INVASORES

Somos uma família pequena e simples. Eu, minha esposa e nosso filho mais novo moramos em um casebre de pau-a-pique na zona rural. No meio do mato mesmo. Infelizmente, a região em que moramos é paupérrima e dominada por invasores, grileiros, posseiros etc.

Nossos dois filhos mais velhos foram para a cidade grande tentar a sorte. Dizem que lá o dinheiro gira mais rápido e que eles teriam melhores oportunidade de emprego que nós, enfurnados no meio do mato.

Eventualmente tínhamos notícias deles por meio dos nossos vizinhos. Mas, um dia, tudo mudou. Uma grande queimada, um incêndio infernal tomou nossas terras e as fazendas dos vizinhos. Achamos que poderia ter sido um dos coronéis que teria enviado a ordem para aumentar a área de pasto para o gado. Ouvi dizer que aquele seria do “dia do fogo”. Mas só soube tarde demais, quando o incêndio já estava batendo à porta de casa, já sentindo as brasas queimarem nossos pés.

Nosso casebre foi consumido pelo fogo. Nossa casa de farinha e nossos mantimentos foram devorados pelas chamas. A reconstrução é lenta. Não tenho dinheiro para nada. Tenho que ir à mata, buscar madeira, caçar a comida e arranjar o que mais puder para refazer as nossas vidas aos poucos.

Desde então nossos vizinhos desapareceram e estamos sós aqui. Acho que eles devem ter ido tentar a sorte na cidade grande. A solidão nos assola e não há uma alma viva por perto.

Por esses dias, fomos acordados no meio da noite por sons estranhos. Eu conheço os sons dos animais aqui da região. Inclusive, a maioria deles evita se aproximar das casas. Acordei de supetão, peguei a socadeira*, a peixeira e fiquei espiando pela fresta da janela, aguçando a minha audição ao máximo.

Marta e Júnior continuavam a dormir. Melhor assim. Se for algo mais perigoso iria acordar eles, mas não queria que eles se assustassem caso fosse algo simples.

O som daquilo se deslocando na mata era nítido. O que eu estranhava era que som parecia ser o de vozes, mas falavam num tom diferente. Seria alguém? Era mais de uma coisa ou pessoa a rodear a nossa casa. Ouvi um som abafado. Seria uma onça? Aquele grunhido era muito diferente do de uma onça.

Eles foram se aproximando. Segurei minha socadeira, pronto para usá-la. Minhas mãos estavam tão tensas que esganavam o punho, o dedo estava leve no gatinho. Não consegui vê-los, mas percebi que eles estavam dando voltas na casa.

Teria que acordar Marta e Júnior, deixá-los preparados para caso fosse necessário fugir. Tentei ser o mais silencioso possível, mas ao chegar no quarto, minha peixeira esbarrou no pote d’água, que caiu fazendo um estardalhaço. Marta acordou no susto. Júnior já acordou chorando alto, se esgoelando por causa do barulho.

Para a nossa surpresa, aqueles seres, pessoas, bichos, seja lá o que fosse tinham saído. Acho que a algazarra acabou espantando eles. Correram mata adentro e, graças a Deus, nos deixaram em paz.

Dias depois, nós fomos ao pequeno roçado perto da casa para juntar o milho e a mandioca. A colheita tinha sido boa, graças a Deus! Acho que sobraria o suficiente para levar para a cidade, vender e conseguir algum dinheiro para nossa família. Boas notícias, finalmente!

Mas, ao voltarmos da colheita encontramos a casa toda revirada! Como não tínhamos nada de valor, não levaram nada. Marta achava que eram as visagens, fantasmas daqueles que morreram no dia do fogo. Ela é muito supersticiosa. Eu já tenho quase certeza que sejam os homens do coronel. Não é raro na nossa região eles fazerem isso. Assustar famílias ou mesmo matar pequenos donos de terra para tomar a força o pouco que temos.

Se fosse em um outro momento, teríamos fugido. Mas meu ódio era tão grande! Logo agora que iriamos recomeçar?! Malditos, desgraçados, imundos! Eles só conseguiriam nos expulsar se fosse à força! E eu teria todo o prazer de levar pelo menos um ou dois deles comigo!

Antes de cair a noite, montamos uma rápida cabana improvisada com galhos e restos de lona, para ficarmos abrigados longe da casa. Queria poder mandar Marta e Júnior para a cidade, mas não tínhamos como. Nunca iria deixar ela sozinha com o nosso filho de colo. Era quase um dia todo de caminhada para o povoado mais próximo, fora que teríamos que cruzar as terras do coronel, o que não seria uma boa ideia de se fazer de noite.

Fiquei de tocaia. Marta não conseguia dormir, mas conseguira ninar Júnior.

Ao longe pude ver aquelas luzes. Era uma picape, com certeza! Deveriam ser os capangas do coronel. Vários homens saíram do carro. Eles pararam a alguma distância de nossa casa, usando as luzes do carro para iluminar o ambiente. Aqueles capangas eram estranhos, usavam um capacete com algo pendurado em cima. Usavam roupas camufladas e conversavam alto entre si. Aquelas não eram as roupas comuns dos jagunços do coronel, nem eram homens feitos, fortes, de feições duras. Eram moleques. Podia ver o medo no rosto deles. Será que o coronel estava usando aqueles mequetrefes para fazer o serviço sujo dele?

Fui me esgueirando no mato, bem devagar, respirando lento e pisando na ponta dos pés. Fui me aproximando por de trás do carro. Não sou um homem letrado, mas com muito esforço conseguir ler na lateral da caminhonete “CAÇA DA SOMBRENAL” Seriam caçadores? Quem seria SOMBRENAL?

Os desgraçados falaram de qualquer jeito:

“Licença, vamos entrar aqui!” e seguiram entrando em minha casa.

A porta já tinha caído pela manhã. Não havia obstáculo nenhum para eles entrarem. Não deu nem tempo de dizer que eu não dava licença coisíssima nenhuma! Aquilo subiu o meu sangue. Gritei, xingando aqueles malditos e atirei contra eles.

Infelizmente, eles eram quatro. Minha socadeira tem um tiro só e demora muito para recarregar. O tiro bateu numa parede perto da cabeça do último integrante. Eles se viraram para ver o que teria acontecido. Avancei em fúria sobre eles. Quando busquei a peixeira na cintura para dar cabo deles, percebi que ela tinha caído no meio do mato. Com aquela cara de moleques, um homem forte como eu iria dar conta facilmente!

E assim o fiz, dei uma coronhada nas costas de um, peguei a mesa e virei por sobre o outro. A gritaria era grande, ouvia apenas eles dizerem entre si, desesperados:

“Corre, corre, saí, saí daí! Cuidado!”

Enchi o que estava mais para dentro da casa de socos. Acho que ele estava tão atordoado que ele não conseguia me ver. Ele se curvava, sentindo a fúria dos meus punhos na sua cabeça, costas e barriga. Outro veio lhe socorrer, enquanto titubeava tonto, a vomitar.

Um deles, que já estava fora da minha casa, começou a rezar. Pensei comigo: “Nem Deus vai me parar agora, seus vermes!”

Para a minha surpresa, uma forte luz, muito mais intensa que a da caminhonete me ofuscou por completo. Fiquei imóvel sem conseguir me mexer. Seria o efeito da oração deles? O coronel mandou feiticeiros para me expulsar de casa?

Aquela luz me deixara prostrado. Não conseguia ver, falar ou me mover. Restava escutar. Ao passo que um deles falava:

“Bem gente, vamos acabar o vídeo por aqui. A entidade que assombra essa casa é muito forte, como vocês puderam ver. Foi capaz de afetar o Felipe – olha só como as costas e a barriga dele estão vermelhas -, virar uma mesa pesada de madeira em cima do Jones e arrancou um chaboque da parede perto de mim. Se não fosse a nossa preparação espiritual, não saberia dizer o que seria de nós.”

“Carlos, que ficou dentro do carro, disse que ouviu um choro de criança vindo da mata e relatou também que, pouco depois, viu um vulto negro veloz sair da floresta e ir em direção ao casebre. Tão rápido que não deu tempo de nos avisar pelo rádio!”

“Então, vamos encerrar aqui o vídeo com uma oração para os espíritos que estão aqui para irem para luz, para que possam sair desse plano e partir para o plano espiritual. Dizem que as pessoas que morreram no dia do fogo não têm consciência de que estão mortas. Muitas foram consumidas tão rapidamente que ainda acham que estão vivas.”

Eles seguiram rezando o pai-nosso e chamando por seres de luz.

"Eu sou um fantasma?! Eu... eu estou morto?! Como assim!?”

Foi só então que percebi que aquela luz vinha da minha finada Vó Genoveva. Ela sorria para mim. Marta e Júnior vieram. Outros seres de luz nos abraçaram. Não consegui conter as minhas lágrimas de felicidade. Vovó Gêgê veio nos buscar!

Ainda atônito, perguntei para ela se aquilo que o garoto falou era verdade. Ela me olhou nos fundos os olhos com o carinho e confirmou. A calma dela e a energia dos outros que vieram encheram nossos corações de calma e amor.

Então, esse é o meu relato de como viemos para a Colônia Floresta.

Obrigado pela atenção de vocês!

* SOCADEIRA: espingarda artesanal de realimentação frontal, primeiro se coloca a pólvora e depois o projétil

Manassés Abreu
Enviado por Manassés Abreu em 19/10/2019
Código do texto: T6773686
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