Não há o menor sentido em o manterem preso, sob falsas acusações, de que tramou contra o Estado e participou de uma organização terrorista!
- Sabemos que sou inocente, - suspirou Kamenev - mas o veredito já havia sido dado antes mesmo que eu pisasse no tribunal. Um jogo de cartas marcadas, enfim.
O rosto do guarda surgiu pela janelinha gradeada.
- Fim da visita! - Anunciou, destrancando a porta.
Os dois amigos ergueram-se e trocaram um último abraço.
- Virei novamente... se puder - despediu-se Vova Andreevich.
Lev Kamenev sentou-se novamente no catre, quando a porta foi fechada, o livro entre as mãos. E lembrou-se de uma passagem de Mateus 12:43-45, que fala sobre um espírito impuro, que após ser exorcizado, decide retornar ao corpo de onde havia sido expulso e com ele traz sete outros espíritos, ainda piores do que ele.
- Isso é aqui e agora... - murmurou Kamenev, olhos fixos na porta de ferro. - Eles estão por toda a parte.
- [19-10-2019]